Paulo Henrique de Almeida Rodrigues1
Thauanne de Souza Gonçalves2
Nercilene Santos da Silva Monteiro3
Amanda de Lucas Xavier Martins4
1 Doutor em Saúde Coletiva, professor associado do Instituto de Medicina Social Hesio Cordeiro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ), líder do grupo de pesquisa Saúde, Sociedade, Estado e Mercado (Grupo SEM).
2 Doutoranda do Instituto de Medicina Social Hesio Cordeiro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ), integrante do Grupo SEM.
3 Doutora em Saúde Coletiva pelo IMS/UERJ, Vice diretora de Gestão e Desenvolvimento Institucional da Casa de Oswaldo Cruz (Fiocruz), integrante do Grupo SEM.
4 Professora adjunta do Departamento de Enfermagem em Saúde Pública da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, integrante do Grupo SEM.
A inserção da América Latina no sistema capitalista industrial internacional, contudo, não trouxe para os países periféricos os resultados obtidos pelos países centrais, ficando claro que os padrões de produção e de consumo não eram facilmente reproduzíveis. […] É a partir dessa observação que surgiu o interesse em escrever este artigo, como parte dos esforços que procuram resgatar a TMD no âmbito da academia contemporânea, adotando esse referencial para debater a situação de dependência do Brasil no campo da saúde coletiva.
Introdução
As relações entre o desenvolvimento e a saúde despertam debates e controvérsias desde a viagem realizada pelos médicos Belisário Penna e Artur Neiva em 1912 pelo interior da Bahia, Pernambuco, Piauí e Goiás. Os médicos produziram o “Relatório Médico-Científico”, publicado em 1916, que apresentava um quadro de pobreza, doença e abandono das populações do interior do país e chamou a atenção para a necessidade de políticas de integração nacional pelo governo federal, entre as quais se destacava o saneamento (CAIXETA, 2016). Um dos resultados palpáveis foi a criação da Liga Pró-Saneamento do Brasil (1918) (SANTOS e FIGUEIREDO, 2015, p. 75), crítica à descentralização administrativa por dificultar o combate às doenças endêmicas. Belisário e Neiva consideravam pouco o país ter apenas uma Diretoria Geral de Saúde Pública e defendiam a necessidade da criação de um ministério da saúde (LIMA, FONSECA e HOCHMAN, 2005, p. 36) para ampliar a presença e a liderança do Estado surgindo assim a ideia da saúde como parte do desenvolvimento nacional.
Nos anos de 1960, os chamados sanitaristas desenvolvimentistas inverteram a equação que prevaleceu, de certa forma, até os anos 1940 de que a doença era a origem da pobreza. Para eles, o desenvolvimento econômico, fruto do planejamento e uma infraestrutura adequada é que criaria condições para a melhora das condições de vida e da saúde humana. Segundo Sarah Escorel,
O pensamento sanitarista desenvolvimentista gira em torno da ideia-força de que o nível de saúde de uma população depende em primeiro lugar do grau de desenvolvimento econômico de um país ou região e que, portanto, as medidas de assistência médico sanitária são, em boa medida, inócuas quando não acompanham ou integram esse processo (2015, p. 2459).
Como se pode ver, o tema proposto por este artigo se enquadra na tradição dos debates que pensam a saúde como um dos elementos do desenvolvimento, aspecto que, embora tenha se enfraquecido relativamente nos últimos tempos ou venha se apresentando quase que exclusivamente pelas lentes neoclássicas ou do estruturalismo, permanece como elemento central. A proposta aqui trazida é de certa forma inédita, uma vez que propõe uma discussão teórica a partir dos conceitos centrais da Teoria Marxista da Dependência (TMD) e da tentativa de associar tais conceitos à Economia Política da Saúde no Brasil.
Passando para a questão do desenvolvimento econômico no plano mundial, é importante considerar que ao final da Segunda Guerra Mundial se tornou hegemônica a teoria de desenvolvimento proposta por Walt Rostow (1961), que indicava estágios necessários para o desenvolvimento dos quais fariam parte momentos de ’decolagem’ (take-off), como os ocorridos na Inglaterra com a revolução industrial (1769-1784) e nos EUA a partir da Guerra de Secessão (1861-1865). O trajeto por esses estágios necessários poderia conduzir ao desenvolvimento de qualquer economia. Essa teoria definia normas de comportamento convencionadas como ’modernidade’ como receita para o desenvolvimento em geral e em especial para os países subdesenvolvidos.
A inserção da América Latina no sistema capitalista industrial internacional, contudo, não trouxe para os países periféricos os resultados obtidos pelos países centrais, ficando claro que os padrões de produção e de consumo não eram facilmente reproduzíveis. Ao analisar esse fenômeno, o estudo da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) elaborado por Raúl Prebisch e Celso Furtado (1951) demonstrou que o sistema internacional de trocas gerava vantagens para o centro do sistema capitalista, em função da valorização ao longo do tempo dos produtos dos países industrializados em relação aos produtos dos países da periferia do sistema, compostos principalmente por produtos primários minerais ou agrícolas. Isso implicava em subordinação dos países latino-americanos aos países centrais por meio de um mecanismo que denominaram de deterioração dos termos de troca. Tal situação configuraria na dependência econômica estrutural dos países periféricos em relação aos países centrais que para ser superada demandava uma intervenção do Estado no sentido de promover uma industrialização por substituição de importações (CEPAL, 1951).
A formulação de centro e periferia econômica veio a ser apropriada por diversos autores que se dedicaram a aprofundar e desenvolver elementos de análise para compreender e enfrentar as contradições do capitalismo dependente que se desenvolveu na América Latina e em outras regiões subdesenvolvidas. A reflexão sobre o tema fez surgir diferentes vertentes, ou versões, da teoria da dependência que ocuparam relevantes espaços de debate nos anos de 1960 e 1970 na região. Porém no Brasil, por circunstâncias históricas circulou principalmente a versão da Teoria da Dependência Associada (TDA) de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto.
Fernando Correa Prado denunciou em seu texto sobre o ‘não-debate’ (2011), ter havido um silenciamento das contribuições da TMD devido à censura e perseguições políticas, além da distorção intelectual a que o marxismo foi submetido na academia e entre os estudiosos do desenvolvimento, principalmente durante o período da ditadura militar. Isso facilitou o predomínio da interpretação da TDA sobre a dependência.
Do mesmo modo, no campo da Saúde Coletiva outros referenciais teóricos não marxistas predominaram nos debates sobre a chamada economia da saúde. Pode-se dizer que prevalece no Brasil uma abordagem econômica baseada na teoria neoclássica, que é a mais utilizada como referencial teórico, além do crescimento mais recentemente do referencial estruturalista mais crítico do Complexo Econômico Industrial da Saúde (CEIS), hoje presente na política do Ministério da Saúde. Eduardo Levcovitz (2022) situa nos anos 1990 – quando se deu a introdução e o auge da política neoliberal no Brasil – um conjunto de iniciativas que levaram o referencial neoclássico a se tornar hegemônico. Esse crescimento afastou outros referenciais, de abordagens macroanalíticas, que valorizam os aspectos históricos, as relações entre as classes sociais e consideram o papel do Estado no desenvolvimento econômico e social, particularmente a Economia Política de cunho marxista, inclusive a TMD.
É a partir dessa observação que surgiu o interesse em escrever este artigo, como parte dos esforços que procuram resgatar a TMD no âmbito da academia contemporânea, adotando esse referencial para debater a situação de dependência do Brasil no campo da saúde coletiva.
Antecedentes
A questão da dependência foi levantada de forma pioneira por Vladimir I. Lenin em “O Imperialismo, Etapa Superior do Capitalismo” de 1916, no qual o autor se referia à existência de ‘países dependentes’ ou ‘semidependentes’ (colônias e semicolônias), os quais são explorados pelo capitalismo financeiro sediado nos países imperialistas (LENIN, 1958). Pode-se dizer que a Rússia, depois União Soviética, foi o primeiro país capaz de romper essa dependência. Depois da revolução socialista de 1917 até a Segunda Guerra Mundial, a Rússia foi afastada do ‘centro do sistema interestatal capitalista’ (FIORI, 2014, p. 17), tendo sido obrigada a se industrializar por esforço próprio logrando escapar da situação de dependência, conseguindo desenvolver um grande parque industrial e melhorar as condições de vida e de educação de sua população (KUROMIYA, 1988). Com o término da guerra e a aceleração do processo de descolonização, alguns países, como a Índia e outros da América Latina, inclusive o Brasil, realizaram esforços no sentido da construção de uma base industrial por substituição de importações que assegurasse condições de soberania econômica.
O nacionalismo econômico do século XIX constituiu outro antecedente clássico da discussão sobre as condições de desenvolvimento soberano de um país. A Alemanha foi o exemplo mais destacado de formulação de uma estratégia coerente e explícita de desenvolvimento econômico, voltada para o estabelecimento de condições de soberania em desafio à ordem imposta pela hegemonia britânica na época, sendo sua principal expressão as ideias de Georg Friedrich List (CHANG, 2004; e FIORI, 2014). Tal estratégia foi adotada efetivamente e com grande sucesso após a unificação alemã (1864-1870), promovida pelo chanceler da Prússia Otto Von Bismarck (CHANG, 2004).
A América Latina teria de esperar a Grande Depressão de 1929 para começar a romper com o liberalismo econômico propagado e imposto pela Inglaterra e adotar políticas protecionistas para enfrentar a crise. O Brasil após a Revolução de 1930, constituiu um exemplo destacado de construção de uma alternativa nacionalista, ou nacional-desenvolvimentista, voltada para o desenvolvimento econômico centrado na industrialização por substituição de importações a partir do intervencionismo estatal. Deve-se ressaltar, entretanto, que houve variações na intensidade da intervenção estatal ao longo do tempo, enquanto a presença do capital estrangeiro foi constante em setores importantes da economia do país (MENDONÇA, 1986; FAORO, 2001; e BASTOS, 2012).
Em fevereiro de 1948, a Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou a criação da Comissão Econômica para a América Latina – CEPAL (FURTADO, 1985, p. 63; e GONÇALVES, 2011, p. 26). A Comissão foi dirigida, a partir de 1949 pelo argentino Raul Prebisch, tendo sido nela formuladas as primeiras ideias que fundamentaram um projeto econômico baseado na industrialização por substituição de importações voltado para a redução da dependência dos países latino-americanos. As ideias da CEPAL foram sintetizadas no “Economic Survey of Latin America”, de 1949 (1951), o primeiro documento teórico que fundamentou para a região a necessidade de políticas de desenvolvimento centradas na industrialização sob o comando do Estado. E foi no Brasil, segundo Celso Furtado (1985, p. 106), que as ideias da CEPAL encontraram mais eco entre os países da região.
Nos governos de Vargas (1930 e 1945; e 1950-1954), o Estado brasileiro abandonou o liberalismo econômico e passou a intervir na economia abrindo o período do nacional-desenvolvimentismo, que mudou profundamente a história do desenvolvimento no país. É importante assinalar, contudo, que até os anos 1950 não havia uma teoria desenvolvimentista clara, além das ideias positivistas. Foi necessário o desenvolvimento teórico promovido a partir da CEPAL para mudar esse cenário e abrir espaço para o nascimento das diferentes correntes da teoria da dependência. O primeiro governo Vargas foi interrompido pelo golpe militar que colocou no poder o governo do general Eurico Gaspar Dutra em 1946, inteiramente alinhado ao imperialismo estadunidense (SKIDMORE, 1982; BANDEIRA, 2011).
Com o retorno de Vargas ao poder em 1951, os projetos nacional-desenvolvimentista e o pensamento cepalino se encontraram finalmente (FURTADO, 1985). Foi nesse governo que foram erguidos importantes pilares do projeto nacional-desenvolvimentista como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), a Petrobrás, e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES) e o Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq).
O nacional desenvolvimentismo gerou tensões e ameaças dos EUA, fazendo com que Vargas facilitasse o investimento do capital estrangeiro e associações entre empresas nacionais e estrangeiras. As iniciativas econômicas de Vargas o colocaram em confronto também com os interesses da burguesia interna, do setor agroexportador, fornecedores de matérias-primas baratas e alinhadas com os interesses estadunidenses. A imensa pressão externa e interna levou Vargas ao suicídio em 24 de agosto de 1954 e dez anos depois, levou ao golpe de 1964.
As três versões da Teoria da Dependência
Até agora apresentamos brevemente a primeira versão da teoria da dependência, a cepalina, desenvolvida por Prebisch e Furtado. A segunda, já mencionada, é a de Cardoso e Faletto, que considera possível o desenvolvimento na dependência, ou seja, subordinado ou ‘associado’ ao imperialismo. Como afirmou Theotônio dos Santos, essa versão aceita “a irreversibilidade do desenvolvimento dependente e a possibilidade de compatibilizá-lo com a democracia representativa” (1998, p. 28). A terceira e mais rica em termos conceituais e históricos, foi a Teoria Marxista da Dependência (TMD), que se desenvolveu a partir dos anos 1970 como crítica tanto da proposta da CEPAL, quanto da interpretação recorrente do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que defendia a necessidade de uma etapa ‘nacional-democrática’ da revolução brasileira. Luiz Carlos Bresser-Pereira nomeia as três vertentes da teoria da dependência da seguinte forma: 1) da ‘contradição nacional-dependente’; 2) da ‘dependência associada’; e 3) da ‘superexploração capitalista’ (2010, p. 20-21).
Seguimos com breve descrição da versão do desenvolvimento dependente ou associado, que é de cunho weberiano, embora se utilize de algumas expressões e conceitos marxistas e defende a possibilidade do desenvolvimento em situação de dependência. Cardoso e Faletto chegam a falar num “desenvolvimento dependente” como uma forma distinta de processo de desenvolvimento, como uma “nova ‘situação de desenvolvimento” onde há espaço para uma industrialização (2004, p. 162). Nesta vertente, a industrialização da periferia é não só possível como também resulta da cooperação com o capitalismo monopolista dos países centrais do sistema. Ao invés de ser fruto principalmente de um esforço endógeno com forte presença do Estado, como na vertente cepalina, ela tenderia a ocorrer também por conta de interesses existentes no centro do sistema.
Examinando o processo histórico, é obrigatório constatar a forte presença do capital estrangeiro na industrialização do Brasil, embora deva-se reconhecer que sugerem que tal presença cresceu principalmente quando o nacional-desenvolvimentismo esteve fora do poder – governos Dutra, Juscelino – ou foi derrotado – ditadura militar. A vertente defendida por Cardoso e Faletto acabou predominando não só na política econômica do governo de Cardoso (1995-2002), mas foi em grande parte mantida nos governos de Luís Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff (2003-2014).
A TMD é contemporânea da vertente do desenvolvimento dependente ou associado, mas defende posição diametralmente oposta. Para ela não há possibilidade de desenvolvimento nos países dependentes no âmbito do capitalismo, pois o imperialismo bloqueia os caminhos desses países. Assume a defesa clara de uma saída revolucionária de cunho socialista. Os principais autores dessa corrente foram o alemão Andre Gunder Frank e os brasileiros Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos e Vânia Bambirra, estes três foram militantes da Organização Revolucionária Marxista Política Operária (POLOP), surgida em 1961 (RIDENTI, 2010, p. 28), tendo saído exilados do país após o golpe militar de 1964, o que explica que grande parte de sua obra tenha sido produzida no exterior.
Contribuições teóricas da TMD
Partindo da teoria do imperialismo de Lênin e da teoria do valor de Marx, a TMD define categorias analíticas centrais que caracterizam a situação de dependência: os mecanismos de transferência de valor desses países para os países centrais do sistema internacional capitalista; a superexploração da força de trabalho; a ruptura no ciclo do capital (MARINI, 1973).
A transferência de valor seria feita através de mecanismos econômicos como: a deterioração dos termos de intercâmbio; as remessas de juros do serviço da dívida externa; as remessas de lucros, royalties e dividendos para as matrizes das empresas estrangeiras; a apropriação de renda diferencial e de renda absoluta de monopólio sobre os recursos naturais (LUCE, 2018). Theotônio dos Santos menciona ainda os serviços, em específico os seguros, os serviços técnicos e o pagamento de patentes (2011). Nessa relação pode ser incluída ainda a prática das multinacionais de estabelecerem preços artificialmente elevados para produtos e serviços que vendem para suas filiais nos países dependentes, chamados de preço de preço de transferência, mecanismo de difícil controle por parte dos estados dependentes. Segundo Marini (1973) os países centrais têm a capacidade de iludir a lei do valor, com a precificação de seus produtos de alto valor agregado, argumento semelhante ao utilizado por Prebisch e Furtado no estudo da CEPAL (1951). Enquanto os países dependentes, com a economia baseada na exportação de produtos primários, são forçados a importar tais produtos.
Em 1978, José Serra e Fernando Henrique Cardoso procuraram desqualificar um dos textos mais importantes da TMD, “Dialética da Dependência”, escrito por Ruy Mauro Marini em 1973. Na sua crítica a Marini, Serra e Cardoso chegaram a negar a existência de intercâmbio desigual entre o centro e a periferia do sistema capitalista demonstrada pela CEPAL, assim como buscaram enfraquecer a tese de superexploração da força de trabalho, talvez o achado mais notável de Marini. Neste ponto é fundamental observar que Marini mostra que a superexploração envolve “a intensificação do trabalho, a prolongação da jornada de trabalho e a expropriação de parte do trabalho necessário ao operário para repor sua força de trabalho” (1973, p. 11). Ainda, chama a atenção para o “esgotamento prematuro” dos trabalhadores e que lhes é “retirada inclusive a possibilidade de consumo do estritamente indispensável para conservar sua força de trabalho em estado normal” (1973, p. 11). Destaca que um dos procedimentos da superexploração: “consiste em reduzir o consumo do operário mais além do seu limite normal, pelo qual ‘o fundo necessário de consumo do operário se converte de fato, dentro de certos limites, em um fundo de acumulação de capital” (1973, p. 10).
Segundo Fernando Correa Prado (2011) e Nildo Ouriques (2015), depois da publicação do artigo de Marini em 1973 teria havido uma tentativa de silenciamento da TMD. Prado denunciou um verdadeiro ‘boicote intelectual’ comandado pelo próprio Cardoso e pela instituição que liderava o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – CEBRAP (2011). Ouriques acrescentou que os aliados de Serra e Cardoso no CEBRAP, como Francisco de Oliveira, nunca publicaram os textos de Marini, Santos e Bambirra, enquanto divulgaram a crítica aos mesmos (2015).
A principal crítica de Serra e Cardoso a Marini diz respeito à superexploração da força de trabalho. Tal ideia estava no centro da explicação de Marini sobre os mecanismos de transferência de valores para o exterior, além de ter como consequência as péssimas condições de vida e trabalho impostas à população nos países dependentes. Os mecanismos de superexploração favorecem, segundo Marini, que o fornecimento de produtos primários pelos países periféricos para os países centrais favoreceria a redução dos custos de produção nestes últimos. A superexploração está relacionada também com o predomínio de diferentes formas de extração de mais-valia no centro e na periferia do sistema:
[…] a participação da América Latina no mercado mundial contribuirá para que o eixo da acumulação na economia industrial se desloque da produção de mais-valia absoluta para a de mais-valia relativa, ou seja, que a acumulação passe a depender mais do aumento da capacidade produtiva do trabalho do que simplesmente da exploração do trabalhador. (MARINI, 1973, p. 5)
A mais-valia relativa se distingue da mais-valia absoluta pelo maior emprego de tecnologia e métodos mais elaborados de organização da produção que, na impossibilidade de aumento da jornada do trabalho, permite aos capitalistas reduzir a proporção do tempo de trabalho necessário – que é o que assegura a subsistência dos trabalhadores – e ampliar o tempo de trabalho excedente. Como o desenvolvimento científico e tecnológico está concentrado nos países desenvolvidos, a tendência é que neles prevaleça a extração de mais-valia relativa. Outra importante consequência da superexploração do trabalho, em função dos baixos salários pagos nos países dependentes, é a redução da capacidade de consumo dos trabalhadores,
o que prejudica o desenvolvimento do mercado interno, reforçando outro elemento do capitalismo dependente que é a cisão no ciclo do capital (produção, circulação, consumo). Isso significa que, enquanto nos países centrais as esferas de produção e distribuição estão alinhadas ao padrão de consumo, ou seja, ao nível de renda e educação da população (industrialização orgânica), nas economias dependentes, ocorre uma cisão entre o que o país produz e o que a população tem capacidade de consumir. (RODRIGUES, et al, 2023, p. 4)
A situação de dependência teria caráter estrutural, funcionando como um condicionante concreto do desenvolvimento dos países periféricos, que envolveria uma articulação entre os interesses da burguesia interna com o capital monopolista do centro do sistema capitalista, o que resulta na desnacionalização e na grande penetração do capital estrangeiro nas economias dependentes (BAMBIRRA, 2015).
É importante destacar, ainda, a existência de compromisso interno entre a burguesia industrial e a burguesia agroexportadora pelo fato de ser esta que mantém a relação principal com o mercado externo e gera a maior parte das divisas necessárias à importação de insumos e máquinas necessárias à indústria. A utilização dessas categorias e suas consequências estruturais pela TMD estabelece um marco teórico para a análise e o entendimento da especificidade das formações econômico-sociais dependentes, evitando tratar a realidade desses países com base num referencial voltado para a realidade dos países centrais. Tendo exposto de forma resumida os principais elementos teóricos da TMD, vamos procurar proceder à sua aplicação à Economia Política da Saúde no Brasil
Os mecanismos da dependência e suas consequências sobre a economia política da saúde
Como a situação de dependência implica a transferência para o exterior de uma proporção importante do valor criado no país, ficam limitadas as possibilidades de desenvolvimento econômico dos países dependentes, como o Brasil. Como mostra Marini (1973 e 1978), a superexploração da força de trabalho é um mecanismo compensatório à transferência de valor, utilizado pelos capitalistas internos para assegurar suas taxas de lucro. A superexploração é um elemento estrutural da dependência e envolve: a remuneração da força de trabalho abaixo do seu valor; longas jornadas de trabalho; intensidade elevada do ritmo de trabalho, elementos que levam a um desgaste prematuro da força de trabalho, com sérias consequências negativas sobre o fundo de vida dos trabalhadores (MARINI, 1973, LUCE, 2013).
Deve-se levar em conta, ainda, que a superexploração exige a manutenção de baixa capacidade de luta dos trabalhadores e seu poder de barganha em relação à classe patronal, através de uma elevada superpopulação relativa – desempregados, trabalhadores informais, subempregados –ou exército industrial de reserva, cujas condições de vida são ainda piores do que a dos trabalhadores do mercado formal de trabalho. Pode-se dizer, neste sentido, que a superexploração, ao determinar más condições de vida e saúde dos trabalhadores, gera maior pressão de demanda sobre serviços e sistemas de saúde.
Por outro lado, os baixos salários vigentes reduzem a capacidade de consumo dos trabalhadores e a própria arrecadação tributária dos Estados dependentes, o que reduz sua capacidade de financiar políticas sociais que asseguram a reprodução ampliada da força de trabalho – educação, saúde, moradia, previdência e transportes públicos –, como argumenta Maria A. Moraes Silva (1984). Este último elemento afeta a capacidade de organização e de manutenção de sistemas de saúde pública, como é o caso do Sistema Único de Saúde (SUS), e está na base do seu subfinanciamento estrutural.
A mercantilização da atenção à saúde afeta todos os países, mas no caso dos países de economia periférica, a dependência se torna ainda mais aguda, porque são implementadas políticas para o setor de saúde que visam garantir espaço para a reprodução ampliada do capital para a burguesia interna e estrangeira. A dimensão do setor de saúde na economia gera importantes possibilidades de acumulação privada de capital no setor, fazendo com que tanto o capital interno, quanto internacional, cobrem do Estado condições institucionais que favoreçam sua penetração crescente no setor e taxas de lucro atrativas, com prioridade para o capital estrangeiro, como mostrou estudo recente (RODRIGUES et. al., 2023). A penetração do capital privado na saúde brasileira teve início, ainda na Primeira República, e se intensificou no período do regime militar (1964-1985) e na chamada Nova República. A partir de 1990, em particular, com o advento da ‘novíssima dependência’ (FIORI, 1995), que acabou com as medidas protecionistas existentes anteriormente no setor, aumentando o déficit comercial, assim como a maior penetração do capital estrangeiro. Houve um estímulo à
[…]ampliação da transferência de valor para o exterior, na forma de remessa de lucros, royalties e intercâmbio comercial desigual, favorecendo os interesses da burguesia internacional. Já os interesses da burguesia interna estão assegurados pelo controle dos hospitais privados, que oferecem mais de 60% dos leitos do SUS, […] assim como […] a atenção ambulatorial especializada, controlando 86,8% da oferta (RODRIGUES et. al. 2023, p.6).
Foram políticas estatais as principais responsáveis por esse movimento, utilizando uma variedade de estratégias como subsídios, financiamentos, desmantelamento de proteções e instituições, legislações submissas, políticas de austeridade fiscal, legislação e regulamentação negligentes (RODRIGUES et. al. 2023). Além disso, é necessário considerar a debilidade da legislação e da regulação sanitárias, que correspondem ao que Ricardo Prestes Pazello (2016 e 2018) denomina por ‘formas jurídicas dependentes’ voltadas para promover a circulação de mercadorias, principalmente das empresas estrangeiras e seu efeito na economia política da saúde. Uma das consequências das debilidades da legislação e da regulação no setor é a determinação da compra pelo SUS, via judicialização, de uma quantidade crescente de produtos importados de alto preço, principalmente medicamentos, em detrimento do abastecimento de medicamentos essenciais para a população (SAMPAIO, 2023, VIEIRA, 2018).
A existência do SUS, único sistema universal de saúde entre os seis países mais populosos, assim como de um dos maiores e mais subsidiados setores de seguro privado de saúde do mundo, faz com que o Brasil continue sendo um dos maiores mercados mundiais de bens de saúde (RODRIGUES, et. al. 2023; CAETANO et. al. 2020). O Poder Judiciário é amplamente utilizado como forma da indústria de bens de saúde pressionar a circulação de bens de saúde, especialmente medicamentos de alto custo, no SUS. Há evidências da utilização inclusive de organizações da sociedade civil para influenciar nesse processo (SOARES, DEPRÁ, 2012).
A dependência do país em relação à produção de bens de saúde se agravou com o desmonte de instituições públicas como a Central de Medicamentos (CEME) que visavam desenvolver a produção e distribuição internas de fármacos em favor da população brasileira. A adoção pelo país da legislação de patentes de 1996, é outro fator que favoreceu a importação de tecnologias das matrizes localizadas nos países centrais, o que inclui insumos, equipamentos biomédicos, medicamentos acabados com alta incorporação tecnológica, além da crescente importação de insumos farmacêuticos ativos que contribuem para um crescente déficit comercial na área da saúde (GADELHA, COSTA, BORGES e MALDONADO, 2012; GADELHA e TEMPORÃO, 2018; RODRIGUES, COSTA e KISS, 2018; RODRIGUES, KISS e SILVA, 2022).
Pode-se dizer com base nos elementos apresentados, que a estrutura dependente conforma a Economia Política da Saúde de forma a assegurar a transferência de valor para os países centrais, determinando uma situação de subordinação comercial e tecnológica, agravada pela enorme penetração do capital estrangeiro no setor de saúde. É necessário neste ponto entrar na questão da superexploração do trabalho na saúde.
Neste aspecto, Barreto e Mendes (2023) buscaram demonstrar utilizando indicadores do Anuário dos Trabalhadores da Saúde, publicado em 2018 pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), e as informações contidas na Nota Técnica intitulada “Reforma trabalhista e os trabalhadores da saúde”, publicada em 2019, também do DIEESE, como a força de trabalho da saúde está submetida a condições que indicam superexploração.
A primeira constatação trata sobre a precarização dos vínculos de trabalho. Destaca-se o decréscimo de profissionais com vínculo estatutário, enquanto observa-se o crescimento das contratações por CLT, por cooperativas de trabalho, por terceirização e dos contratos com organizações sociais. Também identificou-se uma alta rotatividade dos profissionais de saúde vinculados ao SUS. Ainda, notou-se o aumento da quantidade de vínculos ou de trabalhos extras, chegando a 2016 com 22% dos profissionais portando mais de um vínculo trabalhista (BARRETO e MENDES, 2023; DIEESE, 2019).
As reformas nos sistemas nacionais de saúde têm demonstrado um aumento paulatino da “mercantilização” nos serviços e na gestão pública da saúde. A “mercantilização”, para além da incorporação efetiva do setor privado na prestação dos serviços, manifesta-se na sua própria lógica de “gestão, remuneração e organização dos sistemas”. Sob a justificativa de aumentar a “eficiência produtiva”, terceirizam ao setor privado a contratação e gestão da força de trabalho para os serviços de saúde (JANSEN-FERREIRA, 2018).
O segundo aspecto da superexploração da força de trabalho da saúde descrita por Barreto e Mendes (2023) foi a remuneração. Foi destacada a ampla desigualdade nesse quesito dentre os trabalhadores do SUS. Primeiro entre diferentes categorias profissionais, com a profissão menos remunerada recebendo em média sete vezes menos que a mais remunerada, em 2016. Segundo, em relação ao gênero e à raça. Em 2016, mulheres recebiam em média 75% da remuneração dos homens. Mulheres negras 60% da remuneração de homens não negros. Enquanto negros em geral tinham remuneração média de 80% da remuneração dos não negros.
Nesse sentido, Castro e Gonçalves (2023), trataram da baixa remuneração da força de trabalho da enfermagem como forma de identificar a superexploração nessa categoria profissional, composta em 2024 por mais de 3 milhões de profissionais registrados (COFEN, 2024), formando mais da metade da força de trabalho do SUS. Utilizando o Salário-Mínimo Necessário (SMN) do DIEESE como padrão para definir o valor-normal da remuneração da força de trabalho brasileira, os autores compararam os resultados da Pesquisa Perfil da Enfermagem Brasileira, publicada em 2014, com o SMN do mesmo ano. Notou-se que, no setor público, 48,4% dos profissionais da equipe de enfermagem (enfermeiros, técnicos e auxiliares) recebiam valores bastante inferiores ao SMN, e 17,5% valores próximos do SMN. Enquanto no setor privado, 54% recebiam valores bastante inferiores ao SMN e 14,2% próximos ao SMN (CASTRO e GONÇALVES, 2023; MACHADO et. al., 2017).
Além disso, a superexploração pode ser facilmente percebida na força de trabalho da enfermagem brasileira quando comparada a organização e proteção do trabalho de um país central. No estudo em perspectiva comparada do trabalho da enfermagem brasileira ao da enfermagem espanhola na Atenção Primária desenvolvido por Martins (2021), podem ser observadas algumas características que revelam a diferença no elemento histórico moral do valor da força de trabalho, jornada e intensidade do trabalho, sendo flagrantes as piores condições de trabalho da enfermagem brasileira.
Ainda, o mais recente processo de luta e conquista do piso salarial responde, mas não soluciona a uma sistemática e estruturante remuneração deficiente da força de trabalho. Mesmo sendo uma conquista importante para a categoria de enfermagem, a remuneração ainda não alcança o que o DIEESE define como salário-mínimo necessário. Em setembro de 2023 o SMN foi considerado em R$ 6.280,00; entretanto, a Lei nº 14.434/2022 instituiu o piso salarial nacional para enfermeiras de R$ 4.750,00, para técnicos de enfermagem R$ 3.325,00 e para auxiliares de enfermagem e parteiras R$ 2.375,00 (BRASIL, 2022).
Outro aspecto sobre a superexploração da força de trabalho é a jornada de trabalho. Castro e Gonçalves (2023) destacaram que 38,6% dos profissionais da equipe de enfermagem possuíam em 2013, jornadas que ultrapassam as 41 horas semanais, com 18,3% trabalhando acima de 60 horas por semana (MACHADO, et. a. 2017).
Barreto e Mendes (2023), destacaram as categorias mais submetidas ao cumprimento de horas extras: os técnicos e auxiliares de enfermagem, os trabalhadores em serviços de promoção à saúde, as enfermeiras e os médicos. Os autores ainda salientam como forma de demonstrar a sobrecarga de trabalho e o prolongamento da jornada que em 2016, 14,2% dos óbitos registrados de profissionais vinculados ao SUS deviam-se a doenças profissionais, enquanto 55,1% eram decorrentes de acidentes de trabalho típicos ou de trajeto. Das aposentadorias, 23% ocorreram por doença, invalidez ou acidente. Ainda, registrou-se um crescimento da taxa de mortalidade de trabalhadores do SUS entre 2012 e 2016 de 41,8 para 70,7 por 100 mil vínculos. Por fim, constatou-se que 54% dos empregos do SUS, tem médio a alto risco para a ocorrência de acidentes de trabalho (DIEESE, 2018, 2019).
Castro e Gonçalves (2023) ainda destacam, como forma de identificar a intensidade do trabalho, que na Pesquisa Perfil da Enfermagem 65,9% dos profissionais da equipe de enfermagem afirmaram considerar sua atividade profissional desgastante (MACHADO et al., 2017).
Cabe ainda ressaltar aqui o trabalho desenvolvido por Machado, et al. (2023) que trata dos óbitos de profissionais médicos e da equipe de enfermagem, categorias de maior atuação direta no combate ao vírus, durante a pandemia da Covid-19. Somadas compunham 72,5% da força de trabalho da saúde no Brasil. Os autores afirmam que a vulnerabilidade dos profissionais é causada pela sobrecarga e precarização do trabalho, agravadas durante a pandemia, o que resultou em muitos afastamentos e óbitos pela doença.
Como resultados da pesquisa, observaram principalmente que entre os médicos, os de especialidades básicas foram os mais afetados durante a pandemia com alto número de óbitos e tinham o perfil principal de homens com mais de 60 anos. Enquanto na enfermagem, os óbitos predominaram entre mulheres pretas e pardas com idade abaixo de 60 anos (MACHADO, et. al. 2023).
Conforme apontam Barreto e Mendes (2023) as técnicas e auxiliares de enfermagem representam quantitativo expressivo da força de trabalho em saúde e se encontram em situações mais precárias de trabalho. Trata-se de mulheres negras que acumulam vínculos adicionais, horas extras e jornadas longas de trabalho, percebem remunerações menores e sofrem elevado número de acidentes de trabalho. O impacto do número de casos e mortes por Covid-19 para este segmento da categoria profissional de enfermagem, sob esgotamento ocupacional e stress crônico anterior, revela o ataque sistemático ao fundo de vida e de consumo destas trabalhadoras indicando a superexploração do trabalho. Ademais, informa o caráter hierárquico da divisão social do trabalho na formação sócio-histórica brasileira, corroborando para face mais expressiva da superexploração na força de trabalho da enfermagem (DAVID et al. 2021).
Ao analisar a força de trabalho da saúde em busca de sinais de superexploração, os encontramos abundantemente, entretanto de diferentes formas nas distintas categorias profissionais. Médicos enfrentam condições de trabalho precárias e prolongamento da jornada de trabalho, contudo os baixos salários não costumam afetar essa categoria. Enquanto para a enfermagem, esses aspectos somam-se à baixa remuneração e a características sociais que determinam condições de vida inferiores, para além da profissão. E além dessas categorias, há ainda uma diversidade de profissões da saúde, que merecem ser analisadas detalhadamente em outros estudos.
Considerações finais
Este artigo busca introduzir a TMD na análise do setor de saúde brasileiro, contribuindo também para contrapor-se ao virtual banimento da economia política, em geral, e do marxismo em particular, das análises no campo da Saúde Coletiva.
O método do materialismo-histórico marxista pressupõe uma busca pela constatação empírica das proposições teóricas. O presente artigo oferece uma abordagem teórica, apoiado em informações que buscam dar concretude à aplicação da TMD nos estudos sobre a economia política da saúde brasileira. Procurou considerar para tanto, os principais elementos estruturantes da situação e do Estado dependente descritos pela TMD, com relação ao setor de saúde no país.
Dentre esses elementos, a superexploração é uma das faces mais perversas, sendo por isso o mais atacado por alguns intelectuais de projeção no Brasil. Ressalta o ataque aos interesses dos trabalhadores, que ocorreu no período da ‘novíssima dependência’ iniciado nos anos 1990, quando começaram as chamadas reformas trabalhista e previdenciária, assim como na administração pública, em geral e em particular na gestão da saúde. Ao contrário dos alegados ganhos em eficiência e produtividade que procuraram justificá-las, os resultados agravaram as condições de trabalho e remuneração da força de trabalho em saúde, a disponibilidade e a fixação de profissionais, assim como a regularidade e a qualidade dos serviços públicos de saúde, sobretudo para os mais pobres.
A análise das condições da força de trabalho em saúde no nosso país se mostra tão importante na fase atual do capitalismo, quanto foram as análises da classe operária no capitalismo industrial. Segundo Druck, o Estado em sua fase neoliberal transformou bens públicos em mercadorias com o objetivo de obtenção de lucro, afetando a “existência de um conjunto de trabalhadores cujo trabalho não é produzir mercadorias, mas bens coletivos socialmente necessários” (2022, p.82). Esses trabalhadores, que são os atores centrais na produção pública de serviços essenciais, vêm sendo cada vez mais sujeitos aos interesses da acumulação privada do capital no setor.
Além da superexploração da força de trabalho da saúde, as formas de transferência de valor presentes na economia política da saúde e as formas políticas do Estado dependente que limitam o desenvolvimento das políticas de saúde devem compor uma agenda de pesquisa, que este estudo pretende incentivar. Consideramos que a compreensão das características da estrutura dependente no setor de saúde e das possibilidades e limites das políticas de saúde num Estado dependente como o brasileiro é essencial a transformação radical da realidade e para o futuro da saúde pública no Brasil.
Em diferentes momentos da história brasileira, a relação entre a saúde pública foi e o desenvolvimento foram objeto de exame e de políticas públicas, mas estas esbarraram sempre nos limites impostos pela situação de dependência. Entendemos que a compreensão dos mecanismos da dependência na saúde ajude a criar as condições necessárias para a transformação da sociedade e da saúde pública, superando os limites que vêm impedindo que os sonhos de gerações de sanitaristas do século XX possam se tornar realidade.
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