Por Rômulo Caires
O escritor russo Fiodor Doistoievski completaria 200 anos no dia 11 de novembro e depois de tantos anos após suas últimas publicações, que inclui o monumental romance Os Irmãos Karamazov, sua influência e interesse não cessam de aumentar no Brasil. A cada dia que passa, ganhamos traduções melhores e mais completas da sua obra. Tradutores como Boris Schnaiderman e Paulo Bezerra tornaram-se notórios por verterem diretamente do russo o complexo texto do escritor e permitir que os leitores de língua portuguesa acessassem esta obra, que representa não só um vasto panorama da sociedade russa do século XIX como também um grande inventário das ideias circulantes no mundo ocidental.
Muitos críticos já observaram que a fascinação despertada nos brasileiros pelos grandes romances de Dostoievski diz respeito às semelhanças entre a sociedade autocrática russa e a nossa sociedade. Se esta análise não consegue dar conta do interesse universal pela obra do escritor russo, que inclui aprovação de críticos dos mais variados matizes ideológicos, indo de conservadores cristãos à marxistas revolucionários, não deixa de ser uma chave heurística para refletirmos sobre como a literatura é capaz de figurar os pressupostos históricos de uma época. Dostoievski trouxe, a partir das múltiplas vozes ecoadas em seus romances, a materialidade da vida que emerge do “desenvolvimento do subdesenvolvimento”, da modernização que traz junto de si as mazelas da sociedade anterior e promete sonhos que não são capazes de cumprir.
Foi essencialmente um escritor preocupado em mostrar a cisão na vida dos grandes centros urbanos, a opressão voraz do capitalismo nascente e o padecimento das figuras humanas vindas “de baixo”. Desde seu romance de estreia, Gente Pobre, Dostoievski está interessado em oferecer retratos da vida dos marginalizados e esquecidos pelo status quo. Por seu instinto “plebeu” foi acusado muitas vezes de não ser um grande artista, mesmo quando já era o escritor mais popular da Rússia e se tornava conhecido em toda a Europa. Não é mera coincidência que um de nossos grandes romancistas, Lima Barreto, tenha sofrido tantas vezes a mesma crítica. Excluindo o fato de que ambos os escritores sempre necessitaram publicar seus livros com rapidez para sobreviver dos direitos autorais e com isso não terem tido o tempo para possíveis apuros formais, resta o fato de que tanto Dostoievski como Lima Barreto perceberam que não podiam mais escrever como antes. Representar a realidade que os cercava não podia ser compatível com dourar as palavras com o espírito classicista ou parnasiano.
A atmosfera opressiva de São Petersburgo da segunda metade do século XIX ou do Rio de Janeiro do início do século XX só podia ser expressa por uma linguagem que fosse até o limite de suas possibilidades, que mostrasse as crises disruptivas dos personagens a partir de seu ponto de vista interno. O romance toma dimensão psicológica, mas sem perder seu caráter intrínseco de crônica social. Lima Barreto admirava a capacidade de Dostoievski de perscrutar a alma humana, dar forma aos seus abismos e desvelar as condições que impedem as relações substantivas. O escritor carioca recomendava aos jovens que o procuravam que dessem muita atenção à literatura russa, mas não deixava de insistir: “especialmente Dostoievski de Crime e Castigo e Escritos da Casa dos Mortos”. Pois, é neste último romance que surge o que Paulo Bezerra denominou de “laboratório de ideias” de Dostoievski. A própria história deste livro é cercada de situações limites, quase fantásticas. Dostoievski tinha sido condenado à morte por participar de um grupo de escritores revolucionários, mas no último minuto, de olhos vendados e tendo a certeza de que seria assassinado, teve sua pena de morte suspensa. Foi enviado para a Sibéria, onde permaneceu longo período preso e posteriormente realizando trabalhos obrigatórios. Da vivência na prisão, do conhecimento que passou a ter da vida dos encarcerados, saiu grande parte das temáticas que Dostoievski desenvolverá posteriormente em sua obra. Dali Lima Barreto certamente absorve argumentos que aparecem por exemplo no Diario de um Hospício e em Cemitério dos Vivos, escritos que trazem à tona a barbárie do manicômio e do encarceramento.
Por mostrar a realidade justamente em seus dilaceramentos e contradições, Dostoievski sempre foi um crítico do que o filósofo alemão Hegel chamava de “bela alma”. Uma análise puramente moral dos processos sociais e dos caracteres humanos são incapazes de dar conta da complexidade da realidade. É preciso desvelar a gênese das condições dadas. Raskolnikov ou Ivan Karamazov guardam dentro de si os sentimentos mais sublimes ao mesmo tempo que são capazes das ações mais torpes. Não é que Dostoievski fosse algum tipo de escritor “amoral”, mas ele entendia que há forças muito maiores do que o indivíduo. O culto ao individualismo, aspecto basal da sociedade burguesa, é impiedosamente desmascarado, sugerindo forte teor anticapitalista nos escritos de Dostoievski. Novamente, não devemos nos enganar com análises unidimensionais. Não é que Dostoievski fosse até o fim da vida um revolucionário e anti-czarista. Muito pelo contrário, o escritor russo despejou nas páginas de seu Diário de um Escritor, um de suas últimas publicações, uma série de reivindicações típicas dos nacionalistas xenófobos daquele período, assim como os dizeres conservadores da Igreja Ortodoxa Russa.
Tal contradição entre um Dostoievski implacavelmente crítico da sociedade capitalista e que nutria explicitamente simpatia pelos personagens vindos da plebe com um outro Dostoievski que nutria posições políticas reacionárias trouxe enormes desafios àqueles críticos capazes apenas de entender a literatura como uma expressão de preceitos “sociológicos”. Para estes, Dostoievski seria um escritor menor justamente por ser reacionário no plano político, pouco importando que o efeito imanente de sua obra suscitasse a admiração de autênticos revolucionários justamente por desmascarar tão habilmente a ordem estabelecida. Mesmo sendo um cristão fervoroso, Dostoievski foi capaz de criar personagens extraordinários como Ivan Karamazov, que professava abertamente o seu ateísmo. Poderíamos aqui invocar a “vitória do realismo” na obra de Dostoievski, categoria criada por Engels para mostrar que mesmo escritores politicamente conservadores como Balzac eram capazes de figurar críticas implacáveis da sociedade capitalista em seus romances. A fidelidade ao real, a necessidade de ouvir as múltiplas vozes do todo social e por meio de artifícios literários trazer essas vozes à vida, fez de Dostoievski um escritor ímpar na capacidade de criar tipos humanos de grande universalidade.
Essa escrita “polifônica”, que conseguia diferenciar completamente seus personagens através da linguagem específica de um, encarnou na literatura as ideias mais significativas do tempo histórico do escritor. É como se as próprias ideias tivessem vida própria, induzissem diferentes efeitos a depender do local e do tempo. Muitas vezes, essas ideias aparecem “fora de lugar”, é como se não se adequassem bem aos personagens que as portam, chegando muito cedo ou muito tarde aos seus conhecimentos. Não é que o escritor russo postulasse um tipo de fatalismo em que determinadas ideias inexoravelmente levassem a determinadas desfechos. Na verdade, ele insistia no fato de que algumas ideias não poderiam se realizar sem uma transformação radical de toda a sociedade.
Uma dessas ideias sempre presentes na obra de Doistoievski e que a partir dos bloqueios para a sua realização apontam para a necessidade da transformação social é a de comunidade humana reconciliada. Ela surge por exemplo em uma novela chamada O Sonho de um Homem Ridículo. No decorrer da novela somos apresentados a um sonho fantástico no qual haveria uma sociedade na qual a miséria e o sofrimento estariam superados. Há que se levar em conta a boa dose de ironia em que Dostoievski retrata este sonho como também não podemos ignorar um certo desfecho pessimista na novela. Porém, o ponto central é que Dostoievski estava às voltas com a necessidade de realizar o “reino de Deus” na própria vida terrena. Se muitas das soluções de Dostoievski podem ser sumamente recusadas pelo seu claro teor conservador, por exemplo ao aventar a possibilidade de uma salvação e ressureição do ser humano através da fé na Igreja, podemos enfaticamente afirmar que Dostoievski é incontornável não pelas soluções apresentadas, mas pela sua capacidade de fazer as perguntas corretas.
Se Dostoievski não trouxe uma completa “renovação espiritual” como desejavam alguns de seus intérpretes, ele foi decisivo na crítica a vários dos mecanismos sociais que oprimem os setores marginalizados da sociedade. Com Dostoievski, aprendemos como a industrialização acelerada e a criação de centros urbanos caóticos é um fermento para todo tipo de doença psíquica e mal-estar. Se seus personagens nos parecem tão atuais hoje é porque o desenvolvimento capitalista continuou desestruturando as relações humanas e criando marcas em todas as instâncias da vida cotidiana. Ao desvelar tais contradições, Dostoievski foi capaz de nos mostrar a necessidade da transformação radical da sociedade e a possibilidade de imaginarmos um novo mundo. Por isso, o grande escritor russo ainda se mantém vivo entre nós.
Rômulo Caires é militante do PCB da Bahia.
Publicação original: https://omomento.org/200-anos-de-dostoievski-sobre-a-possibilidade-de-um-novo-mundo/