David Harvey X John Smith: ainda existe imperialismo?

Segundo Osório (2021, p. 79), “a inserção do marxismo nos debates internacionais, além de imprescindível, é incontornável para superar a aparência de sofisticação e penetrar até o cerne da realidade”. Porém, para se manter minimamente fiel ao método inaugurado por Marx e Engels, o marxismo jamais pode ser encarado como uma teoria acabada. Com efeito, como demonstra Fernandes (2021), o recrudescimento do imperialismo nas últimas décadas tem ensejado importantes debates no âmbito do marxismo. Sem nenhuma pretensão de abarcar toda a complexidade do debate em tela e correndo sério risco de incorrer em reducionismos, destaco três grandes posições que, no meu entendimento, são a alma desta rica discussão. A primeira é a que nega a atualidade do imperialismo. A segunda e a terceira são aquelas que, admitindo ou não questionando o imperialismo como um problema atual, localizam o eixo da exploração capitalista no Norte ou no Sul Global, respectivamente.    

David Harvey é hoje, sem dúvida, o maior nome em matéria de negação marxista do imperialismo. Autor de vastíssima obra sobre a geografia econômica do capital (HARVEY, 2003, 2005, 2006, 2009, 2011a, 2011b, 2013, 2016, 2018a), o professor e pesquisador britânico reconheceu, em alguns momentos, as contribuições dos clássicos do marxismo e seus estudos sobre o imperialismo. Contudo, sem desenvolver essas contribuições, Harvey efetivamente dedicou grande parte de seus textos à elaboração de uma “teoria do desenvolvimento geográfico desigual”. Não sendo possível analisar o conjunto da sua ampla produção bibliográfica neste espaço, passemos diretamente a uma afirmação que suscitou grandes polêmicas no último lustro:[1]

Aqueles que pensamos que as velhas categorias do imperialismo não funcionam muito bem nestes tempos não negamos de forma alguma os complexos fluxos de valor que expandem a acumulação de riqueza e poder em uma parte do mundo às custas de outra. Simplesmente pensamos que os fluxos são mais complicados e mudam de direção constantemente. A drenagem histórica da riqueza do Oriente para o Ocidente por mais de dois séculos, por exemplo, foi amplamente revertida nos últimos trinta anos. (HARVEY, 2017, p. 169, tradução livre).

A citação acima não é apenas um pensamento isolado do conjunto da obra do proeminente geógrafo britânico. Para John Smith, autor de Imperialism in the Twenty-First Century (SMITH, 2016) e crítico contumaz de David Harvey, os escritos mais recentes deste acadêmico parecem mais voltados a encobrir do que a analisar de fato a exploração imperialista moderna. Onde há aumento da superexploração da força de trabalho no Oriente, Harvey veria uma drenagem de recursos do Ocidente; onde se intensifica o controle sobre as migrações, Harvey veria uma globalização capaz de reduzir as diferenças entre os exércitos de reserva no centro metropolitano e na periferia; onde a arbitragem global do trabalho impulsionaria a reprodução ampliada do capital, Harvey veria apenas a expansão dos processos de expropriação; enfim, onde há fortalecimento do imperialismo, Harvey veria sua superação.

Smith (2017) argumenta que o deslocamento de parte significativa da produção global para países periféricos representa o apogeu e não o declínio do imperialismo. Longe de estabelecer uma “exploração do Ocidente pelo Oriente”, a busca de matérias-primas e força de trabalho barata por parte das grandes corporações capitalistas reforçaria os centros econômicos tradicionais. Incapaz de enxergar essa realidade, Harvey teria chegado à conclusão de que hoje, ao contrário do cenário analisado pelos marxistas no início do século XX, haveria “um ‘capital global’ desenraizado, desterritorializado e despersonalizado que lucra com o deslocamento da produção para países de baixos salários, e não multinacionais americanas e europeias e seus proprietários capitalistas.” (SMITH, 2017, p. 3, tradução livre).

Respondendo a Smith, Harvey argumenta que o Oriente do qual fala é constituído por China, Japão, Coreia do Sul, Taiwan e Cingapura, “um bloco de poder na economia global (…) que agora responde por cerca de um terço do PIB mundial (em comparação com a América do Norte, que agora representa pouco mais de um quarto).” (HARVEY, 2018b, p.1, tradução livre). Além disso, entre os países citados estão os detentores de parcelas crescentes da dívida pública estadunidense e grandes exportadores de capital para a Europa e para a América do Norte. Ainda segundo Harvey, não se deveria ignorar a superexploração promovida por empresas taiwanesas e sul-coreanos, bem como a sede chinesa por terras e commodities na América Latina e na África. Por fim, o autor de O Novo Imperialismo avalia que está em curso um processo de redução do poder e dos privilégios dos movimentos da classe trabalhadora do Norte global e que a teoria do imperialismo de Smith é excessivamente rígida.

Mas as críticas de Smith não se restringem aos marxistas que negam a atualidade do imperialismo. O pesquisador em questão é igualmente severo em relação aos autores que, sem questionar a importância do imperialismo no mundo contemporâneo, procuram refutar a superexploração imperialista apontando para a maior produtividade dos trabalhadores nos países imperialistas. Destacando as diferenças na qualificação da força de trabalho e, principalmente, nas tecnologias de produção do Norte e do Sul global, esses autores em geral defendem que o nível de exploração do proletariado é diretamente proporcional ao grau de desenvolvimento das forças produtivas – ou seja, os proletários do centro são mais explorados que os proletários da periferia do capitalismo.

Para Smith tal conclusão é equivocada e se deve a uma confusão entre as concepções burguesas e a concepção marxista de produtividade, pois “uma composição de capital mais alta aumenta a produtividade do trabalho dos valores de uso, mas não faz nenhuma diferença na geração de valor de troca” (SMITH, 2020, p. 47). Diferentemente do que ocorre no terreno das aparências, “os lucros extras dos capitalistas mais produtivos não derivam de seus próprios trabalhadores mais produtivos, mas do trabalho excedente extraído dos trabalhadores empregados por capitais tecnologicamente deficientes […]” (SMITH, 2016, p. 241, tradução: J. Pompeu).

Ainda que apresentado de forma muito sumária, o debate acima confirma que, embora não se deva subestimar a importância das contribuições de outras tradições intelectuais, fica patente a impossibilidade de analisar criticamente os fenômenos em questão sem recorrer aos fundamentos teóricos do marxismo. Não há conhecimento sem autonomia intelectual em relação aos dogmas liberais que regem a sociedade burguesa assim como não há conhecimento sem resistência ao processo de fragmentação do saber – tão caro ao modus operandi predominante nos meios acadêmicos. Por outro lado, quando distorcido sob perspectivas dogmáticas ou neopositivistas, o próprio marxismo pode ser convertido em um verdadeiro entrave na busca pelo movimento do real. Assim, sem nos distanciarmos do método de Marx, mas longe de nos conformarmos com verdades prontas e teorias acabadas, temos o desafio de aprofundar os estudos sobre as mudanças e as permanências no modo de ser do capitalismo/imperialismo tardio.  

Referências

FERNANDES, Luís E. Notas acerca do debate internacional sobre o Imperialismo Tardio. O Comuneiro, Revista Eletrônica disponível em www.ocomuneiro.com, n. 32, março. 2021.

HARVEY, D. Condição Pós-Moderna. 12ª ed. São Paulo: Loyola, 2003.

HARVEY, D. O Novo Imperialismo. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2005.

HARVEY, D. A Produção Capitalista do Espaço. 2ª ed. São Paulo: Annablume, 2006.

HARVEY, D. Espaços de Esperança. 3ª ed. São Paulo: Loyola, 2009.

HARVEY, D. O Enigma do Capital. São Paulo: Boitempo, 2011a.

HARVEY, D. O neoliberalismo: história e implicações. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2011b.

HARVEY, D. Os Limites do Capital. São Paulo: Boitempo, 2013.

HARVEY, D. 17 Contradições e o fim do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2016.

HARVEY, D. A Commentary on a Theory of Imperialism. IN: PATNAIK, Utsa and PATNAIK, Prabhat. A Theory of Imperialism. New York: Columbia University Press, 2017.

HARVEY, D. A Loucura da Razão Econômica: Marx e o capital no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2018a.  

HARVEY, D. Realities on the Ground: David Harvey replies to John Smith. ROAPE, disponível em https://roape.net/2018/02/05/realities-ground-david-harvey-replies-john-smith/, Fevereiro. 2018.

OSÓRIO, Luiz F. Breves Anotações sobre Imperialismo, Estado e Relações Internacionais. IN: BUGIATO, Caio (Org.). Marxismo e Relações Internacionais. Goiânia: Phylos Academy, 2021.   

SMITH, John. Imperialism in the Twenty-First Century: Globalization, Super-Explotation and Capitalism’s Final Crisis. New York: Monthly Review Press, 2016.

SMITH, John. A critique of David Harvey’s analysis of imperialism. MR Online, disponível em www.mronline.org/2017/08/26/a-critique-of-david-harveys-analysis-of-imperialism, 26 de Agosto. 2017.

SMITH, John. Exploração e superexploração na teoria do imperialismo. IN: LOPEZ, Emiliano. As veias do sul continuam abertas: debates sobre o imperialismo do nosso tempo. São Paulo: Expressão Popular, 2020.


[1] A polêmica veio à tona em uma entrevista publicada na edição de março de 2017 da Monthly Review. Na ocasião, Michael Yates questionou Richard Seymour sobre o risco de a esquerda anglo-saxã fazer coro com o imperialismo “quando até mesmo alguém como David Harvey afirma que a fortuna das nações ricas está sendo drenada pelos países do Sul global”. Ver Seymour e Yates (2017).