Em matéria publicada em SéculoDiário.com, que reproduzimos a seguir, Rogério Medeiros faz de uma conversa com Clementino Dalmácio Santiago uma verdadeira homenagem a este homem, falecido na última semana aos 103 anos de idade.
Militante do PCB desde 1934, participou da organização da Aliança Nacional Libertadora no Espírito Santo em 1935. Em 1946 com a legalidade do PCB, foi candidato à Assembleia Legislativa recebendo 110 votos, nesta eleição o PCB elegeu Deputado Estadual o cavoqueiro Benjamin de Carvalho Campos. Foi o primeiro comunista capixaba a se reconhecer publicamente como tal no comício comemorativo ao Dia do Trabalho em 1º de maio de 1945.
Fui chegando na sua casa e saudando-o com o respeito de quem estava diante de uma figura legendária do comunismo capixaba:
Como vai esse grande homem ?
Bom dia, seu Clementino!
‘Olha, meu jovem, nem grande e muito menos seu Clementino, mas simplesmente Clementino, seu criado, ou então o companheiro Clementino.”
Jovem também não, Clementino. Já passo dos 60.
”E eu, que estou chegando aos 92 ? Foi bom você aparecer. Outro dia estava dando risada sozinho aqui em casa lembrando de uma confusão com o seu pai.”
Confusão com o meu pai ? Mas sempre soube que ele, apesar de conservador, era amigo dos comunistas. Por quê brigaram com ele ?
” Fomos na serraria dele para conversar com um companheiro que trabalhava lá e vimos que os operários tomavam água numa talha com pó de serra. No outro dia o nosso jornal (‘A Folha Capixaba’) deu um cacete nele. Ele entrou feito uma fera no jornal dizendo que quando a gente precisava de dinheiro para botar o jornal na rua, ia pegar com ele. Quando precisava de madeira para fazer barraco de um companheiro, pegava lá na serraria e quando precisava de empregar algum dirigente do partido perseguido, era também lá na serraria. Mas Cyro, ponderamos, comunismo é isso, defender os operários até nas mínimas coisas. Ele botou água filtrada e continuou ajudando os comunistas. Matou a fome de muitos companheiros.”
Gostei muito da história do meu pai – disse para ele- até fico feliz em saber da sua contribuição à causa de vocês …
Cortei seu relato antes que a emoção tombasse este velho repórter, acostumado à emoção dos outros.
Não deveria também me desviar do trabalho de extrair o máximo dessa figura que, junto com outros poucos companheiros, fundou o PCB no Espírito Santo e manteve-se fiel a ele todo o tempo.
Quem não gostaria de estar diante de uma figura assim? Se a questão então é emoção, certamente estava diante dela própria, pois Clementino, para se manter comunista até os 92 anos, com 74 anos de militância, tomou muita cadeia, foi discriminado, perseguido pelas elites e cassado pelos militares, mas estava ali firme, mais convencido do que nunca, que os comunistas ainda promoverão a paz mundial.
etomei a palavra dizendo a ele que eu estava ali para escutar a sua história, que na verdade é a história do último fundador, ainda com a vida, do Partido Comunista Brasileiro no Espírito Santo.
“Tem o Granja também. O resto realmente morreu.”
Mas estou tratando só de capixaba. O Granja é pernambucano – ponderei.
“Diz isso pra ele. Ele vai virar bicho. Ele briga com você se disser que ele não é capixaba, pois aqui ele viveu os seus melhores momentos políticos. A chegada dele ao Espírito Santo foi importante demais para a vida do partido. Granja chegou no Espírito Santo à frente de 200 operários que vieram para construir vagões para Vitória-Minas.
Naquele tempo quando a gente fazia comícios, não aparecia ninguém. Quem ia a comício de comunista ? Mas depois que o Granja chegou a gente pelo menos seus 200 operários. E não é que nós, com aquele preconceito contra o burguês, andamos desconfiando dele ? O Granja gostava de uma camisa de seda pura. Gostava de uma caneta Parker e não tirava do dedo o anel de ouro. Que raio de comunista é esse – diziam os companheiros – que mais parece um burguês ? Mas o bicho era do bom comuna velho, foi vereador pelo partido em Cariacica.”
” o Hermógenes (Hermógenes Lima Fonseca), Clementino ?
Fiquei esperto para conquistá-lo para o partido. Aí veio a formatura dele e ele me procurou para ajudá-lo no discurso, pois havia sido escolhido orador da turma. Passei para ele um livro sobre o capitalismo (História da Época do Capitalismo Industrial). E ele fez um discurso bom.
Depois desse seu discurso, foi fácil trazê-lo para o partido. Ele tinha vindo do interior para Vitória com sua mãe viúva. E ela aqui casou com um estivador que era conhecido como capitão. Neste tempo o Hermógenes era conhecido como capitãozinho. Depois ele dirigiu o jornal do partido Quer saber de uma coisa ? Hermógenes trabalhou muito no partido, sofreu por causa dele, mas ele era mesmo é folclorista. Tenho saudades dele. Como tenho saudades dos outros companheiros que formaram o partido comigo e já se foram.”
Como é que você entra no partido ?
“Entrei depois que li o vermelhinho (estatuto nacional do Partido Comunista do Brasil) e me dei quando ele dizia “o Brasil é um dos países mais ricos do mundo, mas cada ano que passa a maioria do povo fica mais sacrificado e mais pobre.” Foi isso que me conquistou. Era por volta de 1923.”
Quem estava a frente do partido ?
“No inicio fui eu o secretário político. Depois fui substituído pelo estivado João Severino Bispo. De partido melhorou muito. Parafuso era um comunista e tanto.
Com ele aqui, elegemos Benjamim Campos, um operário da construção civil, deputado constituinte em 1945, Granja vereador em Cariacica e Hermógenes teve para vereador a maior votação da história do Estado. Com os votos que recebeu, puxou mais cinco vereadores pela legenda.”
Mas vocês conservaram durante muito tempo o partido numa pureza danada. Era todo ele composto de operários. É fato ?
“Sim. Mas depois entrou o dr. Adhemar Neves, um médico sanitarista, o Migues (Antonio Orcine Migues) dono de uma serraria. O Migues sustentava bem o partido, pois tinha alguma posse. O Adhemar vinha de uma família de comunista: Almir Neves, que foi da direção nacional do partido, e Érico Neves. Com a chegada deles nós fundamos o jornal do partido. Sua primeira edição saiu no dia 1º de abril de 1945. A ditadura militar o fechou no dia 1º de abril de 1964.
Olha, eu estou escrevendo essa história, já vai longe. Meus netos estão me ajudando. Não quero contar para você não. Depois ninguém vai querer ler mais o meu livro. Está ali. Já tem mais de 100 páginas escritas. Pega lá.”
Também não quero ver agora, se não vai estragar minha matéria. Vou ficar por aqui, respeitando seu pedido de não ir mais longe com a sua história, mas me diga, antes de encerrar, de que parto do Espírito Santo veio você ?
Meu pai morreu quando eu tinha 4 anos, mas quando vim para Vitória já tinha 11 anos. Nós havíamos sido expulso de um pedaço de terra, que minha avó havia recebido de um coronel e quando ele passou a fazenda para as mãos do dr. Almeida, saímos de lá para cá.
Minha mãe recebeu uma pequena indenização depois e comprou uma casa em Santo Antonio.
Essa terra do coronel é aquela história de uma negra bonita que o coronel mete um filho nela. E este filho era o meu pai. Mas deixa essa história pra lá. É coisa do século passado. Vamos deixar quieto.”
Ah não, não vou deixar não!
Quando o nome do coronel escapava dos lábios de minha avó, era um terror. Todo mundo lá em casa ficava com medo do coronel saber e mandar matar a minha avó. Esse coronel foi presidente do Estado (corresponde ao cargo de governador hoje). Quer dizer que sou um comunista, neto de um presidente de Estado e isso pode manchar a minha biografia de operário. Deixa pra lá”.
Sorriu marotamente. Não houve jeito. Fomos então para as despedidas.
Falamos tanto, mas você ainda não me deu o seu nome todo.
“Sou Clementino Dalmácio Santiago, o homem que nunca morreu e que também não tem inveja de quem já morreu.”