Biografias confundem vida de Prestes com o PCB, diz estudo

Doutorado defendido na USP analisa quatro obras sobre o militar e ativista político

Assessoria de Comunicação do CEDEM, da Unesp

“No estudo defendido na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da USP, sob orientação da docente Ângela Meirelles de Oliveira, o autor compara as biografias O cavaleiro da esperança: vida de Luiz Carlos Prestes, do escritor Jorge Amado (1945); Heroísmo trágico do século XX: o destino de Luiz Carlos Prestes, do historiador Boris Koval (2007); Luiz Carlos Prestes: um revolucionário entre dois mundos, do historiador Daniel Aarão Reis (2014); e Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro, da historiadora Anita Leocádia Prestes (2015).”

Com o intuito de apontar os limites de narrativas biográficas em suas interfaces com a história, o historiador Bruno Rafael de Albuquerque Gaudêncio realizou a tese intitulada A política da memória na construção biográfica de Luiz Carlos Prestes (1945-2015)Como objeto ele escolheu analisar quatro biografias do militar e político comunista. “A partir de um recorte, ao mesmo tempo cronológico e temático, os biógrafos escolhidos optaram quase sempre por compreender Prestes como uma trajetória única, preso às escolhas do mundo político no início do século XX, mesmo em diferentes formatos e temporalidades,” avalia. Parte de sua pesquisa Gaudêncio realizou no acervo do Instituto Astrojildo Pereira, custodiado no Centro de Documentação e Memória (CEDEM), da Unesp.

No estudo defendido na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da USP, sob orientação da docente Ângela Meirelles de Oliveira, o autor compara as biografias O cavaleiro da esperança: vida de Luiz Carlos Prestes, do escritor Jorge Amado (1945); Heroísmo trágico do século XX: o destino de Luiz Carlos Prestes, do historiador Boris Koval (2007); Luiz Carlos Prestes: um revolucionário entre dois mundos, do historiador Daniel Aarão Reis (2014); e Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro, da historiadora Anita Leocádia Prestes (2015).

A análise da biografia romanceada O Cavaleiro da Esperança: vida de Luiz Carlos Prestes, mostra uma narrativa que serviu de referência obrigatória para quase todos os livros posteriores sobre Prestes, avalia o pesquisador. Para ele, a obra de Jorge Amado tornou-se ponto de partida, ou um marco fundador no enquadramento de uma memória sobre o biografado, principalmente no que se refere aos dados sobre a infância e a adolescência. “Amparado em uma narrativa construída com o auxílio de familiares e de membros que protagonizaram os acontecimentos políticos dos anos 1930, como a Aliança Nacional Libertadora (ANL) e os levantes comunistas de 1935, Jorge Amado fez um livro que serviu como memória oficial e mobilizadora para o PCB nos anos 1940, inicialmente enquanto luta pela libertação dos presos político durante o Estado Novo Varguista e, depois, como estratégia política heroica para as campanhas eleitorais entre os anos 1945 e 1947,” destaca.

Desta forma, diz o autor, pode-se compreender que Jorge Amado produziu uma visão monumental do seu biografado, tendo em Prestes um detentor das esperanças coletivas de liberdade, não só brasileira como também sul-americana. “Percebo a biografia como uma memória coletiva, com a tentativa de consolidar narrativamente Prestes como o cavaleiro da esperança,” assinala.

Na biografia, o herói é fabricado, elaborando a ideia de um grande homem (gênio militar, nunca derrotado e modelo de filho, irmão e marido), sem defeitos, vocacionado para excepcionalidade política, homogêneo em suas características humanas. Nesta lógica, Jorge Amado acabou por realizar um processo biográfico de apagamento dos conflitos e contradições, afastando-se de todos os confrontos que possibilitem questionar a grandeza moral e militar do seu biografado.

A obra Heroísmo trágico do século XX: o destino de Luiz Carlos Prestes procura sistematizar seu biografado em uma lógica de pesquisa bibliográfica, porém recaindo quase sempre em um julgamento moral inclusive dos acontecimentos políticos do qual trata, opinando sempre sobre os limites, os erros, os acertos, procurando demonstrar como as situações históricas acabaram por punir Luiz Carlos Prestes. Segundo Gaudêncio, a concepção de heroísmo trágico, trazido no título da biografia, é sutil se comparado com a obra de Jorge Amado, visto que não há trechos no trabalho que enfatizem a ideia de Luiz Carlos Prestes como um mito político revolucionário brasileiro. “Sua abordagem é pendular, por vezes questionadora, por outras exaltantes das posições políticas do seu biografado. Em alguns momentos Koval muda de posição ao longo da análise, deixando evidentes suas oscilações ou dúvidas diante do processo de elaboração biográfica. No mais, a biografia do historiador russo pode ser confundida com uma produção de uma história do Brasil”, analisa.  

A biografia Luiz Carlos Prestes: um revolucionário entre dois mundos, do historiador Daniel Aarão Reis, é uma das muitas narrativas biográficas produzidas por historiadores nas duas últimas décadas. Premiada, possui inegáveis méritos historiográficos, trazendo uma visão ampla e questionadora do seu biografado. Entre os méritos, Aarão capta uma gama de depoimentos que enriquecem o trabalho. Foram utilizados depoimentos e documentos de pessoas próximas ou admiradores do legado do líder comunista e de críticos e desafetos históricos. Também foram usadas entrevistas realizadas com familiares, que possibilitaram vislumbrar os aspectos pessoais dessa trajetória, além de fontes do regime soviético e da Internacional Comunista, pesquisadas em Moscou, e gravações em áudio de reuniões do Comitê Central do PCB realizadas no exílio.

“A perspectiva biográfica e historiográfica de Reis é desmitificadora, crítica e revisionista,” diz o pesquisador. Gaudêncio avalia que a postura do autor baseia-se em um processo de desconstrução de certos dogmas sobre Luiz Carlos Prestes. Reis procura fazer uma abordagem política, em que o lado humano é pouco captado. Isso se explica, em parte, por sua tentativa de procurar evidenciar o lado humano, em vez do mito, construída, por exemplo, no texto de Jorge Amado. “Essa escolha incide inclusive na interpretação apresentada no subtítulo da obra, um revolucionário entre dois mundos, que pode carregar diversos significados, desde a ideia de dois mundos (Brasil e União Soviética), como também a ideia do mundo humano e o mundo mítico,” diz.

Por último, a biografia Luiz Carlos Prestes: um Comunista Brasileiro, da historiadora Anita Leocádia Prestes. Publicada em 2015, em um contexto semelhante ao da biografia de autoria de Reis. A diferença é que as composições de ambas são quase sempre divergentes. Rigorosa em seu fazer historiográfico, a biografia possui o mérito do bom trabalho com as fontes documentais, algumas inclusive inéditas, graças à facilidade da autora, que conviveu e auxiliou seu biografado durante seus os últimos anos de vida. “Porém, apesar das qualidades, Anita recai em certo proselitismo, ou seja, em zelar no convencimento de suas ideias sobre seu pai e o comunismo,”.

“Além disso, opta por dar voz quase sempre a Prestes, compreendido como uma espécie de dono da verdade, através de entrevistas que fez com ele na década de 1980. Além disso, escolheu fontes documentais de acordo com as vinculações com o biografado. Tais entrevistas são privilegiadas inclusive em detrimentos de outras realizadas por outros pesquisadores ou biógrafos,” comenta. A postura de Anita é quase sempre de defesa de Prestes. Quando não o defende, aproxima-se da visão monumental de Jorge Amado, em sua produção dos anos 1940, reforçando a ideia de um mito político revolucionário, a exemplo da abordagem que fez sobre a Coluna Miguel Costa-Prestes.

“Para Anita, há uma positividade em todas as ações de Prestes no que se refere à chamada Grande Marcha, sendo um pioneiro nas relações mais próximas com os subordinados, criador de uma nova moral e um gênio militar, invencível no campo de batalha.” Gaudêncio avalia que a biografia de Anita reafirma uma memória heroica de Prestes, construída e reconstruída em diversos momentos, como nos anos 1920 e 1940, tornando-se uma espécie de historiadora oficial dos temas que envolveram a trajetória do pai, como também da mãe, Olga Benário.

Ao longo de seu estudo, Gaudêncio mostrou que as narrativas sobre Prestes o confundem, em vários aspectos, com a vida e a memória partidária do PCB, e de certa maneira, com a história da esquerda brasileira no século XX. A vida de Prestes foi sendo construída em fórmulas biográficas nas quais o silenciamento de conflitos ideológicos, familiares e políticos foram se estabelecendo de uma forma que só o confronto entre testemunhas promoveria uma melhor compreensão. “Algo que só foi possível mais recentemente, por meio das biografias produzidas por historiadores, a exemplo das de Daniel Aarão Reis e Anita Leocadia Prestes,” finaliza.

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