Crítica do Espírito?

Artigo de Astrojildo Pereira para a Revista Fundamentos nº 2 – Julho/1948

Fonte: Biblioteca Nacional/Hemeroteca Digital

“Existe uma crise do espírito? Respondo afirmativamente. Mas como não creio no primado do espírito, acrescentarei que se trata, no caso, justamente, de uma crise de superestrutura, condicionada pela crise geral que se verifica na infraestrutura econômica da sociedade em que vivemos.”

Crise de Superestrutura

Existe uma crise do espírito? Respondo afirmativamente. Mas como não creio no primado do espírito, acrescentarei que se trata, no caso, justamente, de uma crise de superestrutura, condicionada pela crise geral que se verifica na infraestrutura econômica da sociedade em que vivemos. No famoso prólogo escrito em 1859 para o seu livro Contribuição à Crítica da Economia Política, Marx traçou a linha essencial do processo histórico que produz as crises e revoluções. Permita-me citar um pequeno trecho dessa página genial do fundador do socialismo científico: “Ao chegar a determinada fase de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade chocam-se com as condições de produção existentes ou, o que não é senão a expressão jurídica disto, com as relações de propriedade dentro das quais se tem movido até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, tais relações transformam-se em entraves. E abre-se assim uma época de revolução social.” A lição colhida por Marx no estudo aprofundado da história da humanidade confirma-se inteiramente na época presente, que é uma época de revolução social, de choque das forças produtivas de caráter social com as relações de propriedade de caráter individual, época histórica que assinala a passagem da economia de tipo capitalista para a economia de tipo socialista. 

Aceita como certa a concepção marxista, é aí, nesse choque estrutural, que vamos encontrar a origem das diversas crises – econômica, política, espiritual, etc. – que tamanha preocupação estão produzindo em certos espíritos. Digo “em certos espíritos” porque, na verdade, não existe acordo nem na maneira de julgar nem muito menos na maneira de “sofrer” tais crises. Facilmente se pode verificar que elas repercutem por modo muito diverso segundo se trate de homens pertencentes às classes dominantes ou às outras classes. Para uns a crise é motivo de angústia, de desespero, de aniquilamento; para outros, não. Por exemplo, para certos intelectuais ainda presos por fios visíveis e invisíveis à ordem social em crise, a “crise do espírito” vem a ser muito simplesmente a crise do seu próprio espírito desarvorado e atormentado. Outros intelectuais existem, no entanto, a começar pelos marxistas, que não “sofrem” essa crise do espírito. Sendo que os marxistas não só não a “sofrem” como, ainda, convictos de bem compreender a causa, a significação e o mecanismo da crise, lutam francamente no sentido de um desenlace histórico favorável às forças sociais progressistas e renovadoras. 

Responsabilidades

Pergunta-me v., em seguida, “que livros, nomes e idéias responsabilizar pela crise”? Depois do que ficou dito antes, é claro que eu não poderia atribuir a responsabilidade da crise a nenhum livro, nenhum nome, nenhuma idéia. Pelo contrário, o que me parece verdadeiro é “responsabilizar” a crise pelo aparecimento de livros, nomes e idéias, exatamente os livros, os nomes e as idéias que tratam do problema da crise, investigando as suas causas, interpretando a sua significação, prevendo os seus efeitos presentes e futuros, propondo soluções, remédios e panacéias. 

Cabe aqui tocar num ponto importante, em torno do qual se tem repetidamente armado e insuflado muita confusão. Sabe-se que os marxistas não admitem a tese idealista do “primado do espírito”. Não significa isto, porém, que eles neguem ou menosprezem a influência do espírito sobre os acontecimentos. Engels liquidou esta questão definitivamente, numa carta datada de 1894. Citarei duas passagens desse documento: “Não há pois um efetivo automático da situação econômica, como alguns autores escrevem por comodidade. São os homens que fazem a própria história, mas num meio dado que os condiciona, sobre a base de relações efetivas determinadas. Entre estas últimas, as relações econômicas, por mais poderosa que seja a influência sobre elas exercida pelas outras relações de ordem política e ideológica, são no entanto aquelas cuja ação vem a ser decisiva e que por isso mesmo constituem o fio condutor que permite compreender o conjunto do sistema”. Por outras palavras, mais explicitamente: “O desenvolvimento político, jurídico, filosófico, literário, artístico, etc., repousa sobre o desenvolvimento econômico. Mas todos esses fatores reagem uns sobre os outros, conjuntamente ou separadamente, e também, sobre a base econômica”. Plekhanov, que se serviu dessa carta em suas Questões Fundamentais do Marxismo, ao tratar do mesmo assunto, mostra que tal foi sempre o pensamento de Marx e Engels, e abona a sua opinião com citações extraídas preferentemente do Manifesto Comunista, publicado, como se sabe, no começo de 1848. Também Stalin, continuador de Marx, Engels e Lenin, escreveu o seguinte sobre a matéria: “No tocante à importância das ideias e teorias sociais e das concepções e instituições políticas, no tocante ao papel que desempenham na história, o materialismo histórico não só não nega, como, pelo contrário, salienta a importância do papel e da significação que lhes correspondem na vida e na história da sociedade”. 

Podemos então afirmar que vários dos livros, nomes e ideias suscitados pela crise contribuem acertadamente para melhor compreensão e portanto para melhor solução dos problemas relacionados com a crise. Mas há também outros livros, nomes e ideias, cuja contribuição revela-se negativa e, não raro, nefasta e desastrosa. 

A caminho do socialismo 

Não seria razoável dizer-se que só os livros, nomes e ideias marxistas se contam entre os primeiros. Pode-se apontar mais de um autor não marxista cuja contribuição ao estudo da crise tem sido mais ou menos valiosa e útil. Mas, na verdade, só os autores marxistas – homens ao mesmo tempo de pensamento e de ação – trazem uma contribuição decisiva ao estudo e à solução da crise. E isto nos múltiplos domínios da filosofia, da economia e da política. Faço esta afirmação assim categórica não apenas por ser eu próprio adepto do marxismo, mas baseado no fato incontestável de que o marxismo é uma ciência social rigorosamente objetiva, em concordância dialética e histórica com o mundo e a sociedade humana em perpétuo desenvolvimento. Ele nos fornece o instrumento incomparável de pesquisa dos fatos sociais, de avaliação dos fatores materiais e espirituais que entram na composição dos acontecimentos. Aí estão as obras de Marx, Engels, Lenin e Stalin para prová-lo. Tome-se, por exemplo, o Manifesto Comunista, cujo centenário se comemorou recentemente e verifique-se o que aconteceu no mundo a partir de 1847. Aconteceu justamente aquilo que o Manifesto traçara, em linhas gerais, como perspectiva do desenvolvimento ulterior da sociedade. Em fins de 1847, quando foi elaborado o Manifesto, os comunistas formavam pequenos grupos clandestinos de operários e intelectuais revolucionários na Alemanha, na Inglaterra, na França, na Bélgica, na Suiça. Em fins de 1947, cem anos depois, o proletariado do mundo inteiro comemorou a passagem do 30º aniversário da revolução comunista, vitoriosa num país que ocupa mais da sexta parte da superfície do globo, com uma população de quase 200 milhões de trabalhadores. Compara-se a Europa de 1848 com a Europa de 1948: o salto foi imenso, pois ao lado da república soviética, completamente liberta do capitalismo, florescem numerosos países em marcha aberta para o socialismo. É evidente que essas coisas aconteceram não porque estavam programadas no Manifesto Comunista; mas ninguém de boa fé poderá negar que Marx e Engels souberam exprimir, com objetividade científica, num momento histórico determinado, a realidade da situação social encarada dialeticamente, isto é, em seu movimento interior, em seu impulso inelutável para a frente. Se as ideias do Manifesto Comunista se realizam, isto se deve a que elas correspondem, como orientação geral e programa político, às necessidades da época histórica de deperecimento do capitalismo e advento do socialismo. 

No discurso que pronunciou a 7 de Novembro último, dia do aniversário da revolução proletária, disse Molotov que hoje em dia todos os caminhos levam ao comunismo. Essa é com efeito a realidade histórica do mundo, na época presente, para a qual só existe uma perspectiva fecunda, uma única perspectiva realmente democrática – a que abre caminho para o socialismo. Pode a reação imperialista empenhar-se em manter sob o seu jugo os países ainda em regime capitalista e respectivas colônias e semi-colonias. Pode, para esse fim, lançar mão dos meios mais diversos, desde a preparação de uma terceira guerra mundial, a chantagem da bomba atômica inclusive, até aos diversionistas ideológicos na filosofia, na arte e na literatura: nada disso impedirá a marcha necessária para a frente. Marcha difícil, dura, que se processa entre avanços e recuos, mas com caminhos que se abrem cada vez mais numerosos por todos os montes e vales do mundo. 

Referi-me aos diversionismos ideológicos de que se serve a reação imperialista na sua luta feroz contra o avanço da democracia e do socialismo. São diversionismos que a publicidade à americana logo converte em moda, e que às vezes assume aspectos de verdadeira epidemia espiritual. É o caso do existencialismo, das obras de Sartre, de Koestler e de outros fabricantes de “teorias” e “escolas” que apenas conseguem iludir os que andam em busca de ilusões é que são efetivamente responsáveis pelas “crises” de consciência como quem busca entorpecentes para os seus desesperos e angústias. Pode-se observar talvez, neste ponto, que tais livros, nomes e ideias é que são efetivamente responsáveis pelas “crises” de consciência que desorientam e aniquilam o espírito de muito jovem da classe média perdido entre o céu e a terra. Aliás, precisamente para esse fim é que a publicidade a serviço da reação inventa e impinge os corifeus do diversionismo e suas “novidades” filosóficas, artísticas e literárias. 

Saída para a situação brasileira

O Brasil, evidentemente, é um país que se acha enquadrado no sistema capitalista mundial, e por isso mesmo sofre também os efeitos da crise geral do capitalismo. Mas nós não somos um país onde predomine a economia de tipo capitalista, pois a verdade é que, no conjunto da nossa vida econômica e social, predominam ainda certas formas de produção e de relações sociais de tipo pré-capitalista, semi-feudal, cuja persistência se explica pela própria persistência de sua base estrutural, que é constituída pela grande propriedade latifundiária. No monopólio da terra encontra-se, com efeito, a causa principal do nosso tremendo atraso em relação aos países capitalistas mais adiantados, e daí a nossa posição inferior de país dependente, com características semi-coloniais iniludíveis. 

É claro que esse atraso de ordem econômica e social determina e condiciona todo o nosso atraso de ordem cultural e espiritual. É o latifúndio responsável não apenas pelo baixo nível de cultura, pelo baixo nível de vida espiritual do nosso povo. Com 70 a 80 por cento de analfabetos, 30 milhões de brasileiros desnutridos e roídos por mil doenças, a nossa vida espiritual e cultural se reduz a um triste luxo das classes dominantes, triste privilégio de uma elite de amadores, triste brilho de cúpulas douradas que se erguem sobre miseráveis paredes de pau a pique.

Mas vejamos, em resposta à pergunta formulada, qual a saída que me parece mais acertada para a situação brasileira. 

Pode haver e há efetivamente muitas divergências de opinião no que se refere ao reconhecimento e à indicação dos caminhos que levam à democracia e ao socialismo. Mas, com a exceção lógica dos donos do capital imperialista e seus aliados e agentes nos diversos setores da sociedade, ninguém mais duvida de que o mundo capitalista chega ao fim e já entramos na era do socialismo. E visto que o Brasil faz parte deste mundo, logo se compreende que também nós marchamos na mesma direção. O que não quer dizer, bem entendido, que o nosso seja um caminho aberto em linha reta para o socialismo. 

Os países economicamente atrasados e dependentes, do tipo do Brasil, necessitam, primeiro, de liquidar o que ainda resta, no conjunto da sua economia, de modos pré-capitalistas de produção, liquidando, do mesmo passo, a dominação que sobre eles exerce o capital estrangeiro colonizador. Com a liquidação simultânea dos entraves internos e externos, acreditamos que a nossa economia poderá realizar enormes e rápidos progressos, que nos colocarão a par dos países capitalistas mais adiantados. Basta considerar o que será então o nosso mercado interno com o aumento da capacidade aquisitiva de milhões de camponeses, hoje servos dos grandes senhores de terra e amanhã pequenos proprietários livres e prósperos. Só assim se estabelecerão condições favoráveis ao pleno desenvolvimento do capitalismo nacional, criando-se, em consequência, as condições necessárias à passagem ulterior para a economia de tipo socialista. 

Ao contrário de reformadores utopistas, os marxistas não julgavam possível a nenhum país chegar ao socialismo sem antes passar pela fase capitalista de sua economia. O que não quer dizer, tampouco, que as coisas se realizem segundo planos abstratos e esquemáticos, com linhas estanques de separação entre economia pre-capitalista, economia capitalista e economia socialista. As coisas se desenrolam, na realidade, como um processo vivo, o que chamamos propriamente de processo dialético, em que se verificam a coexistência e o choque de elementos contrários. 

Pensamos, em suma, que os problemas brasileiros, dentro das condições concretas existentes em nosso país e em conexão com a situação mundial, reclamam soluções imediatas que tenham por base a reforma agrária e a luta contra a dominação imperialista. Acrescentamos que a aplicação de tais soluções depende precipuamente da existência, na prática e não apenas no papel, de um verdadeiro regime democrático, isto é, de um regime político e administrativo que conte com a confiança, o apoio e a participação ativa das mais amplas camadas do nosso povo. Fora disso, estou convencido, é tudo ilusão ou mistificação. 

Pesquisa e Transcrição: Lucas Silva