Por Carlos Arthur Newlands “Boné”
(com contribuições dos camaradas Golbery Lessa, Ivan Pinheiro e reprodução de parte de artigo escrito pelos camaradas Muniz Ferreira, Milton Pinheiro e Ricardo Costa)
Introdução
No ano do centenário de fundação do PCB – Partido Comunista Brasileiro, o tema da Declaração de março de 58 assume especial relevância no debate das comemorações desta efeméride: basta lembrar que a declaração de Março foi o estopim do processo que culminou, no V Congresso do PCB, na explicitação de divergências profundas que geraram o “Manifesto do 100”, embrião da criação em 1962 do PC do B (que cria esta sigla nova, recuperando o nome original de 1922 de Partido Comunista do Brasil).
A Declaração de Março de 58 desperta até hoje saudável e acirrada polêmica nos meios comunistas, marxistas e de esquerda brasileiros: desde aqueles que a caracterizam positivamente como “amadurecimento da perspectiva de construção de uma via brasileira ao socialismo”, até aqueles que afirmam que a Declaração de 58 “representa uma ruptura com qualquer perspectiva revolucionária”. Nesse artigo, busco uma mediação sem conciliação entre essas duas avaliações opostas: nem tão barro nem tão tijolo assim.
Para começar, não podemos fazer uma análise realmente marxista, portanto crítica e desapaixonada, da declaração de Março de 58 sem examinar o período anterior, em especial aquele que se abre com o Manifesto de Agosto de 50.
O Manifesto de Agosto de 1950: escrito a quente no auge da Guerra Fria
Em 1950, o PCB era um Partido traumatizado.
Da fundação em 1922 até o fim da 2ª Guerra Mundial em 45, o Partido tinha vivido curtíssimos períodos de legalidade ou semilegalidade e enfrentado as perseguições do estado de sítio de Artur Bernardes, da Lei Celerada de Washington Luís e da ditadura do Estado Novo de Vargas. A derrota do nazifascismo pelos Aliados em 45, a volta à legalidade e a eleição de parlamentares constituintes, além de deputados estaduais e vereadores Brasil afora, trazia a impressão de uma consolidação democrática no Brasil – mas tal ilusão rapidamente se desfez com a ofensiva reacionária do governo Dutra, sintonizada com a postura agressiva assumida pelo imperialismo estadunidense a partir do enunciado da Doutrina Truman em 1947. Após a cassação do registro do PCB[1] e dos mandatos de todos os seus parlamentares nos três níveis, a perseguição aos comunistas se intensificou e tornou-se mais violenta – basta ver os assassinatos no meio da rua dos camaradas Jaime Calado no Ceará e Zelia Magalhães no Rio de Janeiro, o Massacre dos Comunistas de Tupã e os tiros contra a manifestação de 1º de Maio em Rio Grande.
É nesse ambiente de violência política interna e acirramento das tensões internacionais, com a intensificação da Guerra Fria e a eclosão da Guerra da Coreia em junho de 1950, que o na época denominado Comitê Nacional do PCB publica o Manifesto de Agosto, assinado pelo Secretário-Geral Luís Carlos Prestes. Naquele documento, o Partido dirige-se aos “trabalhadores, patriotas e democratas” caracterizando os governantes como um “bando de assassinos, negocistas e traidores que hoje governa o país”, conceituando o governo Dutra como “de traição nacional” e apontando que a agressividade do imperialismo estadunidense “premidos pela crise econômica em que se debatem querem precipitar o desencadeamento da guerra mundial, já proclamam cinicamente suas bárbaras intenções e ameaçam matar com suas bombas atômicas a mulheres e crianças, a jovens e velhos, indistintamente, para impor ao mundo sua dominação escravizadora”, além de “na Coreia, os aviões norte-americanos já trucidam a mulheres e crianças e bombardeiam povoações pacíficas”. O Manifesto denuncia a sabujice de Dutra frente ao imperialismo dos EUA: “por meio do terror fascista, procurando criar um clima de guerra civil, que o governo de traição nacional de Dutra quer levar o país à guerra e fazer de nossa juventude carne de canhão para as aventuras bestiais de Truman”.
No ano de 1950 aconteceria a eleição presidencial, e o Partido assim caracterizava as candidaturas postas no jogo: “Sob o jugo imperialista, como nos encontramos nem eleições nem golpes de Estado “salvadores” poderão modificar a situação. O que pretendem as classes dominantes é substituir Dutra por outro Dutra, seja ele um sr. Cristiano Machado, o politiqueiro do P.S.D., que espera ser eleito com a força do governo e que proclama por isso, às escâncaras, sem um mínimo de pudor patriótico sua fidelidade à política de traição nacional do sr. Dutra, ou seja o sr. Eduardo Gomes, que sempre silenciou diante de todos os crimes da ditadura, o mesmo Brigadeiro que defende a entrega do petróleo a Standard Oil, que se alia cinicamente aos traidores do nazi-integralismo e que, inimigo da paz e do progresso, inimigo do povo que despreza, já defende com servilismo a guerra de Truman na Coréia e a total entrega de nossas forças armadas ao comando norte-americano. Nessa competição resta ainda o candidato do facínora Ademar de Barros e é fácil de imaginar o que significaria a volta ao poder do velho tirano, do latifundiário Getúlio Vargas, pai dos tubarões dos lucros extraordinários, que já demonstrou em quinze anos de governo seu ódio ao povo e sua vocação para o fascismo e para o terror sangrento contra o povo”.
A análise do Partido concluía que “é evidente, pois, que qualquer que seja a saída que possam tentar neste momento, as classes dominantes se encaminham para a liquidação dos últimos vestígios de liberdade, para a mais sangrenta repressão contra o povo para a ditadura fascista. É o caminho da entrega completa do país aos monopólios anglo-americanos e da preparação acelerada para a guerra imperialista”.
Frente a esta situação, o Partido no Manifesto de Agosto propõe “substituir o governo da traição, da guerra e do terror contra o povo pelo governo efetivamente democrático e popular. Para isso, é indispensável liquidar as bases econômicas da reação, o que significa a confiscação das empresas imperialistas e dos grandes monopólios estrangeiros e nacionais, a nacionalização dos bancos, dos serviços públicos, das minas, das quedas d’água, e, igualmente, a confiscação das grandes propriedades latifundiárias que devem passar gratuitamente para as mãos dos que nelas vivem e trabalham”. Para dar conta desta tarefa revolucionária, o PCB propunha no Manifesto de Agosto que “saibamos organizar e unir nossas forças em ampla FRENTE DEMOCRÁTICA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL, organização de luta e de ação em defesa do povo, com raízes nas fábricas e nas fazendas, nas escolas e repartições públicas, nos quartéis e nos navios, em todos os locais de trabalho, enfim, nos bairros das grandes cidades e nas aldeias e povoados”.
Desdobramentos do Manifesto de Agosto: combatividade, sectarismo e isolamento
O PCB no Manifesto de Agosto era claramente um Partido que se preparava para uma conflagração bélica mundial e uma revolução popular no Brasil. Essa postura levou o Partido a várias iniciativas combativas heróicas e exitosas, mas também a um isolamento das massas – especialmente no movimento sindical –, a uma superestimação do nível de consciência da classe trabalhadora e à subestimação das contradições internas da burguesia. Como exemplos de ações combativas, ousadas e exitosas sob direção ou grande influência do Partido, podemos citar a campanha “Nossos filhos não irão guerrear na Coreia”, a luta camponesa de Trombas e Formoso e a luta camponesa de Porecatu no Paraná.
Um dos grandes problemas que o Partido passou a enfrentar foi o isolamento das bases operárias e trabalhadoras no movimento sindical. Os sindicatos eram majoritariamente dirigidos pelos trabalhistas do PTB de Getúlio, o “velho tirano, latifundiário e pai dos tubarões dos lucros extraordinários”; a consequência lógica era que os comunistas no movimento sindical passaram a se dedicar à tarefa de construir os “comitês da Frente Democrática de Libertação Nacional”, que passaram a se comportar na prática como sindicatos paralelos. O problema é que as massas trabalhadoras não aderiram aos comitês de FDLN: continuavam frequentando as assembleias dos sindicatos oficiais. Pouco a pouco, os comunistas passaram também a ir às assembleias sindicais disputar e muitas vezes ganhar propostas de encaminhamentos e lutas.
A superação do esquerdismo do Manifesto de 1950 começou a ocorrer pela base, pois os sindicalistas perceberam que os operários não viam sentido nos comunistas saírem dos sindicatos e não se aliarem aos trabalhistas mais à esquerda em um momento que a repressão era brutal e as conquistas legais e salariais estavam em risco. Estas experiências de base e outras variáveis, como o avanço da indústria de bens de capital e da industrialização em geral, foram construindo dentro do partido uma percepção menos isolacionista e menos esquerdista. Essa viragem na prática foi fundamental para, por exemplo, o Partido assumir um papel decisivo na organização e liderança da vitoriosa greve dos 300 mil em São Paulo ainda em 1953.
Na prática, a participação do Partido na vitoriosa campanha “O Petróleo É Nosso” (que já vinha desde 1947, mas concluiu-se com a aprovação da lei que criou a Petrobrás já no governo Vargas) era por um lado uma certa flexibilidade em relação à “linha dura” do Manifesto de Agosto; entretanto, por outro lado era consistente com a concepção etapista de “libertação nacional” que o Partido tinha desde os anos 30, manteve no Manifesto de Agosto e continuou na Declaração de Março. Mais à frente, retomaremos este ponto.
Na institucionalidade, o marco de ruptura com o isolacionismo esquerdista foi o suicídio de Vargas. Até poucos dias antes da tragédia do Catete, o Partido tinha uma política expressa em seu jornal Voz Operária de ataque cerrado a Getúlio, inclusive com charge caracterizando-o como “macaco de imitação do belicismo ianque” publicada em 04 de agosto de 54, apenas vinte dias antes do suicídio.
Segundo Jacob Gorender em entrevista a Waldir José Rampinelli publicada na revista Brasileira de História em 2003,
Getúlio se elegeu e ficou o tempo todo de seu governo sob o ataque incessante do PCB. Quando a crise chegou ao seu auge em agosto de 1954, e Vargas estava sob o fogo cerrado da direita, o PCB não se deu conta de que a conjuntura sofrera uma mudança radical, permanecendo no ataque a Vargas. Somente alguns dias antes do suicídio de Vargas, Prestes conclamou o PCB, pela imprensa, a apoiar Getúlio. No entanto, isto foi inócuo pois os acontecimentos já estavam dados. Além disso, este apoio era cheio de restrições. Resultado: Getúlio cometeu o suicídio, as massas trabalhistas saíram às ruas e os militantes comunistas não tiveram alternativa senão a de juntar-se, nos mesmos protestos, aos trabalhistas. Esta questão, que deixou o PCB perplexo, influiu na posição com relação a JK.
No mesmo diapasão, o artigo “A visão comunista do governo Vargas”, publicada na Revista Rumos da História em maio de 2019, constata acerca do tratamento dado pelo Voz Operária a Getúlio:
(…)verifica-se que a morte de Getúlio Vargas em 1954 provoca uma guinada nas publicações que faziam menção a ele, pois antes tido como algoz, surge a partir de então como uma vítima das pretensões norte-americanas, que o tiraram de cena por meio de uma atitude golpista, de modo que seu suicídio é transformado em assassinato. Seu nome começa a ser utilizado na tentativa de congregar os comunistas com o setor que apoiava o presidente, isto é, os trabalhistas. Anteriormente, criticado e ridicularizado pelo jornal, desse momento em diante, passa a ser evocado simbolizando a necessidade de haver união para luta contra um adversário comum.
Até agora, elencamos os elementos internos que levavam o PCB na prática a superar o sectarismo isolacionista decorrente da política do Manifesto de Agosto. Entretanto, a Declaração de Março de 58 nasce também de um importantíssimo componente externo: o XX Congresso do PCUS e o Relatório Kruschev.
O PCB, o XX Congresso do PCUS e o Relatório Kruschev
Para não “reiventarmos a roda”, reproduzimos abaixo trechos do artigo “Breve balanço das polêmicas e dissidências comunistas no Brasil” de autoria dos camaradas Muniz Ferreira, Milton Pinheiro e Ricardo Costa publicado no site do Partido em dezembro de 2021, que trata com precisão e riqueza de dados este período.
“O chamado processo de “desestalinização”: debates e dissensões no PCB
O coroamento do processo de renovação da linha política deu-se, de fato, com as discussões em torno dos informes do XX Congresso do PCUS (Partido Comunista da União Soviética), que, realizado em fevereiro de 1956, deu início ao chamado processo de “desestalinização”, deixando perplexos os militantes dos partidos comunistas. No Brasil, o debate provocou a divisão do partido, fundamentalmente, em três correntes: uma, que pretendia aprofundar as mudanças iniciadas com o processo, inclusive com a negação de princípios leninistas; outra, que rejeitava qualquer crítica ao período em que Stalin foi o dirigente máximo da URSS e do movimento comunista internacional; a última, formada pelo núcleo hegemônico no interior do PCB, que tentava obter um equilíbrio entre as posições anteriores.
O primeiro grupo, composto principalmente por intelectuais ligados à imprensa mantida pelo PCB, maior responsável pela deflagração dos debates, centrava suas críticas no autoritarismo partidário e no dogmatismo, apresentando propostas políticas alternativas ao programa do IV Congresso, que foram sintetizadas em artigo de Agildo Barata publicado em Novos Tempos, em setembro de 1957. Dentre elas destacava-se a ideia de uma etapa preferencialmente anti-imperialista da revolução brasileira naquele momento histórico, a exigir uma fase inicial de acumulação de forças que abriria mão da hegemonia do proletariado em troca da formação de uma ampla “frente única, nacional e democrática”, capaz de unir operários e camponeses a representantes até da grande burguesia e dos latifundiários em torno de um projeto nacional-reformista. No decorrer da discussão política, o grupo ficaria isolado na luta interna, Agildo Barata seria expulso do PCB, e muitos dos seus companheiros “renovadores” abandonariam as fileiras do partido.
O segundo grupo, minoritário no centro dirigente comunista (João Amazonas, Maurício Grabois, Pedro Pomar e Diógenes de Arruda Câmara, os quais haviam composto, juntamente com Prestes e Marighella, o grupo responsável pela reorganização do Partido nos anos 1940, através da Comissão Nacional de Organização Provisória – CNOP), preocupado, acima de tudo, em manter os princípios doutrinários e a organização partidária centralizada, repelia veementemente as críticas ao período de Stalin. Em julho de 1957, na primeira reunião do Comitê Central de que Prestes tomava parte após a retirada para a clandestinidade em 1948, foi a vez de o Partido acertar suas contas com este grupo, então identificado como “conservador” e “dogmático” por recusar as novas orientações vindas de Moscou. Como resultado da intensa luta interna travada no interior do Partido e pelo fato de o grupo ter ficado em minoria no debate, Arruda Câmara, Grabois e Amazonas perderam seus postos na Comissão Executiva e foram deslocados para outros Estados por decisão do colegiado do CC.
O núcleo dirigente central consolidou-se em torno das lideranças de Giocondo Dias, Mário Alves, Jacob Gorender e Armênio Guedes, entre outros, aos quais se juntaram Prestes e Marighella, grupo que, tendo se constituído ao longo da polêmica interna, tornou-se majoritário no PCB, ao adotar uma política equilibrada, recusando a crítica aberta dos “renovadores” à estrutura partidária, ao mesmo tempo em que aceitava, com cautelas, críticas ao período em que teria predominado o culto à personalidade de Stalin. Este grupo foi responsável pela redação da Declaração de Março de 1958. Sob coordenação de Giocondo Dias, conforme designação do Comitê Central, foi organizada comissão para redigir documento que sistematizasse a posição do coletivo sobre as discussões travadas a partir do informe do XX Congresso do PCUS. A comissão formada por Mário Alves, Alberto Passos Guimarães, Jacob Gorender, Armênio Guedes, Dinarco Reis e Orestes Timbaúba, com acompanhamento de Carlos Marighella, além de Dias, redigiu o polêmico manifesto, que foi aprovado no Comitê Central, após intensos debates.
A Declaração de Março de 1958: a nova estratégia política do PCB
A nova orientação dada pela Declaração de Março de 1958, concebida sob o impacto dos debates provocados pelo informe do XX Congresso do PCUS, passava a reconhecer, explicitamente, o desenvolvimento capitalista em curso dentro do país e indicava a necessidade da interferência dos comunistas nos rumos deste processo, por meio de pressões populares sobre o Estado. Isso explica a participação cada vez maior do PCB junto aos movimentos nacionalistas e, em princípios dos anos 1960, na campanha pelas reformas de base, compondo um amplo arco de alianças que apostava numa alternativa de desenvolvimento econômico anti-imperialista. Para alcançar tal objetivo, no entanto, era vista como necessária a ultrapassagem dos “resquícios feudais” que os comunistas insistiam em identificar na realidade brasileira, o que os mantinham presos à perspectiva etapista da plena realização do capitalismo como forma de iniciar a transição para a sociedade socialista.
Outro ponto de destaque no documento foi a importância dada à questão democrática, ainda que permanecendo subordinada à questão nacional. A Declaração indicava a necessidade da confirmação dos amplos espaços democráticos, através da pressão popular, num processo de acumulação de forças, com vistas à conquista das soluções positivas para os problemas brasileiros. E apontava ainda a possibilidade real de se conduzir a revolução brasileira por meios pacíficos, com a obtenção de reformas profundas e consequentes na estrutura econômica e nas instituições políticas, chegando-se até a realização completa das transformações radicais colocadas na ordem do dia pelo próprio desenvolvimento econômico e social da nação.
A proposta de “união nacional” com a burguesia consolidava-se como parte fundamental do projeto de revolução democrático-burguesa associado ao processo de pleno desenvolvimento das forças produtivas no país e de consequente superação das “sobrevivências feudais”, expressas na grande concentração latifundiária e no elevado grau de exploração do campesinato, as quais freavam o progresso da agricultura e acentuavam a extrema desigualdade entre o sul/sudeste industrializado e o norte/nordeste agrário. O desenvolvimento capitalista nacional, naquela fase, era entendido como o elemento progressista necessário para destravar a economia brasileira, cuja expansão, aos olhos dos comunistas, chocava-se com a resistência do atraso representado pelo latifúndio e com a pressão externa exercida pelo imperialismo. Reforçava-se a ideia central segundo a qual as contradições básicas existentes na sociedade brasileira, naquele momento específico da história, dar-se-iam entre o conjunto da nação, de um lado, e o imperialismo norte-americano, de outro; entre as forças produtivas em desenvolvimento, de um lado, e as relações de produção semifeudais e semicoloniais predominantes no campo, de outro. Daí que a contradição entre capital e trabalho, sempre trabalhada pelos clássicos do marxismo como a contradição fundamental no capitalismo, não fosse vista como a mais premente naquela “etapa”, muito menos a sua solução radical”.
Assim, a Declaração de Março representou a confluência de dois movimentos independentes, autônomos, de origens distintas e que acabaram se congregando: o movimento interno de reconhecer a importância da luta pela ampliação dos espaços democráticos, da unidade da luta da classe trabalhadora a partir das entidades reconhecidas pelas massas e da capacidade de utilizar as contradições intraburguesas a favor da luta da classe trabalhadora; de outro lado, o movimento externo da “desestalinização” do XX Congresso do PCUS trouxe a perspectiva (que a História posteriormente demonstrou ser absolutamente ilusória) da possibilidade da “via pacífica para o socialismo” e reforçou a concepção de “etapa nacional-democrática, antifeudal e anti-imperialista”[2] na qual seria correta e necessária uma “aliança estratégica” com a denominada “burguesia nacional”.
Então, a Declaração de 1958 tem estas duas faces; foi um “erro fértil” (quando um erro abre, contraditoriamente, a possibilidade de percepção de determinados nexos parciais relevantes, mesmo encobrindo a essência da totalidade), pois, superando o esquerdismo, permitiu a percepção de mediações que calibraram corretamente parte da política de alianças geral do partido, garantindo sua expansão e sua hegemonia na esquerda; mas, por outro lado, como trazia em si um “erro estratégico trágico”, que era o reboquismo, o pacifismo e todos os problemas derivados, foi uma das principais razões da dura derrota que o PCB e os trabalhadores brasileiros sofreram com o golpe sob a forma militar perpetrado, em abril de 1964, pelas frações hegemônicas da burguesia brasileira e pelo imperialismo, na medida em que alimentava a ilusão de que as reformas do governo popular e democrático iriam de vento em popa, sem riscos de retrocessos.
Considerações finais
Não cabe no escopo desse artigo a análise aprofundada e detalhada da política do PCB pós golpe de 1964, de certo já feita pelo nosso Partido em vários outros documentos. A conclusão mais importante é que tanto o Manifesto de Agosto de 50 quanto a Declaração de Março de 58 são o “verso e reverso” de táticas diametralmente opostas resultantes da mesma estratégia etapista equivocada. Como afirmam os camaradas Muniz Ferreira, Milton Pinheiro e Ricardo Costa no final do artigo supramencionado,
Nos últimos anos, nós, comunistas do PCB, temos procurado caracterizar a realidade brasileira com base na perspectiva central de que o capitalismo se desenvolveu de forma plena no país. Rompemos em definitivo com a estratégia nacional-democrática ou nacional-libertadora, a partir do momento que deixamos de ter qualquer ilusão com a possibilidade de construção de um “capitalismo nacional autônomo”, capaz de se chocar com os imperativos mundiais do capitalismo monopolista e do imperialismo. Tentamos aprender com os erros do passado, em especial com a derrota imposta aos comunistas e à classe operária pelo golpe de 1964 e pela ditadura que aprofundou o capitalismo no país. Daí afirmarmos categoricamente que o caráter da revolução no Brasil é socialista e defendermos uma estratégia de lutas anticapitalista e anti-imperialista como única alternativa possível à realidade atual, de hegemonia completa da burguesia.
[1] Aqui um parênteses: ainda temos uma lacuna de explicação histórica de porque o PCB, com tanta inserção e expressão social como tinha em 1947, não foi capaz de empolgar um poderoso movimento de massas que se contrapusesse à sua cassação – lembremos que nem mesmo o Partido Comunista do EUA chegou a ser formalmente declarado ilegal, embora perseguidíssimo durante o macarthismo.
[2] Ressaltamos que a ilusão teórica e ideológica de “etapa nacional-democrática, antifeudal e anti-imperialista” da revolução não é consequência da Declaração de Março: essa concepção etapista da revolução esteve presente no PCB desde seus primórdios e também comparecia no Manifesto de Agosto de 1950, expressa claramente naquele Manifesto na proposta de constituição de uma Frente Democrática de Libertação Nacional.