O livro contem os seguintes textos de Amílcar Cabral:
Os Insubstituíveis
Nem Toda a Gente é do Partido
O Nosso Partido e a Luta
Aplicar na Prática os Princípios do Partido – Centralismo Democrático, Crítica e Autocrítica
Homenagem à Lênin
Poema
APRESENTAÇÃO
A presente coletânea de textos do revolucionário africano Amílcar Cabral, dirigente do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde – PAIGC, surge com o intuito de fornecer de maneira ampla e acessível escritos que tratam do tema da organização partidária e seus desafios, desde a compreensão dos conceitos fundamentais do marxismo-leninismo, até sua aplicação no cotidiano da militância política.
Em cada um dos textos escolhidos, Amílcar Cabral realiza um breve e profundo exame do sentido da organização política, ação coletiva que não envolve apenas a identidade revolucionária, mas a prática revolucionária.
Organizar-se politicamente demanda que militantes tenham responsabilidade, disciplina, camaradagem, criatividade e espírito de iniciativa, demanda também que combatam quaisquer desvios individualistas e oportunistas. Ao mesmo tempo estimula a coletividade, o pensamento crítico e fornece forças para as atividades desenvolvidas em qualquer âmbito.
É por meio da luta que militantes se formam – nas palavras de Ho Chi Minh é como “o ouro que se purifica ainda mais no longo contato com o fogo” – e se tornam quadros, pessoas que tem domínio político da linha de sua organização e conseguem formular intervenções para sua realidade.
E para a luta ser desenvolvida com êxito, é necessário que exista um instrumento organizativo com funcionamento adequado e profissional, rompendo com o amadorismo.
Esta coletânea surge com este propósito: avançar o desenvolvimento de instrumentos de organização para um grau elevado e estabelecer bases sólidas para mais vitórias nas lutas.
Muito embora a posição contrária de nossa juventude frente às empresas juniores esteja colocada de modo explícito em nossas resoluções congressuais há alguns ciclos, a experiência cotidiana em mais de um núcleo universitário expõe que ainda há certa dificuldade na compreensão dos motivos pelos quais nos opomos a essas instituições. A resposta comum e apressada dá conta de denunciar as EJs como “ingerência privada” na educação pública, o que não deixa de ser verdade, mas também o é o fato de que são instrumentos criados pelos alunos sem possuir fins lucrativos. A “ingerência” é, portanto, muito mais sutil que a que se nota em outros mecanismos que podem ser acusados do mesmo mal que visam, de modo mais explícito, a privatização das IEs. No caso das Empresas Juniores, o fundamental é desvelar seu caráter instrumental na disputa ideológica – o que, também argumentarei, não se trata de questão menor.
O PCB compreende, a partir de acúmulo gerado pela larga tradição comunista e progressista de modo geral de nosso país, que o caráter da Revolução Brasileira é socialista. Isso se deve ao fato de compreender que as condições objetivas para uma revolução desse tipo estão postas: a predominância de relações capitalistas de produção, do assalariamento, as formas jurídicas que guardam relação dialética com a produção, tudo isso trata-se de condições objetivas. De modo sintético, o camarada Edmilson Costa (2013) aponta que “as condições objetivas são dadas pelo desenvolvimento das forças produtivas e da sociedade, portanto independem da vontade das pessoas, das organizações políticas e sociais.” Assim, o fundamental é avançar nas condições subjetivas para construir um processo revolucionário.
As condições subjetivas são intimamente relacionadas à consciência do povo. São afetadas pelo trabalho político cotidiano e dizem respeito à forma como cada indivíduo se enxerga dentro de sua classe, como enxerga sua classe, como enxerga sua relação com outros indivíduos de mesma ou outra classe… Enfim, historicamente os partidos de vanguarda tiveram como objetivo “elevar a consciência” das classes entendidas como revolucionárias com o intuito de, precisamente, conquistar as condições subjetivas necessárias para promover uma revolução.
A tal “consciência de classe” não se conquista de forma espontânea. Novamente, cabe lembrar do texto já citado do camarada Costa (2013):
Como dizia Lenin, a consciência do proletariado não é produto mecânico de sua condição de classe, pois na sociedade burguesa os trabalhadores são influenciados pela cultura dominante que, com seus meios de comunicação e seu aparato ideológico, diariamente procura manipular as informações, o ensino e a cultura no sentido de manutenção da ordem burguesa. Nessa conjuntura, o proletariado é influenciado pelos valores da sociedade capitalista. Lenin explica que a supremacia da sociedade burguesa no capitalismo se consolida porque a ideologia burguesa é muito mais antiga que a ideologia proletária, e, principalmente, porque possui meios de difusão incomparáveis maior e mais numeroso que a do proletariado.
De forma espontânea é possível que o trabalhador lute por melhores condições de trabalho, que desenvolva reivindicações específicas a partir de sua experiência cotidiana, e mesmo que entenda ser relevante se organizar em sindicatos. Mas a percepção de que integra uma classe revolucionária a cumprir um papel histórico de emancipação, de pôr fim à exploração do homem pelo homem, esta não vem senão a partir de um esforço interno que pode (e deve!) ser promovido por um partido de vanguarda, rompendo com o economicismo espontaneísta.
Os aparelhos ideológicos burgueses, portanto, são construídos e mantidos com o intuito de perpetuar a dominação de classe e impedir os avanços subjetivos necessários para a construção de uma revolução socialista. De modo geral, esses aparelhos atuam desdobrando, justificando e naturalizando certos efeitos subjetivos que o próprio modo de produção já impõe. Entre os mais relevantes no momento, destaco aqueles apontados por Marx em seu “Sobre a questão judaica”: ao criticar os recém surgidos “direitos do homem”, Marx aponta que a supervalorização da liberdade individual no capitalismo “faz com que cada homem veja no outro homem não a realização, mas, ao contrário, a restrição de sua liberdade”. Falando sobre a “igualdade”, destaca que se trata da igualdade dessa liberdade, isto é, a uniformização de todos os homens como “mônadas” independentes e rivais umas das outras. Pois bem. Retornemos em momento mais oportuno à discussão sobre ideologia: passemos a uma breve análise do projeto Empresa Júnior.
As empresas juniores surgem na França no ano de 1967 com o objetivo de oferecer aos estudantes melhor formação através de aprendizados práticos. Podem ser caracterizadas como associações sem fins lucrativos construídas pela iniciativa dos próprios estudantes. Já aí, porém, é relevante fazer uma ressalva: segundo Lopes, Lopes e Lima (2007, p.35) ao analisar as EJs em cursos de administração, “em muitos casos o surgimento da EJ não foi um processo espontâneo nascido da iniciativa dos estudantes, mas, ao contrário, uma medida que decorreu do interesse das IES que perceberam o alto valor atribuído, pelas instâncias oficiais, à existência dessas estruturas”. Normalmente, são organizadas através das seguintes instâncias: assembleia geral, conselho administrativo, diretoria executiva, conselho consultivo e conselho fiscal. Para além do fato de que, como já mencionado, não é incomum que não sejam fruto do desejo espontâneo dos estudantes, há uma questão bastante relevante no que diz respeito à organização dessas instituições: elas estão inseridas em uma organização nacional chamada Confederação Brasileira de Empresas Juniores (BrasilJunior) que se desdobra em órgãos regionais. Ou seja, há maior centralização política do que pode supor um olhar descuidado.
O site da BrasilJunior é claro em seus objetivos: “formar, por meio da vivência empresarial, lideranças comprometidas e capazes de transformar o Brasil em um país empreendedor”. Essa é, segundo seu site oficial, “a marca que querem deixar no mundo”. Ao longo de sua página principal, mais uma série de referências ao fazer “empreendedor”, grande falta em nosso país, podemos supor – muito embora já em 2001 fôssemos, de acordo com a própria BrasilJunior, o país com o maior número de EJs no mundo, com mais de 600 distribuídas por 14 estados. Hoje, suas mais de 1400 EJs filiadas contam com o apoio explícito, verificável ao fim da página principal, de empresas como Ambev, BTG e Americanas – próximas, para dizer o mínimo, de um grande patrono da privatização e da precarização do Ensino Público, José Paulo Lehman, recém envolvido em escândalo bilionário – além de multinacionais como Nestlé e Pirelli. A estes interessam o projeto “Brasil empreendedor”, certamente discutido à exaustão em seu último Congresso Nacional, o 28º Encontro Nacional de Empresas Juniores, em 2021. Lehman, através de sua Fundação, formou figuras políticas que constituem grupo relevante na Câmara, atuando com força em assuntos de seu interesse. Na recente discussão acerca do Fundeb, das cinco emendas que o relatório da PEC 15/2015 que altera o FUNDEB recebeu em sua reta final, quatro foram propostas por deputados formados pela Fundação Lemann e com base de financiamento de campanha no empresariado. De fato, eles compõem a Bancada da Lemann. As emendas foram apresentadas por Tiago Mitraud, Tabata Amaral e Felipe Rigoni
Mas a BrasilJunior também possui o que chama de “produtos”. Logo deve chamar a atenção da juventude universitária um denominado “Universidades Empreendedoras”. Trata-se de ranking elaborado pela confederação com “patrocínio estratégico essencial do Bradesco” com a intenção de medir a “cultura empreendedora, a inovação e a extensão das instituições de ensino superior do Brasil”, além de um ponto curiosamente associado a esses outros: a atração de capital financeiro.
O ranking não se trata de obra menor: foi lançado oficialmente em 8 de dezembro na Câmara dos Deputados, em Brasília. Evidencia a movimentação política da confederação em conluio com o grande capital e seus avanços programáticos sobre a coisa pública. O MEJ, afinal, se reivindica como apartidário, mas com “consciência do papel no diálogo por um país melhor e que para transformá-lo se faz importante a discussão política”. Por isso a Brasil Junior atua com o Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif) para “expandir o conceito de sucesso do Ranking das Universidades Empreendedoras”.
Analisemos brevemente alguns dos indicadores relevantes para o ranking, disponível no site da iniciativa.
Em primeiro lugar, a Cultura Empreendedora: esta é medida através da análise de “postura empreendedora” tanto entre os discentes quanto entre os docentes, além de uma avaliação da grade curricular. Os objetivos políticos se conquistam, fica claro, através também do controle pedagógico. Também interessante é o indicador chamado de “Capital Financeiro”: é explícita a importância dada no projeto para um “Brasil empreendedor” à presença de Fundos Patrimoniais na universidade. Já tratei brevemente do que são esses fundos e de seu perigo para a autonomia universitária em outro texto; basta apontar que integram o projeto do órgão nacional responsável pela “qualidade” das EJs.
A nível estadual, o Rio de Janeiro conta com a RioJunior, ligada a BrasilJunior, que tem entre seus produtos o “Papo Empreendedor”, primeiro contato da RioJunior com alguma EJ. Conta também, para que se evidencie novamente a importância dada à questão, com uma Diretora de Formação Empreendedora. Não há propriamente nenhum membro destacado de modo aberto à dimensão pedagógica de forma ampla: a grande formação adquirida parece ser esta introjeção da perspectiva do empreendedorismo. Em material oficial elaborado por seu então presidente, consta que o principal produto da RioJunior é “o empreendedor comprometido e capaz de transformar o país”. Por isso, cada EJ deve “promover a internalização da cultura empreendedora por seus membros”.
O destaque dado neste texto para o projeto empreendedor que parece assumir função central nas EJs se dá também por conta da relevância já apontada para a disputa ideológica. No trabalho corriqueiro de um partido de vanguarda de trazer as massas da luta particular de seu cotidiano para a luta geral pela emancipação humana, essa é das disputas mais encarniçadas. Nosso trabalho se expande e já possui relevância nacional no âmbito universitário, no que sua crescente qualificação não deve atingir barreiras, e para tanto é necessário que avancemos no acúmulo acerca da própria ideia de ideologia.
A obra marxista mais famosa sobre ideologia é a Ideologia alemã, série de escritos de Marx produzidos em cerca de 1846-1847, mas que teve sua primeira publicação somente em 1950. Certa tradição marxista tende a reduzir ideologia a “falsa consciência”, a um mero falseamento do real que impede o desvelamento da opressão. Reduzir ideologia a essa dimensão nos colocaria em uma posição cômoda de não pensar no PORQUÊ essa “falsa consciência” atinge tanta influência entre as massas. Por óbvio, os aparelhos de difusão ideológica cumprem seu papel, assim como a própria forma de viver e sobreviver, mas uma série de outros autores tentou complexificar de modo interessante essa categoria.
Entre os vários meios de difusão da ideologia, nenhum prescinde de uma linguagem. Nesse sentido, estudiosos nos mais diversos campos já apontaram que toda linguagem possui uma dimensão ideológica. Rompendo com o paradigma que entendia a linguagem como neutra, Bakhtin, linguista russo, notou que toda língua possui dimensão simultaneamente formal, subjetiva e social. Helena Brandão, estudiosa de Bakhtin, afirma que
“a linguagem enquanto discurso não constitui um universo de signos que serve apenas como instrumento de comunicação ou suporte de pensamento; a linguagem enquanto discurso é interação, e um modo de produção social; ela não é neutra, inocente e nem natural, por isso o lugar privilegiado da manifestação da ideologia” (BRANDÃO, 2004).
Já segundo Misoczky, Fernandes e Bucco (apud COSTA, 2010), deve-se ressaltar que
em vez de tratar a ideologia como falsa consciência ou como sistema coerente de crenças, Bakhtin e os autores de seu Círculo consideravam ideologia como o meio simbólico essencial através do qual as relações sociais são constituídas. (…) As ideologias são materiais, não somente porque todas as formas possíveis da ação humana incluem algum tipo de símbolo semiótico – palavras, gestos, expressões, vestimentas, etc… – mas porque tais signos produzem efeitos reais nas relações sociais.
Em outras palavras, partindo de uma perspectiva histórico-discursiva, a ideologia corresponde à hegemonia do sentido. Trata-se, hoje, da Globalização da ordem do discurso neoliberal.
É a partir disso que chegamos à palavra da ordem: empreendedorismo. Como campo de estudo, surge em Harvard, em 1947, como um desdobramento de estudos acerca da história dos negócios, focando em empresas isoladas. Somente a partir de 1970, porém, começa a haver maior interesse pelo tema (KATZ apud COSTA, 2010). Sua expansão real se dá apenas em 1980, não coincidentemente período em que a própria ideia de neoliberalismo passa a integrar de forma mais corrente os vários discursos econômicos, sobretudo por conta de Pinochet e Thatcher. Até 1975, só havia um periódico – Journal of Small Business Management – que representava espaço para publicação sobre empreendedorismo. Nos últimos anos, o número de faculdades que oferecem cursos de empreendedorismo nos EUA é da casa de milhares.
No Brasil, a oferta de cursos de empreendedorismo data de 1990. A categoria incorpora-se às grades curriculares das IES por meio da Resolução CNE/CES 4 de 13/07/2005, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Administração. Lê-se que o perfil esperado de um administrador é voltado para “capacidade empreendedora e crítica”. Não é necessário ser marxista para saber, como Foucault, que “todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo”. Hoje – ou melhor, já há quase vinte anos -, entende-se que é fundamental que o Administrador formado assuma “postura empreendedora”.
Em estudo fundamental para este artigo, a tese da professora Alessandra de Mello Costa recupera algumas tentativas de definir o “empreendedor”, tanto a nível internacional como nacionalmente. Foquemos nestas últimas por serem mais relevantes à nossa atuação. Após apontar três abordagens mais comuns para discutir a categoria de empreendedorismo (uma mais comportamental, outra derivada da literatura gerencial e uma terceira mais propriamente econômica), Costa nota que os empreendedores “são concebidos de forma semelhante como indivíduos que impulsionam a máquina capitalista ao prover novos bens de consumo, além de métodos inovadores de produção e transporte, com a inequívoca função social de identificar oportunidades e convertê-las em valores econômicos” (COSTA, 2010). Em artigo de 2008, a professora ressalta a coerência entre essa compreensão e a hegemonia discursiva neoliberal, em que uma figura idealizada do executivo de sucesso passa a ser exemplo de conduta para toda a sociedade a fim de disseminar “investimento constante e exclusivo da vontade na produção de riqueza abstrata” (grifos nossos), o que “prolonga e intensifica a obrigação do homem moderno de dedicar sua vida ao ganho” (BARROS, COSTA & MARTINS, 2008)
Politicamente, interessa em particular uma definição dada em 2006 pela Associação Nacional de Entidades Promotoras de Empreendimentos Inovadores: segundo esta associação, o empreendedor é nada menos que “solução macroeconômica do problema do desemprego tecnológico generalizado”. O desemprego, portanto, passa a ser despolitizado, fruto inescapável do avanço tecnológico, e sua solução é individual: inovar, empreender, competir; enfim, passa pela vontade de cada indivíduo. Por óbvio, tendo em vista que a China é hoje vanguarda tecnológica e lá o desemprego não é sequer uma questão, esse ponto de vista se evidencia como pura propaganda liberal. A crítica de Saraiva (2011) vai nesse sentido: o pesquisador afirma que
ter uma formação empreendedora significa consentir, do ponto de vista profissional, às iniciativas empresariais pró-flexibilização do trabalho, já que passa a ser responsabilidade dos indivíduos “empreender” suas carreiras e oportunidades profissionais. À medida que considera como individuais as questões profissionais, que passam a ser definidas de acordo com a capacidade de competição (e vitória) dos indivíduos, esta visão enfraquece o coletivo e instala uma lógica darwiniana de todos contra todos, em que só se beneficiam as empresas, em detrimento da sociedade. (SARAIVA, 2011)
Como é possível conciliar uma defesa do fim da exploração do homem pelo homem com a defesa do projeto “Brasil Empreendedor”? Como é possível entender o trabalho como categoria eminentemente social e demandar independência econômica em nosso país de capitalismo dependente e ao mesmo tempo defender a compreensão de que o emprego, o desemprego e a inovação não são questões primordialmente políticas, mas sim individuais? A ideologia do empreendedorismo não é contrária somente ao marxismo: o é a qualquer linha política que entenda que para avançarmos enquanto nação não podemos ser coniventes com a cantilena neoliberal. Enquanto militantes por uma Universidade Popular, não é possível prescindir dessa denúncia.
Mas se os estudantes se interessam pelas EJs, e esse interesse parece ser crescente, o discurso ideológico deve estar mobilizando interesses reais. Para além das demandas econômicas como maior facilidade de conseguir um emprego após formado, o estudante sente falta de trabalhos mais práticos em sua formação. A educação pela prática também possui um histórico contraditório, decorrente dos descaminhos da história e da relação comum entre formação e trabalho. Saviani aponta como marco para seu desenvolvimento a abolição da escravidão, a partir da qual surge maior demanda por formação de mão de obra, e tem marco relevante nas Reformas Capanema que visaram capacitar um contingente para servir de mão de obra barata. A partir dessas reformas surge a divisão entre educação regular e cursos profissionalizantes e técnicos, reforçando a divisão social do trabalho.
Para uma crítica consequente das empresas juniores, a categoria “trabalho” é fundamental. Se pensamos que o papel da educação é a formação humana, logo temos que nos confrontar com uma pergunta: o que define a existência humana? Do ponto de vista marxista, o trabalho é intrínseco à experiência humana na medida em que “não é outra coisa senão agir sobre a natureza e transformá-la” (SAVIANI, 2003), e o ser humano tem como particularidade o fato de precisar continuamente produzir sua própria existência a partir do trabalho, de uma ação transformadora guiada por objetivos. Em outras palavras, “os animais têm sua existência garantida pela natureza e, por consequência, eles se adaptam à natureza. O homem tem de fazer o contrário: ele se constitui no momento em que necessita adaptar a natureza a si, não sendo mais suficiente adaptar-se à natureza” (SAVIANI, 2003).
A crítica à forma alienada de trabalho que é hegemônica na sociedade capitalista já preencheu milhares de páginas de teóricos marxistas. Resta num texto como esse ressaltar, a partir da compreensão latu de trabalho, sua relação com a própria constituição da humanidade e com a pedagogia em termos históricos, refletindo, por sua vez, as contradições presentes nessa relação. A divisão entre educação regular e educação profissional, por exemplo, tipicamente burguesa, pressupõe a fragmentação do trabalho em especialidades autônomas mais demandadas em dado momento histórico e reforça, já na distribuição dos currículos, a divisão entre os que pensam o processo produtivo e os que o executam. Mas como ressalta Saviani, “a separação dessas funções é um produto histórico-social e não é absoluta, mas relativa” (2003). Cabe aos marxistas, a partir de uma crítica à forma particular com que se expressam as relações de trabalho no capitalismo, propor, a nível educacional, uma articulação maior entre ensino e trabalho, suprimindo a divisão artificial entre trabalho manual e trabalho intelectual, tensionando as contradições impostas pelo Capital no ensino.
É nesse sentido que certa identificação do alunado com parte do projeto das EJs é legítima: os estudantes querem aprendizagem na prática, não se satisfazem com a pura teoria, além de quererem remuneração para permanência estudantil, oportunidades profissionais e networking. Mas nas EJs se oferecem, como nota Doval (2012), oportunidades que aproveitam para inculcar nos indivíduos, num espaço de formação superior, “toda sorte de modelos de gestão e teorias organizacionais que possam reforçar de forma científica aquilo que já está apreendido a partir de conteúdos ditos e dos não ditos do seu dia a dia”. Conclui o pesquisador:
Desta forma, a participação dos estudantes de cursos de gestão em atividades como uma empresa júnior ou o intercâmbio internacional contribuem sobremaneira para o que Althusser (1980) aponta como a materialização da ideologia dominante por meio dos aparelhos ideológicos do Estado, dentre os quais a Escola é o mais importante, especialmente porque se constitui na forma mais acabada de reprodução das relações capitalistas. Para isto, ao assumir a responsabilidade de formação dos indivíduos de todas as classes sociais, lhes ‘ensina’ saberes práticos da ideologia dominante.
Se essas demandas legítimas geram identificação com o projeto das EJs, a disputa deve ser precisamente por serem sanadas sem que dependam dele. O reconhecimento do pesquisador como trabalhador, com todos os direitos que isso traz, permanência estudantil de qualidade e a luta por sofisticação produtiva e pleno emprego são as pautas que ajudam no enfrentamento do projeto “Brasil Empreendedor” e sua política econômica do “se vira”. Sobretudo essas últimas duas pautas, porém, parecem afastadas da realidade do estudante, também envolvido numa cultura em que cada trabalhador se vê isolado em seu ofício. Nesse sentido, é interessante resgatar experiências concretas de caráter popular que suplantam o projeto das EJs e que engajam os estudantes em construção coletiva para além dos muros das universidades – sem que sejam, ainda, projetos de extensão que, por mais valiosos que sejam, se inserem no contexto burocrático de universidades que não são ainda tudo o que sonhamos.
Um exemplo fundamental presente no Brasil são os EMAUs, Escritórios Modelos de Arquitetura e Urbanismo. São baseados em experiências de cooperativas uruguaias de construção civil (marxistas e anarquistas), e funcionam através de gestão estudantil sem fins lucrativos, com vistas à uma formação multidisciplinar e com fins sociais. Diferente das EJs, o órgão que apresenta diretrizes para cada Escritório Modelo é a Federação Nacional de Estudantes de Arquitetura e Urbanismo no Brasil. Há aí experiência legítima de educação pela prática auto-organizada e socialmente referenciada.
Também é válida a lembrança do Instituto Universitario de Madres de Plaza de Mayo pelo que nos traz de positivo e de negativo. Seu projeto data de 1999 a partir da compreensão por parte da Asociación Madres de Plaza de Mayo de que era necessária a criação de uma Universidad Popular. Desde o ano seguinte se encontra em funcionamento ministrando cursos, e hoje já garante formações em advocacia e algumas licenciaturas com o reconhecimento por parte do governo argentino. As críticas de Néstor Kohan, grande educador popular que integrou os quadros docentes da universidade, no sentido de que havia ingerência pedagógica de forças antirrevolucionárias e de que o projeto político de ruptura foi substituído pela defesa do kirchnerismo nos mostram a importância de não nos furtarmos da ousadia para disputar ideologicamente mesmo espaços que parecem amistosos. A justa crítica não apaga o fato de que em nosso vizinho latino-americano um movimento social orgânico fundou um instituto universitário que exerce relevante papel formativo.
É, portanto, no sentido de reforçar a importância da construção de condições subjetivas para a revolução brasileira em cada espaço de atuação que concluo este texto que, espero, contribua para as disputas em ambiente de IESs. As Empresas Juniores não se tratam de projeto de extensão comum e desinteressado, e é fundamental que todas as forças políticas anticapitalistas se apropriem desse debate para formular a construção em todos os âmbitos de uma verdadeira Universidade Popular.
REFERÊNCIAS
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COSTA, A. M. da; BARROS, D. F.; MARTINS, P. E. M. Linguagem, relações de poder e o mundo do trabalho: a construção discursiva do conceito de empreendedorismo. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, RJ, v. 42, n. 5, p. 995 a 1018, 2008. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/6662. Acesso em: 1 mar. 2023.
COSTA, A. M. da. Convergências, divergências e silêncios: o discurso contemporâneo sobre o empreeendedorismo nas empresas juniores e na mídia de negócios. 2010.Tese (doutorado em administração) – Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, Centro de Formação Acadêmica e Pesquisa, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2010
COSTA, Edmilson. O Brasil está maduro para o socialismo. Resistir.info. 02 nov 2013. Disponível em: http://resistir.info/brasil/edmilson_01nov13.html#asterisco. Acesso em: 17 fev. 2023
DOVAL, J. L. M. Empresas Juniores e Intercâmbios em Gestão: Uma Visão Crítica. Revista Pensamento Contemporâneo em Administração. 2012;6(4):49-60. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=441742847009. Acesso em: 17 fev. 2023
LOPES, M.C.; LOPES, P.C.; LIMA, Z.A.A. Contribuição da Empresa Junior de Administração no Brasil. Revista ANGRAD, 8 (1), jan/fev/mar, 2007.
MARX, Karl. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010
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SARAIVA, L. A. S. A Educação Superior em Administração no Brasil e a questão da emancipação: um túnel no fim da luz? Revista Gestão e Planejamento, BA, Salvador, v. 12, n.1, p. 41-60, jan./jun. 2011. Disponível em: https://revistas.unifacs.br/index.php/rgb/article/view/1296/1230 . Acesso em: 01/03/2023SAVIANI, D. O choque teórico da Politecnia. Trabalho, educação e saúde, v. 1, n. Trab. Educ. saúde, 2003 1(1), p. 131-152, mar. 2003.
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Ementa: O que é economia; Conceitos básicos; Formação do capitalismo; Antigo Sistema Colonial; Imperialismo e capital monopolista; Sistema Financeiro Internacional e Estado de Bem-Estar Social; Crise, Mundialização e capitalismo do Século XXI; Mercado de Trabalho e de Capital; Política Fiscal, Monetária e Cambial.
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Programa:
Módulo 1 – 5 aulas de 2 horas cada
1 – O que é economia e seus elementos fundamentais.
Relações sociais
Trabalho e Natureza
Permanência e História
2 – Divisão do trabalho e Classes Sociais
Divisão do trabalho e Troca
Classes sociais e Ideologia
3 – Valor, Dinheiro e Capital
4 – Produção, Poder e Estado
Módulo 2 – 4 aulas de 2 horas cada
1 – História e Modo de Produção
Estrutura e Superestrutura
2 – Transição do feudalismo para o Capitalismo
Produção feudal, troca e moeda
Poder feudal e classes sociais
3 – Capitalismo Originário Inglês
4 – O antigo sistema colonial
Módulo 3 – 4 aulas de 2 horas cada
1 – Capitalismo Monopolista e Imperialismo
Concentração e centralização do capital
Imperialismo
Capitalismo e Crise
2 – Guerra e Fascismo
3 – Estado de Bem-Estar Social
Sistema Financeiro Internacional
Política e Luta de classes no pós-guerra
4 – Crise Estrutural do Capital
Mundialização do Capital
Financeirização e “neoliberalismo”
Trabalho e Capital no século XXI
Módulo 4 – 2 aulas de 2 horas cada
1 – Mercado de Trabalho
2 – Mercado de Capitais
3 – Setores de Atividade
4 – Estrutura de Mercado
Módulo 5 – 5 aulas de 2 horas cada
1 – PIB e Balanço de Pagamentos
2 – Política Fiscal
Tributação
Gasto Público
Déficit e Dívida Pública
3 – Política Monetária
Capital e Dívida Pública
Dinheiro, moeda e sistema monetário
Funções da moeda
Sistema monetário e sistema financeiro
4 – Política Cambial
Sistema Financeiro Internacional
Hierarquia de moedas e “risco país”
Reservas cambiais, balanço de pagamentos e investimentos
A reedição de Ensaios sobre Consciência e Emancipação, pela Fundação Dinarco Reis em parceria com a Editora LavraPalavra, é uma iniciativa absolutamente necessária para que os instigantes debates apresentados pelo professor, educador popular, escritor, poeta, chargista e militante comunista Mauro Iasi nesta obra possam chegar a mais gente, em especial às novas gerações de lutadores e lutadoras sociais, militantes que buscam revolucionar o mundo para superar o quadro de barbárie imposto pelo capitalismo e caminhar na direção do socialismo e da sociedade comunista.
Mauro nos convida a fazer importantes reflexões acerca de categorias e conceituações no campo do marxismo, sempre com a preocupação de que o estudo da teoria possibilite o embasamento, no âmbito das ideias, de uma ação militante voltada à luta transformadora. Com o devido cuidado para não tornar essa prática formativa em uma educação utilitarista e pragmática, tratando de forma rasa e superficial a teoria, como se fosse uma receita de bolo para a ação política. Mauro, pelo contrário, nos conduz sempre para a reflexão profunda dos temas, conceitos e categorias.
Longe de propor um mero exercício diletante na abordagem dos diferentes assuntos, o livro, assim como toda obra e atividade desenvolvidas pelo autor em sua vida de intelectual e militante comunista, busca, acima de tudo, colaborar com a construção de consciências voltadas à permanente reflexão crítica da realidade com vistas à sua radical transformação. Uma leitura, portanto, imprescindível.
Mauro Iasi é hoje um dos principais intelectuais orgânicos da classe trabalhadora brasileira. Autor de vários livros e artigos que tratam de aspectos centrais da teoria marxista, da história da luta de classes e dos movimentos contemporâneos, escreve regularmente para blogs e sites, é um poeta excepcional e vem se destacando também por suas charges carregadas de uma crítica ferina e irônica sobre a conjuntura atual.
Por Ricardo Costa, Historiador, Dirigente do PCB e Diretor da Fundação Dinarco Reis.
A Agenda de 2023, Arte, Cultura Popular e Revolução, traz diversos artistas e intelectuais brasileiros e de outros países, que deram significativas contribuições para a cultura e a luta pela transformação de suas sociedades.
Desde o processo de sua formação, o PCB atraiu diversos intelectuais e artistas para a sua militância. Durante esses últimos cem anos, foram vários expoentes das artes e da cultura que atuaram ou foram muito próximos do partido. Poetas, músicos, compositores, escritores, atores, dramaturgos, cineastas, artistas plásticos, mulheres e homens que retrataram a dura realidade da sociedade brasileira.
Poucas formações partidárias no mundo podem exibir um portfólio tão expressivo de personalidades relevantes da vida cultural de seu país quanto o PCB. Os comunistas, mesmo aqueles e aquelas não diretamente ligados à produção artística, entendem a luta pela afirmação da cultura popular como elemento indissociável do processo revolucionário.
Artistas de todas partes do mundo também estão presentes, como os que atuaram na Revolução Russa, os que combateram toda forma de opressão e preconceito, como o nazifascismo na Europa e no mundo, defendendo os valores da liberdade e do Socialismo.
Da mesma forma, são retratados vários artistas da América Latina, resistentes às ditaduras que assolaram o nosso continente. Diversos artistas revolucionários, muitos presos e alguns assassinados, como Victor Jara. E aqueles que contribuíram nas diversas guerras de independência dos países africanos e asiáticos.
Convidamos a todas e todos a se deleitarem nessa leitura, recheada de poesia e referências às lutadoras e aos lutadores da área da cultura.
Na manhã de 31 de julho de 2022, o nosso Partido recebeu a triste notícia do falecimento do camarada Dinarco Reis Filho. Com idade avançada e padecendo de enfermidades, o nosso Dinarquinho, filho do Tenente Vermelho Dinarco Reis, até seus últimos momentos foi um militante dedicado à construção do PCB e à luta pelo Socialismo. Prestes a completar 90 anos em novembro, vinculado à célula Claudino José da Silva, de Niterói/São Gonçalo – RJ, Dinarquinho, que brincava com o fato de “já ter nascido dentro do Partido”, foi e será exemplo para as futuras gerações de comunistas. Estas seguirão, a partir de agora, não mais com sua presença física, mas acompanhadas pela memória deste herói do povo brasileiro. Todas as homenagens serão justas, merecidas e absolutamente necessárias. Mas nenhuma conseguirá traduzir a sua grandeza, a pessoa extraordinária que sempre foi, para além da militância comunista irrepreensível, coerente, desde os tempos de juventude até este 31 de julho, dia em que nos deixou. Deixarão saudades sua gargalhada estrondosa, sua simpatia extrema, seu coração gigantesco, sua solidariedade, seu amor à vida.
Dinarco Reis Filho nasceu em 14 de novembro de 1932, no bairro de Realengo, na Travessa Rodrigues Marques, filho do tenente de aviação militar Dinarco Reis e de Lygia França Reis. Seu pai participou do Levante Comunista de 1935, tendo ficado conhecido como o Tenente Vermelho. Em 1948, Dinarco Filho entrou para a União da Juventude Comunista (UJC) e, em 1951, no PCB, participando das campanhas do Movimento O Petróleo é Nosso! Em 1959 foi admitido na Petrobrás, através de concurso público.Com o golpe empresarial militar de 1964, foi demitido e cassado, no dia 5 de maio, pelo delito de opinião, passando a viver na clandestinidade. Em São Paulo foi motorista e segurança do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro e participou da organização do VI Congresso do PCB, em 1967. Foi um dos principais dirigentes do Partido na luta contra os liquidacionistas na década de 1990, tendo atuado com destaque à frente da reorganização partidária no processo de Reconstrução Revolucionária do PCB, juntamente com Zuleide Faria de Mello, Ivan Pinheiro, Horácio Macedo, Raimundo Alves, Pachecão, Edmilson Costa, Sofia Manzano, dentre tantos camaradas responsáveis pela manutenção e retomada em bases revolucionárias do glorioso Partido Comunista Brasileiro, a quem dedicou sua vida.
Quando o Comitê Central decidiu pela criação da Fundação de Estudos Políticos, Sociais e Econômicos Dinarco Reis, em homenagem ao seu pai, não caberia a outra pessoa assumir a presidência da instituição. Na vibrante comemoração do centenário do PCB, em 25 de março deste ano, no auditório da Associação Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro, lotado pela presença dos comunistas, amigos e amigas do Partido, Dinarquinho recebeu das mãos da amiga e camarada Marta Barçante, atual presidente da FDR, a medalha Dinarco Reis, criada pela Fundação para homenagear militantes e dirigentes comunistas, heróis do povo brasileiro, que dedicaram suas forças às lutas em defesa da classe trabalhadora e pelo Socialismo. Dinarco Reis Filho, presente agora e sempre!!
Reproduzimos abaixo entrevista concedida por Dinarco Reis Filho ao Jornal O Poder Popular, edição nº 16, de dezembro de 2016.
Iniciativa de petroleiros comunistas: a verdadeira história da criação do décimo terceiro salário
Em entrevista exclusiva à Mariana Nunes, Dinarco Reis Filho, presidente da Fundação Dinarco Reis e militante do PCB há cerca de 70 anos, conta a verdadeira história da criação do décimo terceiro salário no Brasil, uma iniciativa dos comunistas.
– Militantes comunistas da refinaria Duque de Caxias, da Fábrica de Borracha Sintética, de Cubatão, do Pará e outras empresas da Petrobrás realizamos, no final de 1962, uma conferência intersindical, na Praia Grande, em Santos, para discutir o acordo salarial com a empresa. Entre os pontos da pauta de reivindicações, decidimos acabar com a “natalina”, também chamada de “girafa”, um abono natalício fornecido pelas empresas petrolíferas, tanto Petrobrás, quanto Manguinhos e Ipiranga, no Rio Grande do Sul, entre outras.
Segundo Dinarco, existia uma disparidade muito grande na distribuição da natalina, que era feita através de notas atribuídas aos trabalhadores: – Nós, que éramos sindicalistas, só tirávamos nota 1, claro, mas os que eram chefes só tiravam nota 5, a máxima. Mesmo o pessoal que era puxa-saco tirava abaixo de 5. Assim, quando chegava a época natalina, ninguém ficava satisfeito.
– Resolvemos fazer algo que acabasse com essa disparidade. O companheiro Silas Conforto, da refinaria Duque de Caxias, discutiu com a bancada de deputados federais do Rio de Janeiro e apresentou a proposta de que fosse dado o valor do maior salário adquirido no ano como décimo terceiro salário, incluindo todos os benefícios, pois existiam companheiros com 10 filhos. Tinha que incluir o salário família também, que naquela época não era calculado sobre o salário mínimo, mas um percentual sobre o salário que você recebia.
– Antes de irmos para a Petrobrás apresentar a proposta, como a cidade de Duque de Caxias tinha uma efervescência política muito grande, resolvemos conversar com as lideranças de lá, pois ia dar uma disparidade muito grande em relação à população da cidade, embora a maioria dos empregados da Petrobrás residisse em Caxias.
– Fomos falar com Tenório Cavalcanti, que disse: “Vocês não mexendo com o jogo do bicho, a prostituição e os menores empregados. Pra mim tudo bem”. Nos indicou, ainda, para falarmos com os representantes das associações comercial e industrial de Duque de Caxias. Na reunião com eles foram, como representantes sindicais, Chico Salgado, Silas Conforto e Aristélio Andrade, pela refinaria; e pela fábrica de borracha sintética Paulo de Araújo Sabóia, Dinarco Reis Filho e o presidente do sindicato. Apresentamos nossa proposta com medo do impacto que daria na região. O dirigente da Associação Comercial, surpreendentemente, disse que essa proposta não deveria abranger apenas os petroleiros, mas todos os trabalhadores do Brasil.
– Eu fiquei estupefato, pois não esperava um cara que diziam ser reacionário falar uma coisa dessas. Ele não tinha nada com o Partido, representava o que tinha de mais reacionário na região. Já o representante da Associação Industrial, que nós pensávamos que iria apoiar, foi contra. Disse que aumentaria os encargos trabalhistas, que os patrões teriam que pagar mais. Em contraponto, o representante da Associação Comercial afirmou que, quando chegasse o final do ano, as indústrias iriam produzir mais, mais sapatos, mais roupas, mais sabão, mais cerveja, o povo iria ter dinheiro para comprar. Disse, então, que apresentaria para a comissão de trabalhadores um senador para levar o projeto a Brasília.
– Na ocasião, deixamos claro que queríamos que o povo brasileiro também tivesse o décimo terceiro salário, não queríamos ser excludentes, por isso somos sindicalistas comunistas.
– O representante da Associação Comercial indicou o senador Vasconcelos Torres, do Rio de Janeiro. O senador gostou da lei, disse que iria apresentar. Entretanto, como era ligado aos militares, que foram contra o projeto, ficou indeciso. Quando chegou a época de discuti-lo, pois já o havia apresentado no Senado, resolveu falar com o senador Aarão Steinbruch, também do Rio de Janeiro.
– O senador Steinbruch fez algumas modificações e veio falar conosco. Como essas modificações não tiravam o espírito do projeto, concordamos. Assim foi aprovado o décimo terceiro salário, tanto no Senado quanto na Câmara, diante dos argumentos apresentados. Quando fomos ver a assinatura pelo então presidente João Goulart saiu uma caravana do Rio de Janeiro, com vários ônibus. Em um deles a polícia prendeu o Aristélio e o Silas. Quando eles chegaram a Brasília, nem sabiam da mudança do Vasconcelos Torres para o Aarão Steinbruch. Não fui porque minha mulher estava grávida, em fase adiantada. Foi uma delegação grande aqui do Rio de Janeiro.
– Essa é a verdadeira história do décimo terceiro salário, que surgiu através de uma reivindicação dos petroleiros. Existe outra história dizendo que os patrões teriam sido seus criadores, pois diminuiriam os salários e fariam uma complementação através do décimo terceiro. Balela! Patrão nunca faz nada para trabalhador, concluiu Dinarco.
O debate sobre a participação da classe operária nas eleições
Na Europa, a classe operária iniciou seu processo de participação nas eleições e no Parlamento desde, ao menos, 1848, com a Primavera dos Povos, ocasião em que alguns nomes célebres do movimento operário tiveram a oportunidade de exercer cargos no legislativo, como por exemplo, Pierre Joseph Proudhon. Entre 1884 e 1896, este processo aumentou significativamente com a fundação dos partidos social-democratas e trabalhistas, que em geral, defendiam a participação eleitoral e parlamentar dos trabalhadores tanto para propagandear o socialismo quanto para conseguir medidas imediatas de bem-estar para a classe operária. Entretanto, o assunto sempre foi objeto de polêmica, dividindo posições dentro do movimento operário entre aqueles que viam no Parlamento um campo estratégico da luta política e aqueles que condenavam veementemente a participação no Parlamento burguês (PZEWORSKI, 1984, P. 44).
Os seguintes trechos foram retirados do discurso de Clara Zetkin feito no Quarto Congresso da Internacional Comunista em novembro de 1922. À época, ela era a representante alemã no Comitê Executivo da Internacional, e Secretária Geral do Secretariado Internacional das Mulheres.
O Quarto Congresso aconteceu em um momento de recuo diante dos ataques da classe patronal, depois da derrota da onda revolucionária que varreu a Europa no fim da Primeira Guerra Mundial. A Frente Unida e o trabalho maciço eram agora as estratégias necessárias.
Apesar das circunstâncias históricas serem bem mais diferentes hoje, os argumentos levantados por Zetkin ainda são válidos porque a questão de como alcançar e organizar as mulheres da classe trabalhadora está mais uma vez na agenda.
Os quarenta anos, desde o início da década de 20 à década de 60, viram quase por completo a extinção das ideias socialistas revolucionárias. Na atmosfera criada pelo stalinismo, as ideias de combate ao fim da opressão das mulheres e a busca ativa à organização destas não tinham lugar. Somente com os ataques de 1968, a explosão do movimento estudantil, e as imensas possibilidades que se abriram às organizações revolucionárias, o movimento das mulheres começou a se desenvolver novamente. A maioria dos socialistas revolucionários evitou o debate. Eles se opuseram a se envolver no movimento das mulheres, as vendo como uma classe média ao invés de elaborar uma estratégia para envolvê-las e organizá-las entre as mulheres da classe trabalhadora. Agora as mulheres estão na linha de frente de ataque à crise econômica. E com milhares de mulheres enraivecidas com a perspectiva de desemprego, sendo negadas a salários e trabalhos iguais, se posicionando em grande número contra os cortes e fechamentos, os socialistas têm de encontrar uma forma de as trazerem às ideias revolucionárias. Inevitavelmente, algo é perdido ao encurtar um discurso bastante longo. No entanto o cerne do argumento está aqui. A ideia central que Clara Zetkin levantou é tão pertinente hoje quanto era em 1922.
Camaradas, antes de iniciar meu relatório das atividades do Secretariado Internacional das Mulheres e o desenvolvimento da atividade comunista entre as mulheres, permita-me alguns breves comentários. Eles se fazem necessários porque nosso trabalho ainda é incompreendido não apenas pelos nossos oponentes, mas também por nossos próprios camaradas. É resquício de uma antiga visão para uns e um preconceito deliberado para outros, porque não se simpatizam com a nossa causa e até, em partes, se opõem a ela.
O Secretariado Internacional das Mulheres é uma filial do Executivo da Internacional Comunista. Conduz sua atividade não somente em uma cooperação constante com o Executivo, mas sob sua liderança direta. O que, em regra, designamos como o Movimento das Mulheres Comunistas não é um movimento independente de mulheres. Ele existe como propaganda comunista sistemática entre estas. Isso tem um duplo propósito: Primeiro, incorporar dentro das seções nacionais da Internacional Comunista aquelas mulheres que já estão tomadas pelo ideal comunista, tornando-as cooperadoras conscientes na atividade dessas sessões. Segundo, despertar para o ideal comunista as mulheres indiferentes e atraí-las para as lutas do proletariado. As massas das mulheres trabalhadoras devem ser mobilizadas para essas lutas. Não há trabalho no Partido, não há luta de movimento em nenhum país em que nós, mulheres, não consideramos como nosso primeiro dever participar. Além disso, desejamos ocupar nosso lugar nos Partidos Comunistas e na Internacional em que o trabalho é mais árduo e as balas voam mais densas, sem desviar do trabalho mais servil e modesto do dia a dia.
Uma coisa se tornou evidente: necessitamos de órgãos especiais para levar adiante o trabalho Comunista de organização e educação entre as mulheres e torná-las parte da vida do Partido. Agitação Comunista entre as mulheres não é somente tarefa delas, é tarefa de todo o Partido Comunista de cada país, da Internacional Comunista. Para cumprir nosso propósito é necessário criar órgãos partidários, Secretarias das Mulheres, Departamento das Mulheres, ou como quer que possamos chamá-los, para continuar esse trabalho.
No dia 23 de maio, o companheiro Sérgio Granja lançou no portal Contrapoder o artigo Centralismo democrático ou burocrático?, em que utiliza uma série de argumentos contra o centralismo democrático como método de trabalho de uma organização política. A empreitada, nada inédita, já foi feita por diversos teóricos da luta social, tanto à esquerda quanto à direita, e o companheiro Granja não apresenta nenhum argumento novo. No entanto, velhos argumentos também merecem novas respostas, ainda mais considerando o momento histórico de nossa conjuntura e o nível de confusão ideológica do proletariado brasileiro nessas primeiras décadas do século XXI.
Como parte da indispensável luta teórica que é típica da luta de classes, nossa contribuição será aqui feita em dois momentos. Em um primeiro, buscarei analisar com detalhes as confusões apresentadas pelo companheiro Granja, No segundo momento, de forma muito breve demonstrar como o marxismo aborda essas mesmas questões e como apresenta soluções – políticas e organizativas – para os problemas colocados honestamente pelo companheiro Granja. O objetivo final é demonstrar, no melhor espírito dialético, do vínculo indissociável entre forma e conteúdo das organizações políticas, o que necessariamente nos leva a constatar a atualidade do leninismo por meio da atualidade da Revolução Socialista para o Brasil.
O artigo, infelizmente, ficou longo. O exame minucioso do texto do companheiro Granja levou a isso. Entendemos que atrapalha uma divulgação mais ampla, mas, ao mesmo tempo, esclarece mais profundamente os problemas.
As confusões do artigo do companheiro Granja
É preciso ser respeitoso e honesto no debate político dentro do movimento dos trabalhadores. Isso não quer dizer, absolutamente, que a retórica – especialmente aquela afiada, típica dos debates dentro do marxismo – seja dispensável. Mas, com argumentos os mais gentis ou os mais inflamados, é preciso honestamente analisar as posições dos adversários dentro da própria esquerda. Só oferecendo polêmicas solidamente embasadas, podemos ajudar a educar politicamente a classe trabalhadora.
Em primeiro lugar, está a ideia da pertinência ou não do centralismo democrático (ainda por analisar, uma vez que entendemos diferente do companheiro Granja) para o marxismo. Ele diz:
A ideia de um destacamento de vanguarda disciplinado, eficiente, levou Lênin a formular, nas condições históricas da Rússia de 1917, o princípio do centralismo democrático. Essa é, portanto, uma formulação não marxista, mas leninista. E mais: essa ideia tornou-se a pedra de toque da concepção leninista (e não marxista) do partido de novo tipo.
Se é verdade que o centralismo democrático como método de trabalho foi colocado nessa terminologia tipicamente por Lênin – e mesmo tardiamente, uma vez que, em princípio, em obras como Que fazer? [1], Lênin enfocava mais o centralismo do que qualquer outra questão –, já em Marx e Engels temos essa concepção de “um trabalho único” do Partido. A ver, por exemplo, a Mensagem da Direção Central à Liga dos Comunistas [2], em que os alemães dizem:
A reorganização da Liga só pode ser conseguida através de um emissário e a Direcção Central considera da maior importância que o emissário parta neste preciso momento, em que está iminente uma nova revolução, em que o partido operário deve, portanto, apresentar-se o mais organizado, o mais unânime e o mais autónomo possível, para não ser outra vez, como em 1848, explorado e posto a reboque pela burguesia.
Assim, o problema da “unanimidade”, da “organização”, da “autonomia” aparecem como condição indispensável para que o partido operário não esteja “a reboque” da burguesia. Se não é uma ideia de Marx e Engels o conceito do centralismo democrático, tampouco podemos ver que, em sua forma embrionária, eles entendem o papel de uma ação unificada como forma de garantir a independência de classe e, assim, o sucesso e a permanência do partido operário em um rumo próprio.
Em seguida, o companheiro Granja diz:
Lênin colocou o problema em termos relativamente simples. Quando o partido precisa tomar uma decisão, deve reunir seus membros, promover um debate livre, amplo, profundo, que permita o exame exaustivo da questão, para, finalmente, como coroamento do processo de discussão, colocar em votação as diversas posições em disputa. Esse é o momento da democracia. Uma vez consolidada uma maioria, a minoria a ela deve subordinar-se. Esse é o momento do centralismo. Daí a fórmula leninista do centralismo democrático.
Também aqui é preciso fazer algumas correções. É apenas em 1906 [3] que Lênin passa a usar o termo e, mesmo assim, com cautela. Ainda em 1906, ele se opõe à regulamentação menchevique do centralismo democrático, formulada da seguinte maneira:
Em vista do fato de que várias organizações do Partido levantaram a questão dos limites dentro dos quais as decisões dos congressos do Partido podem ser criticadas, o Comitê Central, tendo em mente que os interesses do proletariado russo sempre exigiram a maior unidade possível nas táticas do POSDR, e que esta unidade nas atividades políticas das várias seções do nosso Partido é agora mais necessária do que nunca, é da opinião:
(§1) de que, na imprensa do Partido e nas reuniões do Partido, todos devem ter liberdade total para expressar suas opiniões pessoais e defender seus pontos de vista individuais;
(§2) de que, nas reuniões políticas públicas, os membros do Partido devem abster-se de conduzir agitação que contrarie as decisões do Congresso;
(§3) de que nenhum membro do Partido deveria em tais reuniões convocar a ações que contrariem as decisões do congresso, ou propor resoluções que não estejam de acordo com as decisões do congresso. [Todos os itálicos são de Lênin] [4]
O líder bolchevique vê “vários pontos estranhos” nessa formulação. Para ele, “[o] princípio do centralismo democrático e da autonomia das organizações partidárias locais implica uma liberdade universal e plena de crítica, desde que isso não perturbe a unidade de uma ação definida; exclui todas as críticas que perturbem ou dificultem a unidade de uma ação decidida pelo Partido” [4]. Ora, vemos que é bastante diferente a formulação apresentada pelo companheiro Granja daquela apresentada pelo camarada Lênin. Este, como se vê, não tenta cassar a palavra ou a opinião de nenhum militante, como aquele dá a entender.
Sigamos para uma análise mais aprofundada, em que, corretamente, mesmo “torcendo” um pouco o significado do centralismo democrático, o companheiro Granja busca entender a organização não a partir de um ideal pré-definido, mas a partir da funcionalidade histórico-prática da forma leninista de partido:
O princípio é cristalino. Mas que partido era esse? Ele foi pensado como instrumento para a realização de qual tarefa política? Sem me alongar, acho que posso dizer que esse era um partido para a insurreição. E foi eficaz no que se propunha. Era um partido talhado para a luta política nas condições históricas do que Gramsci chamou de “Oriente”, nas quais o Estado era tudo e a “sociedade civil” gelatinosa, o que permitia que a luta política fosse conduzida como uma “guerra de movimento”. Lá, o Estado era fundamentalmente um aparelho repressivo. A tomada do poder burocrático-militar de Estado colocava-se como o objetivo central. O requisito era a presteza de agrupar forças no momento e no ponto decisivos. Em contrapartida, dizia Gramsci, no “Ocidente” só a “guerra de posição” é viável. Porque aí o Estado é “sociedade política + sociedade civil”, é “coerção + consentimento”. Tem-se uma formação social solidamente articulada pela ideologia. Em consequência, os aparelhos ideológicos de Estado assumem uma importância estratégica. O poder de Estado se legitima em uma zona de hegemonia que abarca toda (ou quase toda) a sociedade. […]
Bom, no trecho acima é onde podemos ver o que eu entendo ser o cerne da confusão do companheiro Granja. Em primeiro lugar, esquece que o próprio Gramsci não excluía a chamada “guerra de movimento” nas sociedades “ocidentais”, mas trazia para primeiro plano a “guerra de posição”. É compreensível que muitas das reflexões de Gramsci gerem dúvidas e tendam a ser mal interpretadas – essas leituras enviesadas de Gramsci, que buscam afastá-lo do leninismo e aproximá-lo do reformismo deram origem, por exemplo, ao eurocomunismo, no Partido Comunista Italiano. Por isso, precisamos compreender, na totalidade da reflexão gramsciana, a relação que ele opera entre “guerra de posição” e “guerra de movimento”. O sardo dizia:
A verdade é que não se pode escolher a forma de guerra que se quer a menos que se tenha imediatamente uma superioridade esmagadora sobre o inimigo; sabe-se quantas perdas custou a obstinação dos Estados-Maiores em não quererem reconhecer que a guerra de posição era “imposta” pela relação geral das forças em choque. [Caderno 13, §24, grifo nosso]
Mas também:
Para a filosofia da práxis, as ideologias não são de modo algum arbitrárias; são fatos históricos reais, que devem ser combatidos e revelados em sua natureza de instrumentos de domínio, não por razões de moralidade, etc., mas precisamente por razões de luta política: para tornar os governados intelectualmente independentes dos governantes, para destruir uma hegemonia e criar uma outra, como momento necessário da subversão da práxis. Ao que parece, Croce se aproxima mais da interpretação materialista vulgar do que a filosofia da práxis. […] A filosofia da práxis, ao contrário, não tende a resolver pacificamente as contradições existentes na história e na sociedade, ou, melhor, ela e a própria teoria de tais contradições;não é o instrumento de governo de grupos dominantes para obter o consentimento e exercer a hegemonia sobre as classes subalternas; é a expressão destas classes subalternas, que querem educar a si mesmas na arte de governo e que têm interesse em conhecer todas as verdades, inclusive as desagradáveis. [Livro 1 dos “Cadernos do Cárcere”]
E:
A guerra de posições, em política, é o conceito de hegemonia, que só pode nascer depois do advento de certas premissas, quais sejam, as grandes organizações populares de tipo moderno, que representam as “trincheiras” e as fortificações permanentes da guerra de posições. […]
Já assinalei em outra ocasião que em uma determinada sociedade ninguém está desorganizado e sem partido, sempre que se entenda organização e partido em sentido amplo e não formal. Nesta multiplicidade de sociedades particulares […] uma ou mais delas prevalecem relativa ou absolutamente, constituindo o aparato hegemônico de um grupo social sobre o resto da população (ou sociedade civil), basedo Estado entendido estritamente como aparato governativo-coercitivo.
Tática das grandes massas e tática imediata de pequenos grupos. Entra na discussão sobre a guerra de posições e a de movimentos […]. É também, (pode dizer-se) o ponto de conexão entre a estratégia e a tática, tanto em política como na arte militar. Os indivíduos isolados (inclusive como componentes de vastas massas) tendem a conceber a guerra instintivamente como “guerra de guerrilhas” […] Na política o erro se produz por uma inexata compreensão do que é o Estado (no significado integral: ditadura + hegemonia). [Livro 3 dos “Cadernos do Cárcere”]
As citações são longas, mas indispensável para compreender que, para Gramsci, a “guerra de posição” e a “guerra de movimento” não são funções absolutizadas, mas momento da luta pela hegemonia e pela disputa do poder. É preciso aqui dar crédito e enunciar que o camarada Gabriel Landi, em seu artigo Gramsci contra o “marxismo cultural” [5]é o formulador que nos apresentou essa discussão e nunca seria demais indicar a leitura de seu texto.
Assim, compreendendo melhor Gramsci, podemos ver que, mesmo reconhecendo a guerra de posição como predominante nas sociedades “ocidentais”, não descarta as formas de “guerra de movimento”, mas indica o quanto a existência de uma sociedade civil organizada e presente, como forma de gestão do consentimento por parte das classes dominantes, é uma realidade. No entanto, aqui vem o salto do companheiro Granja:
[…] É preciso, nessas condições, ter um partido capaz de disputar a hegemonia na sociedade. E então já não se postula um destacamento de vanguarda disciplinado, eficiente, porque isso já não teria eficácia nas condições da democracia política.
Para ele, a condição da hegemonia está em oposição a um “destacamento de vanguarda disciplinado, eficiente, porque isso já não teria eficácia nas condições da democracia política”. Aqui nos parece estar o salto lógico mais importante. Isso porque qualquer organização humana precisa ser compreendida como “eficiente” para seus fins se tiver eficácia, mas, com um aceno de mão, o companheiro Granja diz que uma vanguarda disciplinada, “eficiente”, não teria eficácia. O cerne de sua divergência com o leninismo, contudo, aparece em seguida, e damos a palavra a ele:
Nessa nova situação, ganha o primeiro plano a necessidade de um partido de massas, articulado por quadros intermediários, capaz de realizar tarefas de convencimento. Um partido necessariamente de massas, porque a capilaridade, a disseminação, é condição indispensável para fazer o trabalho de convencimento em toda a extensão da sociedade. O requisito é a capacidade de argumentação, a perseverança para persuadir e a tolerância com a diferença. Nesse partido, o centralismo democrático não tem mais vigência. É um anacronismo. A unidade desse partido não se faz pela subordinação imposta administrativamente pela maioria à minoria, mas pelo consenso tecido em torno das questões capitais para o desenvolvimento da luta política.
Aqui temos uma coleção de confusões. Em primeiro lugar, é preciso observar que também o leninismo aponta para a construção de partidos que façam “o trabalho de convencimento em toda a extensão da sociedade” e cujos “quadros intermediários” tenham “a capacidade de argumentação, a perseverança para persuadir e a tolerância com a diferença”. Qualquer um que tenha lido obras do Lênin percebe que esse é o ponto central de sua teoria da organização: como construir instrumentos que façam o trabalho de conectar-se às massas, de trabalhar ativamente sua consciência em cada momento de luta. No entanto, aqui aparece a primeira divergência profunda do companheiro Granja com Lênin, subjacente à diferença entre um partido “de massas” e um partido “de vanguarda”: o problema da consciência.
Para Lênin, buscando combater as tendências espontaneístas e reformistas da virada do século XIX para o XX, e se utilizando da teoria revolucionária de Marx e Engels para isso, há uma questão da consciência de classe que impacta na forma organizativa. Essa questão diz respeito a assim chamada “consciência vinda de fora”. Se compreendemos a materialidade como substrato último das condições subjetivas dos seres humanos, podemos igualmente observar que há um tipo de consciência de classe que surge de uma forma “espontânea” na classe trabalhadora, que é a consciência de seu lugar no sistema capitalista, ou seja, seu lugar de vendedor da força de trabalho. A esse tipo de consciência, podemos observar uma certa correspondência de formas de luta (como a greve por melhores salários) e de formas organizativas (como os sindicatos). No entanto, é apenas a elevação desses conhecimentos e experiências, apreendidos espontaneamente, que pode fazer surgir no seio do proletariado uma consciência revolucionária. Com/por meio dela, setores da classe trabalhadora podem se utilizar de um arcabouço metodológico e conceitual para compreender não apenas seu lugar no modo de produção capitalista, mas seu lugar potencial como classe dirigente da revolução social.
É importante notar o quanto essas duas coisas, apesar de intimamente conectadas, são diversas: enquanto a primeira é uma consciência de classe em si, a segunda é uma consciência de classe para si; enquanto aquela não permite ir a classe trabalhadora para além das reivindicações possíveis dentro da ordem burguesa, esta permite a construção de uma alternativa teórica e política distinta, isso é, o socialismo.
Aqui é que se coloca o problema das massas e da vanguarda. Para Lênin, cujo objetivo primordial era desenvolver a consciência de classe da forma em si para a forma para si, ou seja, da consciência de classe espontânea à consciência de classe revolucionária, era preciso constatar que, fora dos períodos de crise revolucionária aguda, a experiência cotidiana das massas no capitalismo força o processo de consciência à adesão ao nível máximo da consciência para si. Não podemos, então, supor que serão as massas as condutoras da transformação da sua própria consciência. No entanto, podemos constatar que justamente um destacamento da classe trabalhadora, por diversos motivos pessoais e coletivos, alcança, em qualquer tempo histórico, essa consciência para si, justamente pela mediação com a teoria revolucionária marxista.
Nesse sentido, o partido de vanguarda aparece como necessidade histórica, como operador político imprescindível para que haja o desenvolvimento contínuo da consciência para si, para que sofra menos recuos no processo de consciência do que as massas. Um partido de massas, assim, só poderá contribuir para as próprias massas a partir do nível de consciência sintetizado por elas, sem a mediação necessária da teoria revolucionária e com as pressões ideológicas das massas; um partido de vanguarda, por sua vez, pode contribuir na educação política das massas, por meio de quadros intermediários, dotados do convencimento, da persuasão, da tolerância.
Se, na questão anterior, já havia uma profunda divergência entre Lênin e o companheiro Granja, a conclusão é nosso segundo salto lógico no escuro. O companheiro Granja opõe, assim, o suposto funcionamento desses dois tipos de partido: no partido de tipo leninista, com centralismo democrático, “[a] unidade […] se faz pela subordinação imposta administrativamente pela maioria à minoria”, enquanto no partido de massas, ela se faz “pelo consenso tecido em torno das questões capitais para o desenvolvimento da luta política”. Ora, vejamos se é assim.
Em primeiro lugar, a subordinação da linha política minoritária à majoritária dentro do centralismo democrático não se faz “administrativamente”, mas por meio de intensos debates e busca pelo convencimento. Isso é o que explica a quantidade de escritos de Lênin, por exemplo, aos militantes bolcheviques em diversos momentos da vida política deste Partido. Igualmente, não há “imposição administrativa[…]” strictu sensu: todo partido de tipo leninista pressupõe uma participação voluntária de militantes revolucionários. Como muitas vezes aconteceu e acontece, o militante que julgar incorreta e inadmissível uma determinada posição, a ponto de não aceitar agir em unidade com o Partido, simplesmente sai dele e deixa de ser minoria, passa a ser ex-militante. As palavras duras do companheiro Granja não demonstram nada, senão a tentativa de pintar como “antidemocrático” o que há de mais democrático: a prevalência da opinião da maioria.
Mas também sua visão sobre os partidos de massas nos parece um pouco idealizada. Ora, se formos pensar em um partido de massas atual, do Brasil, o nome mais significativo é o do Partido dos Trabalhadores. É preciso perguntar, portanto, como seriam as decisões se houver (e há) pelo menos um militante revolucionário no PT, que julgar absurda (apenas para citar um tema atual) a coligação do PT com Geraldo Alckmin nas eleições de 2022. Já aí não há, portanto, “consenso tecido em torno das questões capitais para o desenvolvimento da luta política”. Muito bem. O que acontece, então, no PT, se não há consenso (e não há, nessa questão particular)? Continua-se debatendo ad infinitum, até um consenso que, se o militante revolucionário do PT mantiver sua dignidade e posição, nunca chegará? Parece improvável. Parece, como é o caso, que (a despeito de inúmeros companheiros valiosíssimos dentro do PT) os processos são definidos em reuniões de Diretório Nacional, alijadas da imensa base de militantes partidários, ou seja, das massas.
Assim, a questão posta pelo companheiro Granja é um caso clássico do “dois pesos, duas medidas”. O partido de tipo leninista é medido em seu momento de divergência política interna; o de massas, em seu momento de convergência política interna. Ora, é possível imaginar que, também nos momentos de consenso político interno, os partidos leninistas não precisem subordinar a minoria à maioria – afinal, a posição é consensual. Por sua vez, nos momentos de dissenso político é que os partidos de massa mostram a fragilidade de sua democracia interna, uma vez que as massas, apresentando um nível de consciência médio inferior à necessária consciência revolucionária, tenderão a trazer suas próprias confusões para o seio do partido operário, atrasando ainda mais o processo de construção de uma linha política e de uma intervenção sólidas junto ao conjunto da classe trabalhadora. Se o companheiro Granja não vê problema em que o partido de massas tenha uma síntese política (uma forma de consciência) rebaixada, ou, ainda pior, acha ela importante para as condições de luta nas sociedades ocidentais, não é o nosso caso.
Apresentamos nosso caso totalmente voltado para para o “ponto de vista da eficácia, da organização servindo à política”, ainda que, no caso do partido leninista, à política revolucionária, que exige um trabalho de consciência diverso. O companheiro Granja, no entanto, apresenta que “a questão pode e deve ser analisada sob diversas angulações”. A citação é questionável. Uma organização política deve ser analisada do ponto de vista de sua funcionalidade prática. Mas vejamos quais são as angulações filosóficas (sem qualquer desprezo pela filosofia) que o companheiro propõe:
[…] A da liberdade, por exemplo. Como se sabe, a questão da liberdade é central para o comunismo de Marx: a utopia comunista não é a igualdade (que, no máximo, é um pressuposto), mas a liberdade do homem. E é por esse prisma que também é preciso discutir o princípio da subordinação da minoria à maioria. Que liberdade é essa na qual a minoria é obrigada a calar suas convicções em nome de uma decisão da maioria? Então o militante socialista luta para ser amordaçado quando mais precisa expressar suas opiniões, que é exatamente quando discorda da maioria? Mas a ideia de centralismo democrático, objetivando a unidade de ação, não apenas obriga o dissidente a calar suas opiniões. Quer mais: quer obrigá-lo a pronunciar as palavras que repudia. Não há violência maior. Como diria Roland Barthes, “o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer”.
Infeliz parágrafo, o do companheiro Granja.
Em primeiro lugar, como já apresentamos, o “militante socialista” é sempre um voluntário em uma organização leninista. Ele não é “amordaçado”, mas escolhe subordinar sua vontade à da maioria – do contrário, ele simplesmente sai do partido!
Em segundo lugar, como vimos na citação de 1906 de Lênin, a questão não está na proibição da expressão de suas opiniões, mas justamente na necessidade da unidade de ação. Um partido revolucionário, uma organização que se pretenda um instrumento para a luta da classe trabalhadora pelo poder, precisa apresentar coerência em cada ação por meio de sua unidade prática, o que inclusive significa a unidade em diversas palavras de ordem, bandeiras, agitações etc. Afinal, se, tomada uma decisão majoritária, o “militante socialista” se nega a cumpri-la, por que organizar qualquer processo democrático de escolha? Basta que cada um faça e fale o que quiser! E aí simplesmente não é preciso partido, oras. Mas, se é verdade que é necessária a forja de uma vanguarda altamente capacitada que, por seu esforço coletivo e formulação democrática, possa dirigir a classe trabalhadora para essa luta, é preciso que haja formas de garantir a ação quando há divergência, formas essas de todo voluntárias.
É verdade que, se um partido degenera para um burocratismo (o que não apenas acontece, mas é marca infeliz da história do movimento operário), esse espaço do dissenso se fecha – mas aí é justamente a falta de centralismo democrático que está operando, não o centralismo democrático. O companheiro Granja provocativamente fala em “centralismo burocrático”. Não negaremos a existência dessa forma de ação (abordaremos ela a seguir), mas não nos parece proveitoso medir uma determinada prática pelo que ela não é.
Em terceiro lugar, figurando quase como uma digressão, vemos talvez a maior infelicidade do parágrafo. Enquanto os dois pontos anteriores expressam divergências políticas, teóricas e organizativas, a equiparação, por meio da citação de Barthes, entre os comunistas e os fascistas – aqueles, defensores da democracia proletária e da emancipação do proletariado; estes, capachos do capitalismo monopolista – é absolutamente descabida. Sai da divergência teórica, entra no espantalho. É importante pontuar, mas é uma posição, sinceramente, que não deve ser debatida a sério. Aproxima-se da famigerada “teoria da ferradura” dos liberais, que postula a extrema-esquerda como irmã gêmea da extrema-direita.
Vejamos, agora, como é o diagnóstico do companheiro Granja sobre a degeneração burocrática do leninismo.
Historicamente, o centralismo democrático tendeu para o centralismo burocrático. Essa tendência degenerou na concepção stalinista de partido. Houve o deslocamento do centro da discussão política das organizações de base para as direções. E chegou-se ao cúmulo de o Secretário-Geral decidir sem contestação. Consequentemente, a escolha das direções passou a ser operada por cooptação. Nesse formato, é a direção que legitima as bases e estabelece o controle sobre elas, invertendo a dinâmica democrática. Desse modo, a vontade da organização se forja de cima para baixo, autoritariamente.
O companheiro Granja está quase completamente correto. Exceto a primeira, todas as frases apresentam um processo real, o da degradação político-organizativa ocorrida em boa parte dos PCs. Mas é importante observar que o centralismo democrático não “tendeu” para o centralismo burocrático. A burocratização como fenômeno dos partidos operários ocorreu também nos partidos de massa! O que dizer de um SPD alemão, que hoje é praticamente um partido de centro-direita? O que dizer do PS português, que foi líder da Revolução dos Cravos e hoje é líder do neoliberalismo em Portugal? A burocratização como fenômeno é justamente um dos recuos possíveis na consciência de classe do proletariado, justamente porque repõe formas da consciência em si, da consciência da classe trabalhadora como partícipe da sociedade capitalista, nos instrumentos da consciência para si. Acertam, em nossa avaliação, aqueles que veem a burocratização do PCUS, nos anos 1930, com o recuo da revolução socialista mundial, ainda que se possa debater as condições objetivas de imprimir avanços a ela naquele momento. Mas o fato é que, mesmo sendo de difícil manutenção – porque permeado das contradições que mesmo os militantes revolucionários têm – o centralismo democrático é a forma mais avançada de discussão, deliberação e ação de um partido que se pretenda construir como dirigente e vanguarda da classe trabalhadora.
O companheiro Granja, bastante fixado na contraposição mecânica entre as sociedades “ocidentais” e “orientais”, ainda faz uma ressalva sobre o centralismo democrático.
Nas condições de dura clandestinidade, impostas aos lutadores contra a ditadura, a unidade de ação era imprescindível. A menor divergência colocava em risco a coesão do grupo clandestino submetido à pressão aterrorizante do aparelho repressivo do Estado. Nessa situação asfixiante, compreende-se que o centralismo fosse exercido de forma burocrática, autoritária, com o mínimo de discussão e o máximo de disciplina. A organização assumia feições militares. E não podia ser diferente. Nas condições da democracia política, entretanto, a ninguém pode ser imposto sequer o silêncio, quanto mais a obrigação de defender aquilo que repudia, seja em nome do que for.
Ora, aqui voltamos a ter contradições no texto. Em primeiro lugar porque, mesmo nas condições mais adversas da autocracia czarista, Lênin polemizou duramente com os companheiros de Partido e advogou pela necessidade de fazer as discussões às claras – acusando, inclusive, de “marxistas legais” aos intelectuais que produziam um reducionismo no marxismo para que suas obras fossem publicadas de maneira aberta. Para ele, a férrea unidade de ação na prática não poderia, jamais, ser motivo de calarem-se os dissensos.
E, no entanto, em várias medidas, o quadro apresentado pelo companheiro Granja segue atual! Se (e isso é verdade) vivemos numa sociedade de tipo “ocidental”, em que a permeabilidade da sociedade civil é parte constitutiva do “Estado ampliado”, o que demanda a predominância de uma “guerra de posição”, é igualmente importante garantir que a unidade de ação seja férrea, uma vez que a “pressão aterrorizante” do Estado continua a operar, ainda que mascarada sob a face “democrática” de instrumentos na sociedade civil. Tomando ainda o caso do Brasil, não seria importante uma “imprescindível” “unidade de ação” para combater, com “o máximo de disciplina”, uma produtora como a Brasil Paralelo, recheada de conteúdo reacionário e alimentada com dinheiro empresarial? Não seria o esforço de diversos militantes, incansáveis na produção de conteúdo absolutamente firme e comprometido com a teoria marxista, em uma produtora audiovisual revolucionária, um empecilho à extrema-direita? Não conseguimos ver em que medida as “condições de democracia política” diminuem a necessidade de um combate encarniçado, duro, prolongado, firme, disciplinado contra a burguesia – ainda que sob formas permitidas na democracia.
O companheiro Granja segue:
Um partido socialista, num contexto de democracia política, precisa ser uma organização democrática de massas. Tem a tarefa de produzir na sociedade o consenso em torno das suas ideias. Para isso, ele precisa chegar a esse consenso internamente. Sua unidade terá que ser arquitetada como unidade de pensamento e ação, e não apenas de ação, pois é a unidade de pensamento que pavimenta a unidade de ação. E isso não se resolve com a subordinação da minoria à maioria. É bem mais complicado. Requer o exercício da persuasão.
Novamente, entendemos que há uma confusão bem expressa aqui. Acima de tudo, porque também os partidos de tipo leninista tem como tarefa produzir “consenso em torno de suas ideias”, mas não “na sociedade”, e sim no proletariado. Afinal, em todas as revoluções bem sucedidas no mundo, as massas aderiram à linha política dos partidos não pela força, mas pelas ideias.
É surpreendente, também, o companheiro achar que num partido leninista não há “persuasão”, ou ainda que é possível chegar a consensos internos dentro dos partidos democráticos de massa – e, ainda pior, que esse é o método para chegar à “unidade de pensamento”! Oras, mas não eram os partidos leninistas os autoritários? Como se quer chegar a uma “unidade de pensamento”? Companheiro Granja logo nos explica:
A unidade de pensamento só pode ser entendida como uma unidade na diversidade, um pacto entre diferentes que preserve a livre expressão do pensamento. Por isso, a edificação de um pensamento coletivo é uma negociação, o que não descarta a divergência, mas busca harmonizá-la pela tecedura de uma teia consensual inclusiva em torno das questões centrais para o desenvolvimento da luta política. E não devemos esquecer que o pensamento coletivo sempre é uma síntese dialética, portanto provisória, inconclusa, um devir, um fluxo que nunca alcança o seu termo, pois está em permanente reprocessamento.
Aqui, chegamos em um ponto muito fundamental. A consolidação dos bolcheviques, “modelo” do centralismo democrático leninista, pode muito bem ser expresso pela primeira frase do parágrafo acima. Aliás, nunca é demais lembrar que Lênin, em sua polêmica com os “economicistas” (futuramente, “mencheviques”), defende em absoluto sua liberdade de polêmica na publicação do Partido:
Sim, senhores, são livres não somente para convidar, mas de ir para onde bem lhes aprouver, até para o pântano; achamos, inclusive, que seu lugar verdadeiro é precisamente no pântano, e, na medida de nossas forças, estamos prontos a ajudá-los a transportar para lá os seus lares. Porém, nesse caso, larguem-nos a mão, não nos agarrem e não manchem a grande palavra liberdade, porque também nós somos “livres” para ir aonde nos aprouver, livres para combater não só o pântano, como também aqueles que para lá se dirigem! [1]
Aqui é, portanto, onde vemos a diferença importante entre o camarada Lênin e o companheiro Granja. Para Lênin, a teoria revolucionária é também um “permanente reprocessamento”, uma “síntese dialética”, mas que expressa, na luta teórica, as posições objetivas de diversas classes sociais em disputa na sociedade, queiram os seus representantes ou não. O desafio, para Lênin, é construir um partido que não se contente com “uma teia consensual inclusiva em torno das questões centrais para o desenvolvimento da luta política”, mas uma determinada “unidade na diversidade” que tenha como princípio a posição do proletariado, ou seja, que corresponda às suas tarefas objetivas na luta pela revolução. O desafio não é o de constituir amplos partidos, com todos os trabalhadores, que se confundem na sua ação com os parlamentares radicais e com os sindicatos, isso é um processo que é possível por meio da consciência espontânea. A necessidade, contudo, é de outra ordem: é a de constituir um operador político que aja como vanguarda das lutas políticas, econômicas e teóricas do proletariado. O objetivo não é harmonizar as tendências teóricas nocivas dentro da classe trabalhadora – é combatê-las duramente, no plano da discussão teórica.
Que não se queira, pois, resolver divergências políticas quer pelo princípio leninista da subordinação da minoria à maioria (o que obriga a dizer), quer pela imposição do silêncio misericordioso de inspiração papal (o que proíbe de dizer). Muito menos quando se trata de questões que mobilizam convicções de foro íntimo (religiosas ou não).
Ao fim, companheiro Granja apresenta de novo alguns argumentos fracos, porque cheiram a espantalho. Nenhum partido leninista resolve “divergências políticas” pelo princípio leninista (e é preciso dizer: democrático) da subordinação da minoria à maioria – resolve as questões práticas por esse princípio. Nenhum partido leninista usa de “imposição do silêncio misericordioso de inspiração papal”, mas organiza a polêmica.
Em resumo, podemos dizer que há inúmeras imprecisões históricas e um certo olhar sobre o leninismo de quem talvez tenha pulado por sobre alguns textos centrais no debate sobre o centralismo democrático.
Mas apenas fazer a análise do texto do companheiro Granja é, ainda, insuficiente. Se escrevemos esse texto, é para reafirmar algo que apresentamos como “dado” na análise do companheiro Granja, mas que, infelizmente, temos que entender que é uma divergência dele com a teoria marxista-leninista: a estratégia revolucionária.
Uma organização para uma estratégia
O debate sobre a estratégia correta para a classe trabalhadora no Brasil conquistar o socialismo não pode ser resumido em poucas linhas ou páginas. Nosso objetivo aqui é tratar, apenas como forma de introdução ao tema, dos pontos centrais da reflexão que compreende a existência de condições objetivas para a conquista do poder pela classe trabalhadora pela via revolucionária e por nenhuma outra. É a partir dessa compreensão que podemos entender qual forma organizativa melhor serve para a luta do proletariado brasileiro – e, em grande medida, mundial – no rumo do socialismo.
Em primeiro lugar, colocando em perspectiva crítica a posição do companheiro Granja de que vivemos uma “democracia política” e que isso alteraria estruturalmente a forma partidária necessária, é preciso considerar que as condições da democracia burguesa são condições, ao mesmo tempo, da ditadura burguesa. Como o próprio cita, com o aporte de Gramsci, as sociedades de tipo “ocidental”, como é de fato o caso do Brasil, conjugam a dominação burguesa por meio do chamado “Estado ampliado”, isso é, do aparelho burocrático-administrativo burguês junto ao aparelho burguês na sociedade civil, organizado a partir de inúmeras iniciativas. É por meio desse binômio que se articulam os momentos da coerção e do consenso – e, observemos, não de forma automaticamente correspondente ao “Estado restrito” e à “sociedade civil”, uma vez que também o aparato burocrático-administrativo engaja-se na produção de consenso (com a escolarização precária, por exemplo) e os aparelhos privados de hegemonia, na produção da coerção (com os grupos cada vez mais organizados de milicianos, por exemplo).
Assim, é algo absolutamente necessário que entendamos o caráter plenamente burguês da formação social brasileira, especialmente se considerada no século XXI. A predominância das relações capitalistas de produção, do assalariamento, das formas republicanas (de tipo capitalista dependente), em suma, toda a organização da estrutura e da superstrutura no Brasil nos permitem (ou, melhor ainda, exigem) compreender que o caráter do processo emancipatório da classe trabalhadora em nosso país não pode ser outro senão um caráter socialista, ou seja, propriamente proletário, no sentido de um conjunto de medidas políticas e econômicas que sejam expressão dos interesses objetivos do proletariado.
É verdade que passamos, dentro desse cenário, por uma fase de recrudescimento das condições econômicas, políticas e teóricas dentro da nossa classe. O impacto da hegemonia do reformismo no seio do movimento dos trabalhadores é intenso, do ponto de vista teórico, e o impacto da ofensiva burguesa sobre direitos sociais, trabalhistas e democráticos, do ponto de vista econômico e político. Assim, tampouco é óbvio afirmar o caráter do processo de transformação social brasileiro como “socialista”. Sobre esse aspecto, não me detenho mais porque creio que as principais formulações-guia dessa análise já foram feitas pelo camarada Edmilson Costa, em seu artigo O Brasil está maduro para o socialismo [6].
No entanto, ainda é preciso defender não apenas a atualidade do socialismo, mas da Revolução Socialista como estratégia para a atual quadra histórica de desenvolvimento das lutas da classe trabalhadora no rumo do poder. Isso significa não apenas disputar a “democracia política”, mas, compreendendo seu limite estrutural (determinado por seu conteúdo de classe burguês), apontar que a reorganização da sociedade deve ocorrer com base em outra forma de poder independente e autônomo do proletariado, o Poder Popular. As Resoluções do XVI Congresso Nacional do PCB expõem isso da melhor forma possível, ainda que cobrem que nos desculpemos ao leitor pela longa citação:
86) A construção do poder proletário/popular não se resume à mera negação institucional ou qualquer tipo de paralelismo autonomista, mas ocupa ativamente todos os poros da institucionalidade atual, guiada por um projeto histórico de negação da ordem capitalista, portanto, partindo da afirmação revolucionária segundo a qual os meios necessários à vida não podem ser apropriados privadamente, que nenhum ser humano pode se apropriar de outro para transformá-lo em mercadoria, que os bens de primeira necessidade e os serviços necessários à produção e reprodução social da vida são patrimônio de toda a humanidade e não podem ser apropriados privadamente. É necessário ir construindo, a partir de agora, a partir da velha ordem, um duplo poder, uma ordem institucional e política própria dos/as trabalhadores/as, fundada e fundante de uma nova cultura proletária e popular, capaz de dar unidade ao bloco proletário e colocá-lo em movimento na luta contra a ordem burguesa.
87) O tema do Poder Popular apontado pelas resoluções do XIV Congresso do PCB ganhou, na conjuntura atual, uma nova dimensão, uma vez que se tornou uma palavra de ordem que encontrou grande repercussão no movimento de massas e entre várias organizações de nosso campo de ação política. Ao afirmar a necessidade de construir um Poder Popular, o PCB chama a atenção para um processo político que não pode ser confundido com instâncias e organizações de massa ou articulações políticas entre os partidos de esquerda, isto é, não é um mero elemento de ação tática. Este processo se desdobra em pelo menos quatro momentos fundamentais, que articulam o plano tático e o estratégico.
88) A luta pelo Poder Popular se expressa nas ações independentes da classe trabalhadora em seus embates contra as manifestações mais evidentes da ordem do capital, os quais ganham a forma mais expressa de mobilizações, greves e movimentos que colocam em marcha os diferentes segmentos do proletariado e da classe trabalhadora em geral. Neste aspecto afirmamos que o Poder Popular existe já em germe na construção da autonomia e da independência de classe destes movimentos que se chocam com o bloco conservador e sua política em defesa da ordem burguesa, através das organizações próprias da vida cotidiana, da organização e da resistência da classe trabalhadora (movimentos sociais, sindicatos, organizações e partidos de esquerda, fóruns de luta pela saúde, educação, moradia, transporte, etc.), ainda que, neste momento, atuem de forma fragmentada e sem a unidade política necessária.
89) Essas lutas e os enfrentamentos tendem a se intensificar e, diante da reação esperada do poder burguês, caminhar no sentido da necessária unidade programática em torno de eixos comuns de luta que unifiquem as demandas setoriais apresentadas de forma fragmentada em uma pauta cada vez mais precisa de bandeiras e reivindicações, sob as quais o movimento de massas define sua independência em relação aos governos da ordem e ao bloco dominante, dando forma ao campo popular e de esquerda.
90) A culminância das lutas de massas e das resistências desenvolvidas aponta para o aprofundamento da autonomia do campo popular expressa nas bandeiras de luta, na pauta das demandas apresentadas e em formas organizativas capazes de se configurar como força política contraposta ao bloco dominante e como alternativa de poder, formulando um programa político de transformações necessárias de caráter anticapitalista. Neste momento, o Poder Popular encontrará as formas organizativas necessárias que não podem ser antecipadas (Conselhos, Assembleias Populares, Comitês, etc).
91) No quadro de uma situação revolucionária ou pré-revolucionária, esta construção política pode e deve assumir a forma de uma dualidade de poderes que prepare as condições para os enfrentamentos decisivos contra as classes dominantes e seu Estado – a ditadura da burguesia –, combinando formas diretas de luta que possibilitem a constituição de uma real alternativa de poder dos/as trabalhadores/as. Neste momento, o Poder Popular assume toda sua potencialidade como germe de um novo Estado sustentado pelas massas populares e pela classe trabalhadora, na perspectiva da transformação radical da sociedade. Plenamente desenvolvido em seu potencial, o Poder Popular se converte em germe de um Estado Proletário – a Ditadura do Proletariado – que conduzirá a transição socialista visando erradicar a propriedade privada, as classes e, portanto, o próprio Estado através da livre associação dos produtores. [“Programa de Lutas”, XVI Congresso Nacional do PCB]
Assim, mesmo consideradas as condições das liberdades democráticas e relativa estabilidade da república democrática burguesa (relativa, entre outras coisas, porque a duração mais longa de nossa “normalidade democrática” não chegou a 30 anos, porque o ciclo iniciado em 1989 teve uma forte ruptura com o golpe de 2016), colocamos a atualidade do processo revolucionário, ou seja, de que uma ruptura com a própria estrutura burguesa do Poder de Estado é uma necessidade para os avanços estruturais da classe trabalhadora no rumo de sua emancipação.
Sobre essa síntese estratégica, a da Revolução Socialista, também adoraria que os leitores tivessem contato com o artigo escrito por mim e pelo camarada Jones Manoel, Um passo atrás para dar dois mais atrás ainda: a “reversão neocolonial” e a estratégia democrática de Plínio Sampaio Jr. [7].
Assim, conseguimos constatar a atualidade do leninismo e da teoria revolucionária marxista (em que pese toda a teoria reformista baseada em Marx) como fundamentos indispensáveis para a disputa de consciência dentro da classe trabalhadora hoje. Só uma classe trabalhadora que possa construir, a partir de si mesma, um núcleo revolucionário, uma vanguarda, que atue incansavelmente na formação e educação teórico-política e no direcionamento tático-político terá condições de constituir-se como classe independente e imbuída, subjetivamente, de seus interesses objetivos, organizando-se assim para a luta revolucionária que virá.
Da mesma maneira, se o conteúdo de um partido do proletariado em sua luta revolucionária é o conteúdo leninista (que advoga pela luta de classes como fundamento da realidade social e pela revolução socialista como objetivo de transformação dessa realidade), a forma partidária tem de ser construída de modo a dar consequência para isso. Nos vários argumentos do companheiro Granja, podemos ver uma tentativa (honesta, sem dúvida nenhuma) de compreender as organizações políticas como espaços do consenso, da liberdade de expressão, da livre expressão do pensamento individual. É preciso contrapor a isso o partido como “Estado-maior do proletariado”, o partido como operador político da guerra entre duas classes antagônicas na sociedade burguesa e, a partir de sua funcionalidade, compreender sua forma de funcionamento.
O centralismo democrático, nesse sentido, nada mais é do que a forma mais acabada, superior, de luta interna e resolução prática para o funcionamento de uma organização política que possa dirigir, contra todo o aparato da burguesia, mesmo em seu período democrático, uma luta ferrenha contra ela. É por meio do centralismo democrático que as divergências teóricas não paralisam o partido e garantem sua democracia – tudo ao mesmo tempo. Ele é nada mais do que um método de trabalho fundado na necessidade de garantir condições para a luta contra as formas de consciência atrasadas que possam pôr a perder o papel dirigente do partido.
Negar a possibilidade de qualquer organização da classe trabalhadora, seja qual for seu método de organização, degenerar para expressar os interesses objetivos de outras classes – como foi a mudança dos bolcheviques até fins dos anos 1930 para os mesmos bolcheviques após os anos 1930; como foi a degeneração do SPD alemão de ter Marx e Engels como colaboradores a ter Friedrich Ebert como algoz de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht – seria desonestidade intelectual e falsidade histórica. As formas políticas podem, em diversos momentos, entrar em contradição com seus conteúdos originais de classe e, aí, essas contradições continuam a operar até que haja mudanças qualitativas no seio dessas organizações políticas.
Defender, portanto, a estratégia da Revolução Socialista para o Brasil, de maneira consequente, significa, ao mesmo tempo, defender a existência e a construção de um partido leninista, uma vanguarda capaz de conduzir politicamente o proletariado em sua luta. Por sua vez, essa vanguarda tanto estará mais preparada quanto tiver claros seus métodos de discussão e deliberação – e o centralismo democrático é o que melhor conjuga a diversidade de posições da liberdade de crítica com a disciplina férrea da unidade de ação.
Gabriel Lazzari é bancário e formado em Letras pela USP. Membro do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro e Secretário Político Nacional da União da Juventude Comunista. Co-organizador da coletânea “O Centralismo Democrático de Lênin”, lançada pelo LavraPalavra Editorial em 2020.