Revista Novos Temas – Michael Löwy: um intelectual socialista

Publicamos a seguir entrevista de Michael Löwy concedida à revista Novos Temas.

Michael Löwy nasceu em São Paulo em 1938, filho de imigrantes judeus de Viena. Licenciou-se em ciências sociais na Universidade de São Paulo (USP), em 1960, e participou, nessa época, do seminário de estudos de O Capital de Marx. Foi um dos fundadores da organização Política Operária (Polop), em 1960. Doutorou-se na Sorbonne com Lucien Goldmann, em 1964, com uma tese sobre o jovem Marx.

Vive em Paris desde 1969, onde trabalha como diretor de pesquisas no CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique). Dirige um seminário na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales. Recebeu em 1994 a medalha de prata do CNRS em ciências sociais.

É autor de livros e artigos traduzidos em 22 idiomas. É colaborador do jornal Em Tempo. Entre seus livros pu­blicados no Brasil, destacam-se: Método Dialético e Teoria Política (Paz e Terra), A Evolução Política do Jovem Lukács (Cortez), Ideologia e Ciência Social (Cortez), As Aventuras de Karl Marx Contra o Barão de Münchausen (Cortez), Marxismo e Teologia da Libertação (Cortez), Redenção e Utopia: o judaísmo libertário na Europa Central (Companhia das Letras), Romantismo e Messianismo (Perspectiva/Edusp), Romantismo e Política (com R. Sayre, Paz e Terra), Revolta e Melancolia: o romantismo na contramão da modernidade (com R. Sayre, Vozes).

NT: Michael Löwy, como se deu o processo de construção da sua vida intelectual e política? Qual foi a sua trajetória como intelectual marxista e militante socialista? Como se constituem os seus estudos acadêmicos no campo das ciências sociais, em especial, na sociologia?

ML: Nasci em São Paulo, em 1938, filho de imigrantes judeus de Viena. Comecei, aos 16 anos, a ler Marx e, sobretudo, Rosa Luxemburgo, que me inspirou uma paixão amorosa,

política e intelectual, que perdura até hoje. Comecei minha vida política como luxemburguista e, de alguma forma, continuo a ser teimosamente fiel a este primeiro amor.

Quando começo a estudar Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia da USP, em 1956, o militantismo político estava no centro de meus interesses. No começo, participei de uma pequena organização “luixemburguista”, a Liga Socialista Independente e, mais tarde, na organização “Política Operária” (POLOP). Na Rua Maria Antônia tive a chance de ter como professores Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Antônio Candido, Fernando Hen­rique Cardoso – marxista, naquela época longínqua − Paula Beiguelmann, Azis Simão. Eu me sentia particularmente próximo deste último, cujo interesse pelo movimento operário eu partilhava intensamente. Nessa época, eu era representante do movimento estudantil no Pacto de Unidade Intersindical de S.Paulo.

Mais do que a sociologia que me ensinaram na USP, o que marcou minha formação foi a descoberta, logo no começo de meus estudos, de um autor naquela época quase desconhe­cido no Brasil: Lucien Goldmann. O tipo de marxismo heterodoxo de Goldmann, suas críticas contundentes à sociologia burguesa, e seu método dialético de sociologia da cultura, me fascinaram e, como no caso de “Rosalux”, imprimiram uma orientação permanente às minhas elucubrações. Graças a ele descobri, alguns anos mais tarde, História e Consciência de Classe (1923), de Lukács, que me abriu novos horizontes. Durante meus anos na Maria Antônia, eu lia bastante Marx, sobretudo os escritos filosóficos de juventude (1844-1846) e os ensaios políticos e históricos dos anos 1848-1853. A partir dos anos 1960, comecei a participar no famoso “Seminário do Capital”, em companhia de Roberto Schwarz, Arthur Giannotti, Paulo Singer, FHC, Fernando Novais e outras figurinhas ilustres.

A espetacular radicalização da revolução cubana e a sua opção socialista em 1960-1961 fizeram de Cuba, durante muitos anos, um componente essencial do coquetel marxista com que se nutriu toda minha geração. É a partir deste momento que comecei a me interessar mais de perto pela América Latina, pela história do pensamento marxista latino-americano (José Carlos Mariátegui), pelo marxismo de Che Guevara e, mais tarde, pela teologia da libertação.

Em 1961, uma vez licenciado em Ciências Sociais pela USP, fui para Paris com uma bolsa de estudos e a intenção de fazer minha tese de doutorado (terceiro ciclo) com Lucien Goldmann. O tema era a evolução política e filosófica do jovem Marx. Rompendo com a concepção maquiavélica ou jacobina da revolução “por cima”, Marx considera a auto-emancipação dos oprimidos como a única forma efetiva de libertação: no processo de práxis revolucionária da classe coincidem a autotransformação das consciências e a subversão das estruturas sociais. A filosofia da práxis marxista supera assim, “dialeticamente”, a oposição entre o idealismo neohegeliano, que apostava na modificação das consciências, e o materialismo da Ilustração, que preconizava a mudança das “circunstâncias materiais”. Tentei aplicar ao próprio Marx o método de sociologia da cultura de Goldmann, relacionando as ideias do pensador com um grupo social, a classe operária européia em processo de constituição, através de suas primeiras lutas. Minha tese foi apresentada na Sorbonne, em 1964, mas acabou só sendo publicada nas Éditions Maspero, em 1970 (no Brasil, em 2002, pela Editora Vozes).

É através de Lucien Goldmann, que o citava com frequência, que conheci o pensamento do jovem Lukács. Mas é só muito mais tarde, já morando em Paris nos anos 1970, é que resolvi estudar mais de perto a evolução política e filosófica do jovem Lukács, de 1909 a 1929, seguin­do um pouco o modelo de meu estudo sobre o jovem Marx; foi o tema de meu doutorado de estado, apresentado na Sorbonne, em 1974, publicado como livro pouco depois, pela Presses Universitaires de France, e mais tarde traduzido no Brasil. O fio condutor era uma espécie de análise sociocultural da passagem de Lukács do romantismo anticapitalista ao marxismo (e ao comunismo), em relação com o movimento das ideias nos meios intelectuais da Europa central, que reagem ao vertiginoso desenvolvimento do capitalismo no começo do século XX.

Depois de alguns anos de ensino da sociologia na Université de Paris 8 (Vincennes), fui admitido em 1977 no Centre National de la Recherche Scientifique (C.N.R.S.) como pesqui­sador. Meu primeiro trabalho foi um estudo sobre a sociologia do conhecimento, publicado na França, em 1985, com o título Paysages de la Verité. Introduction à une sociologie critique de la connaissance, traduzido no Brasil com outro nome, menos convencional, As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen (Cortez Editora).

NT: Você estudou o papel dos intelectuais revolucionários. Na sua compreensão, no mundo atual, ainda há espaço para o surgimento e atuação deste intelectual revolucionário?

ML: As condições históricas que levaram à radicalização dos intelectuais na primeira metade do século − Revolução Russa, luta contra o fascismo – não são as de hoje. Mas enquanto existirem o capitalismo, a exploração do trabalho, a dominação de classe burguesa, o feti­chismo da mercadoria, a ditadura dos mercados financeiros, a dominação imperialista dos países dependentes, as guerras neocoloniais pelo petróleo, haverá intelectuais revolucionários. É claro que a tendência predominante nos meios intelectuais é mais bem conformista. Mas acho que a França e o Brasil são dois países onde até hoje existe uma camada importante de intelectuais críticos, buscando alternativas radicais ao estado de coisas existente.

NT: Compreendo a universidade brasileira como uma instituição conservadora, com caracterís­ticas elitistas e com uma nítida opção de classe. Como você analisaria a universidade francesa em relação à nossa?

ML: Apesar destas características, a universidade brasileira sempre formou, no curso dos últimos 50 anos, um grande número de intelectuais opostos às classes dominantes, tanto entre os alunos como entre os professores. Na França, o sistema universitário é mais demo­crático, as universidades são públicas e a grande maioria dos alunos que terminam o curso secundário e passam no exame de baccalauréat são admitidos nas universidades. No passado, as universidades francesas eram bastante conservadoras, isso mudou nos anos 1960, parti­cularmente depois de Maio de 68.

NT: Você sempre travou uma batalha no campo da sociologia do conhecimento, em especial, enfren­tando o positivismo na arena intelectual. Esse debate acabou, o ecletismo se estabeleceu, o conceito de pós-modernidade gerou outro debate, enfim, quais são as questões postas nesse campo?

ML: Francamente, não acho que o positivismo “acabou”. Ainda é a tendência dominante no ensino e na prática da filosofia e das ciências sociais no mundo acadêmico, em particular nos paises anglo-saxões, mas também na Europa e na América Latina. É verdade que com as correntes pós-modernas outras problemáticas têm aparecido, implicando novos debates. O pós-modernismo representa o pólo alternativo ao positivismo, no sentido de afirmar um relativismo total que acaba dissolvendo o conhecimento e fragmentando a realidade. São duas concepções unilaterais, o dogmatismo positivista e o ceticismo pós-moderno que se completam reciprocamente.

NT: Como um paradigma para pensar e agir na sociedade, quais são os elementos fundamentais que denotam a contemporaneidade do pensamento de Marx para inspirar novas formulações e para dar sustentação a novas lutas?

ML: A crise econômica voltou a colocar Marx no centro das discussões. Mesmo economistas convencionais são obrigados a reconhecer que Marx é o único pensador que fornece elementos para um diagnóstico da crise econômica.

Fundamentalmente, para mim, o marxismo, como método de conhecimento e transforma­ção da realidade, não só tem “contemporaneidade”, mas é o único que pode nos servir de bússola neste confuso e inquietante início de século XXI. É verdade que alguns temas do pensamento de Marx me parecem mais importantes do que outros: é o caso, por exemplo, da filosofia da práxis, com suas consequências políticas: a autoemancipação revolucionária dos explorados e oprimidos; da concepção da luta de classes como fio condutor da história humana e de suas possibilidades de libertação; do fetichismo da mercadoria como instru­mento de análise essencial da perversidade intrínseca do sistema capitalista; do método dia­lético materialista de interpretação da realidade social; do socialismo como única alternativa radical e emancipadora aos desastres do capitalismo. Poderia continuar: a lista das jóias do marxismo é bastante longa.

E a atualização, por onde deve ir? Acho que deve ter por objetivo aprofundar a ruptura do marxismo com os paradigmas da civilização (capitalista) moderna. Tomemos por exemplo a questão do “desenvolvimento das forças produtivas”. Em outro texto de Marx ou de Engels aparece a ideia de que a revolução é o resultado da contradição entre a expansão das forças produtivas e o obstáculo que representam as relações de produção capitalistas (propriedade privada, etc); nesta perspectiva, o socialismo seria, antes de tudo, a eliminação destes obstá­culos, permitindo assim o livre e ilimitado desenvolvimento das forças produtivas. Parece-me que a ecologia nos obriga a questionar seriamente esta visão do futuro, que tende a ignorar os limites naturais do planeta.

Em oposição a esta visão das forças produtivas como instrumento neutro, deveríamos nos inspirar nos escritos de Marx sobre a Comuna de Paris: o aparelho de Estado burguês não pode ser apropriado, enquanto tal, pelo proletariado, e posto a funcionar a seu serviço; ele deve ser “quebrado” e substituído por um outro, de tipo radicalmente diferente – um poder político não estatal. O mesmo se aplica, mutatis mutandis, ao aparelho produtivo capitalis­ta: os trabalhadores não podem se apropriar dele simplesmente, mas devem transformá-loradicalmente − em alguns casos até “quebrar” − em função de critérios humanos (condições de trabalho) e ecológicos: a preservação do meio ambiente. Isto significa, antes de tudo, uma “revolução energética”, com a substituição progressiva das fontes de energia poluidoras e destrutivas − carvão, petróleo, energia nuclear − por outras renováveis e favoráveis à natu­reza: vento, sol, etc…

A ecologia, o feminismo, os movimentos camponeses e indígenas, o movimento negro, e outros movimentos sociais são o ponto de partida para estas e outras necessárias revisões do marxismo clássico, sempre no sentido de intensificar sua força crítica, sua dinâmica subversiva e sua “negatividade” histórica.

NT: O arcabouço marxista tem um leque amplo de intérpretes. Você mesmo é um pensador marxista que trabalha com categorias da produção de Lukács. Qual seria então, no seu juízo, o centro da contribuição de Lukács, para que possamos entender o mundo capitalista atual?

ML: As contribuições de Lukács – refiro-me, mais uma vez, à História e consciência de classe – para entender o mundo capitalista de hoje são inúmeras. Limito-me aqui a mencionar duas ou três: a) o conceito de reificação (Verdinglichung), como aspecto essencial da mutilação da vida humana e das relações sociais pelo capitalismo, que as transforma em relações entre “coisas” (mercadoria, dinheiro, capital): nada mais atual no mundo capitalista do início do século 21… b) a crítica do economicismo e a definição da categoria dialética da totalidade como instrumento metodológico central do marxismo para o conhecimento e a transformação da realidade; c) a concepção da práxis revolucionária do proletariado como superação do dilema da impotência, o dilema do fatalismo das leis puras e da ética das puras intenções.

Eu acrescentaria a estes três aspectos a esplêndida exaltação da subjetividade revolucionária num ensaio de 1925, intitulado Chvostimus und Dialektik – tradução possível: “Seguidismo e Dialética” − recentemente descoberto e publicado (a edição húngara, em língua alemã, é de 1996). Este ensaio, que se apresenta como uma defesa de História e consciência de classe contra as críticas de corte cripto-positivista dos marxistas “oficiais” Rudas e Deborin, é uma corajosa apologia hegelo-marxista do papel determinante do “fator subjetivo”, isto é, a cons­ciência de classe e a iniciativa política, no processo revolucionário.

NT: Com a grave crise do capital, não só do ponto de vista econômico, mas também do ponto de vista civilizatório, quais são as perspectivas para aqueles que lutam pela emancipação humana, nesse cenário de barbárie?

ML: A crise econômica é grave, tão grave como a de 1929 e se estenderá por anos. Mas, como dizia Walter Benjamin, “o capitalismo nunca vai morrer de morte natural”. Sempre encontrará uma saída, salvo se uma força social e política revolucionária acabar com o siste­ma. Mais grave ainda que a crise econômica é a crise ecológica, que conduz a uma catástrofe sem precedentes na história da humanidade, o aquecimento global, que coloca em perigo a vida sobre este planeta.

Para aqueles que lutam pela emancipação humana − o que implica, ao mesmo tempo, salvar a natureza, o meio ambiente da destruição programada pelo capital – não há nenhuma “lei da história” ou “contradição objetiva” que assegura um resultado positivo. Como o explicava meu mestre, Lucien Goldmann, nenhuma demonstração “científica” pode garantir a realiza­ção do socialismo, e sua vitória na confrontação com a barbárie. Utilizando uma fórmula de Pascal, Goldmann afirmava que a emancipação humana é objeto de uma aposta na qual os indivíduos e os grupos jogam sua vida e seu futuro comum. Como toda aposta, ela implica um risco, um perigo de derrota e a esperança de um sucesso.

NT: As lutas políticas pela transformação social têm demonstrado novas características no contexto da América Latina. Você que organizou uma grande antologia sobre o marxismo nessa região, como vê esses fenômenos de mudanças políticas?

ML: Em primeiro lugar, temos assistido em toda a América Latina nos últimos anos a um formidável movimento de lutas sociais: trabalhadores, camponeses sem terra, indígenas, mulheres, comunidades de base, associações de bairro, movimentos de desempregados, partidos de esquerda, participam destas mobilizações, que derrubaram vários governos ne­oliberais com verdadeiras insurreições populares (Argentina, Bolívia, Equador) e, no caso da Venezuela, impediram um golpe militar. As ideias marxistas estão presentes entre muitos dos quadros e militantes destes movimentos, assim como, naturalmente, de correntes da esquerda radical.

Observa-se também em muitos países uma vitória eleitoral de forças de esquerda. Acho que é necessário distinguir entre os governos de “centro-esquerda”, que não vão mais além de uma forma de social-liberalismo, combinando uma política econômica de corte neoliberal com preocupações de assistência social aos pobres − é o caso do Brasil (Lula) e do Uruguai (Tabaré Vazquez e agora Mugica) − daqueles governos de esquerda que fizeram a opção de uma ruptura com a oligarquia e com a dominação imperialista, colocando no horizonte o socialismo do século 21: Venezuela (Chavez), Bolívia (Evo Morales), Equador (Correa). A aliança destes países com Cuba, no quadro da ALBA, é uma iniciativa interessante. Outros países têm governos que estão ainda buscando seu caminho, ou que se situam num campo intermediário entre estas duas grandes orientações.

NT: Você tem estudado a questão da ecologia. Sabemos das contradições profundas que esse tema guarda em relação à produção capitalista e ao consumo. Como, a partir de sua abordagem, tem analisado essa questão?

ML: A crise ecológica atual e a perspectiva dramática do aquecimento global nas próximas décadas colocam em perigo a sobrevivência de grande parte da humanidade. As soluções apresentadas pelas classes dominantes, no quadro da “economia de mercado” são totalmente incapazes de enfrentar este desafio, que exige alternativas civilizatórias radicais: o ecossocia­lismo.

Designamos com este termo uma corrente de pensamento e de ação que se reclama ao mesmo tempo da defesa ecológica do meio ambiente e da luta por uma alternativa socialista. Para os ecossocialistas, a lógica do mercado e a do lucro capitalistas conduzem à destruição dos equilíbrios naturais, com consequências catastróficas.

Em ruptura com a ideologia produtivista do progresso − em sua forma capitalista e/ou burocrática − e em oposição à expansão ilimitada de um modo de produção e de consumo incompatível com a proteção da natureza, esta corrente representa uma tentativa original de articular as idéias fundamentais do marxismo com os avanços da crítica ecológica.

A racionalidade estreita do mercado capitalista, com seu cálculo imediatista de perdas e lucros, é intrinsecamente contraditória com uma racionalidade ecológica, que toma em consideração a temporalidade longa dos ciclos naturais. Trata-se de um sistema baseado na concorrência impiedosa, nas exigências de rentabilidade, na corrida atrás do lucro rápido, que é intrinsecamente perverso e destruidor do meio ambiente.

Uma reorganização do conjunto do modo de produção e de consumo é necessária, baseada em critérios exteriores ao mercado capitalista: as necessidades reais da população e a defesa do equilíbrio ecológico. Isto significa uma economia de transição ao socialismo, na qual a própria população − e não as “leis do mercado” ou um Birô Político autoritário − decide, democraticamente, as prioridades e os investimentos.

Esta transição conduziria não só a um novo modo de produção e a uma sociedade mais igua­litária, mais solidária e mais democrática, mas também a um modo de vida alternativo, uma nova civilização, ecossocialista, mais além do reino do dinheiro, dos hábitos de consumo ar­tificialmente induzidos pela publicidade, e da produção ao infinito de mercadorias inúteis.

NT: As contradições impostas pela crise do capital têm ensejado uma retomada vigorosa dos mo­vimentos sociais? O que está acontecendo na Europa, em particular na Grécia e na França?

ML: Com efeito, a crise tem favorecido uma importante mobilização social, em particular na Grécia, contra as medidas impostas pela Europa capitalista, pelos mercados financeiros e pelo FMI, com a capitulação do governo social-democrata de George Papandreou. Embora a direção dos sindicatos hesite muito em se opor ao governo, várias greves gerais e grandes manifestações de rua deram expressão ao descontentamento popular. Na França, a resistência às medidas neoliberais do governo reacionário de Nicolas Sarkozy – em particular contra a privatização dos serviços públicos e o ataque aos direitos dos pensionados – tem crescido, e teve também expressão nas últimas eleições regionais, que resultaram em total derrota do partido governamental. Até agora estas mobilizações não tem sido suficientes para vencerem as políticas neoliberais que visam fazer com que os pobres e os trabalhadores paguem a conta pela crise.

NT: Para finalizar a nossa entrevista, queria recorrer a outra área de sua pesquisa. Há no Brasil publicações de sua autoria sobre a questão do romantismo. Como se apresenta essa temática do romantismo em sua obra?

ML: O tema do romantismo está presente em todos os meus trabalhos desde os anos 70 − minha tese sobre Lukács −, mas uma análise mais sistemática do fenômeno está no livro que escrevi em 1985, em colaboração com meu amigo Robert Sayre − também um discípulo de Goldmann! Este livro, Revolta e Melancolia. O romantismo na contracorrente da modernidade (traduzido em português pela Editora Vozes) propõe uma nova interpretação do fenômeno romântico, utilizando uma sociologia da cultura de inspiração marxista. Nossa hipótese cen­tral é a de que o romantismo é muito mais do que uma escola literária: trata-se de uma das principais visões do mundo modernas, que se manifesta, desde fins do século XVIII (Rousseau) até nossos dias (o surrealismo), no campo da literatura, das artes, da política, da religião e da historiografia. O núcleo desta visão romântica é o protesto contra a sociedade industrial/capitalista moderna − e em particular contra o «desencantamento do mundo», a quantifica­ção e reificação das relações sociais e a destruição dos vínculos comunitários − em nome de valores (sociais, culturais ou religiosos) do passado. Esta nostalgia de uma pré-modernidade idealizada pode tomar formas regressivas e reacionárias ou utópicas e revolucionárias: não é por acaso que Edmund Burke, o grande inimigo da Revolução Francesa, e Jean Jacques Rousseau, seu principal precursor, são considerados fundadores do romantismo… Pensadores como Georges Lukács − em seus escritos de juventude – Ernst Bloch, Walter Benjamin ou o latino-americano José Carlos Mariátegui, podem ser considerados «marxistas românticos».