LITERATURA E QUESTÃO NACIONAL EM JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI

imagemPor Bernardo Soares Pereira

Mestre em História pela UFF.

Dirigente do PCB e UJC.

O presente trabalho tem por objetivo analisar a produção intelectual de José Carlos Mariátegui à luz de seus textos destinados a analisar a literatura peruana. A

produção desse caráter ocupa uma parte considerável dos escritos de Mariátegui, sendo um tema que o acompanharia por toda a sua vida e constituiria 1/3 das páginas de Os sete ensaios de interpretação da realidade peruana. Pretendamos mostrar nesse trabalho não somente o alcance e a profundidade de sua crítica literária, mas como ela estava envolvida com os debates políticas vivenciados por esse autor naquele período e estreitamente vinculada a seu projeto de nação.

A José Carlos Mariátegui, autor que nos últimos anos começou a ganhar maior notoriedade em nosso país, já é de comum caracterização entre seus estudiosos a alcunha criada por Melis de “primeiro marxista latino-americano”. Em que pesem as divergências que possam existir entre seus estudiosos acerca da caracterização de seu marxismo, há um consenso em reconhecer seu período de vivência na Europa (1919 – 1923) como de fundamental importância para seu amadurecimento intelectual. Ainda que nessas linhas não pretendamos rechaçar tal tese, optaremos em jogar luz em outro aspecto de sua formação intelectual, relacionando-a com as discussões vividas pelo autor em seu próprio país.

Se, de fato, Mariátegui chega a conclusões originais, os questionamentos dos quais partia já haviam sido semeados por uma geração precedente. Nesse sentido, é sugestiva uma passagem de sua magnum opus, onde, ao comentar a literatura indianista 1 Trabalho em desenvolvimento com o auxílio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro daquele momento e explicar o porquê de ela ainda não haver produzido sua obra-prima, Mariátegui afirmaria que:

Obra-prima não floresce a não ser em um terreno já muito adubado por uma multidão anônima e obscura de obras medíocres. O artista genial não é geralmente um princípio, e sim uma conclusão. Aparece, normalmente, como o resultado de uma vasta experiência. (MARIÁTEGUI: 2010, 312)

Nesse sentido, iremos nos deter em um aspecto mais particular de sua vasta obra: seus trabalhos de análise literária. O trabalho de crítico literário foi uma atividade que acompanhou Mariátegui por toda a sua vida, sendo antes mesmo de sua viagem à Europa já conhecido nos círculos literários de Lima. A afeição pela literatura, que o acompanha desde a mais tenra idade, nota-se no fato de o ensaio destinado ao estudo da literatura peruana ser o maior entre todos que compõem os Sete Ensaios de interpretação da realidade peruana.

Temos como objetivo, portanto, analisar tanto as críticas literárias feitas por Mariátegui, mas, sobretudo, relacioná-las ao debate político travado pelo autor naquele momento. Acreditamos que, a partir desses textos, ainda que sem perder de vista a totalidade de sua obra, podemos compreender suas proposições políticas. Pois, como diria o próprio:

Mas isso não quer dizer que considero o fenômeno literário ou artístico de pontos de vidas extraestéticos, mas sim que minha concepção estética é unânime, na intimidade da minha consciência, com minhas concepções morais, políticas e religiosas e que, sem deixar de ser concepção estritamente estética, não pode operar independente ou diversamente. (MARIÁTEGUI; 2010, p. 223)

Nessa seção de sua obra-mestra dedicada à literatura, muito mais do que a análise literária das tendências peruanas, o que sobressai é um balanço sobre seus momentos políticos mais marcantes e seus expoentes intelectuais. O próprio título do ensaio, El processo de la literatura, trazia a palavra processo não no sentido de ressaltar a formação da literatura peruana, mas em seu sentido jurídico: de um ajuizamento.

Não seria por acaso que, dentre os autores analisados por Mariátegui, aquele que tomaria mais tempo em criticá-lo seria Riva-Agüero, que era considerado por aquele como o maior representante de uma tendência literária que ficaria conhecida no Peru como futurista. Mariátegui, ao analisar o futurismo peruano e inseri-lo em seu contexto social, caracterizava-o como a milícia intelectual do civilismo, elemento fundamental para que, em um momento de descontentamento social após a derrota de uma guerra, pudesse consolidar sua dominação através do domínio intelectual.

Antes de Riva-Agüero escrever La Historia en el Peru (1910), sua obra de caráter mais claramente histórico, já havia escrito uma obra intitulada Caráter de la Literatura del Perú independiente, e era nesse campo da discussão literária que Mariátegui centrava suas críticas ao autor. Nesse debate, Mariátegui encara o futurismo encarnado por Riva-Agüero, ao contrário do que o nome sugere, como uma reação ao romantismo. Enquanto este último condenava radicalmente o presente em nome do passado ou do futuro, o futurismo de Riva-Agüero defendia o presente, ainda que para isso evocasse o passado para justificá-lo. Sendo mais incisivo, Mariátegui afirma que “caracterizam-se, espiritual e ideologicamente, por um conservadorismo positivista, por um tradicionalismo oportunista”. (MARIÁTEGUI: 2010, p, 293).

Ao voltar-se para o passado, Riva-Agüero encontrava no vice-reinado aquilo de que precisava para construir sua ideia de nação. Esta seria, dessa forma, uma das principais marcas do futurismo e um dos pontos de aproximação desses autores com a Espanha. A estrutura social colonial era perfeitamente compatível com o conservadorismo de Riva-Agüero. Mariátegui, ao criticar Riva-Agüero, dizia que sua obra não era unicamente uma peça literária, mas, sobretudo, uma reivindicação política, uma defesa de certo posicionamento de classe, ainda que ele a negasse. Riva-Agüero pertencia a um momento de transição política e econômica no Peru, em que o país, há poucos anos independente, via ocorrer entre a elite aquilo que Mariátegui em outra obra chamaria de metamorfose ridícula da antiga aristocracia latifundiária em burguesia liberal, sendo Riva-Agüero o responsável por realizar esse trânsito no campo literário.

À não confessa parcialidade civilista de Riva-Agüero, Mariátegui contrapunha sua explícita parcialidade socialista, não dissociando sua concepção estética de suas crenças políticas, morais e religiosas. As duras críticas de Mariátegui a Riva-Agüero vinham tanto deste caracterizar-se como a maior representação da literatura oficial peruana no momento, quanto pelo fato de sintetizar justamente o que Mariátegui enxergava como o maior problema da literatura peruana até então: sua falta de raízes. Ainda que tanto os futuristas quanto as outras tendências literárias no país buscassem refúgio ou inspiração no passado, todas elas falhavam por não serem capazes de encontrar as verdadeiras raízes. A verdadeira seiva peruana da qual a literatura deveria nutrir-se não era a colônia ou a conquista, mas sim a cultura indígena. Nesse sentido, a postura de Riva-Agüero não poderia ser mais antagônica, como ele mesmo demonstrava:

O sistema que, para americanizar a literatura, remonta até os tempos anteriores à conquista, e trata de fazer viver poeticamente as civilizações quéchua e asteca, as ideias e os sentimentos dos aborígenes, me parece o mais estreito e infecundo. Não deve ser chamado de americanismo e sim de exotismo. (RIVAAGUERO apud MARIÁTEGUI op. cit. 232)

Mariátegui não estava somente a par de toda a produção literária peruana, seu período de vivência na Itália também lhe possibilitou ter acesso ao que de mais avançado havia em termos de crítica literária. Ao analisar a literatura de seu país, Mariátegui tomava os devidos cuidados de não repetir uma tipificação existente nos estudos literários de separá-la entre classicismo, romantismo e modernismo, ou entre antigo, medieval e moderno. Nesse mesmo sentido, também criticava uma vertente marxista que insistia em dividir a literatura entre feudal, burguesa e proletária, assinalando o fato de tal divisão não se adequar à realidade peruana, mostrando, assim, que também não estava disposto a incorporar fórmulas reducionistas existentes na tradição marxista em seus estudos.

Com base em críticos como De Santics[1] , que analisava a literatura em sua articulação com o período da unificação nacional italiana, influência essa que também consta nas análises literárias de Gramsci, Mariátegui distinguiu a literatura em três períodos: colonial, cosmopolita e nacional. O caráter colonial da literatura peruana não era marcado somente pela dominação imposta pela Espanha e na relação de dependência daí criada, pois, restringindo-se somente a esses aspectos, era de supor que ela cessaria ao chegar à Independência formal.

Para Mariátegui, tal caráter estaria arraigado na visão de mundo da intelectualidade peruana. O sentimento aristocrático, a nostalgia do período colonial e o traço claramente conservador marcariam esse período da literatura peruana, que ainda se estenderia até o período da vida de Mariátegui.

Sendo assim, ainda que escrita na Colônia, a literatura daquela época não era peruana, mas sim espanhola, uma vez que conservava os principais traços dessa literatura. A debilidade da literatura peruana não vinha da incompetência de seus expoentes, mas sim do substrato social da qual emergia. Ao analisar o surgimento das literaturas nacionais na Europa, Mariátegui a relacionava com a formação dos Estados modernos. Sendo o Peru, na sua perspectiva, um exemplo clássico de nação inconclusa, uma vez que em seu processo de formação não incorporou os elementos verdadeiramente nacionais, os índios, sua literatura não poderia fugir a essa contingência histórica à qual estava submetida. De maneira rotunda, afirma:

A literatura de um povo se alimenta e se apoia em seu substrato econômico e político. Em um país dominado pelos descendentes dos encomenderos e ouvidores do vice-reinado, nada era mais natural, por conseguinte, que a serenata sob seus balcões. A autoridade da casta feudal repousava em parte sobre o prestígio do vice-reinado. Os literatos medíocres de uma república que se sentia herdeira da conquista não podiam fazer outra coisa senão trabalhar pelo lustre e pelo brilho dos brasões vice-reais. Apenas os temperamentos superiores – percursores sempre, em todos os povos e todos os climas, das coisas do futuro – eram capazes de se subtrair dessa fatalidade histórica, demasiado imperiosa para os clientes da classe latifundiária. (Idem, Ibidem, ´. 231)

Assim, Mariátegui, ao tratar da possibilidade da independência, movimento que caracterizou como uma revolução, trazer uma literatura de outro tipo, afirma que ela não poderia expressar uma mentalidade diferente caso não estivesse calcada no surgimento de uma classe dirigente que rompesse com os laços coloniais.

Se a revolução da independência tivesse sido no Peru obra de uma burguesia mais ou menos sólida, a literatura republicana teria outra tonalidade. A nova classe dominante teria se expressado, ao mesmo tempo, na obra de seus estadistas e no verbo, no estilo e na atitude de seus poetas, romancistas e de seus críticos. Mas o advento da república no Peru não representou o surgimento de uma nova classe dirigente. (Idem, Ibidem, p. 237)

Afirmando isso, Mariátegui aproxima-se muito de Martí quando este afirmava que só seria imortal nas Américas o escritor que refletisse acerca das condições múltiplas e confusas da época, assim como não existiriam letras, que são a expressão, enquanto não houvesse essência para nelas se exprimir, nem literatura hispanoamericana enquanto não existisse Hispano-América. (MARTÍ: 1991, 65). Nesse sentido, para Mariátegui também não poderia haver literatura peruana.

De certa forma, Mariátegui também estava muito perto de Gramsci quando esse dizia que na Itália, ao contrário da França, por exemplo, ainda não havia se concretizado a unidade entre nação e povo, entre o nacional e o popular[2] . Tal circunstância, na literatura, estava expressa no fato de o público italiano não ler a própria literatura italiana, ainda que fosse leitor da literatura francesa. O questionamento do porquê de o público italiano não ler a literatura produzida em seu próprio país permeia grande parte da reflexão de Gramsci acerca desse tema, e, pela resposta encontrada ao problema, pode-se dizer que é um ponto de reflexão comum a grande parte dos Cadernos. Para Gramsci, tal fato se devia, sobretudo, a uma intelectualidade afastada do povo, alheia aos sentimentos da massa, que gerava uma literatura que, pelo fato de não ser popular, também não alcançava ser nacional. Essa questão estaria, do mesmo modo, diretamente associada à maneira como foi operado o processo de formação do Estado italiano, pelo alto, através da revolução passiva, com o afastamento das massas camponesas.

O que significa o fato de que o povo italiano lê preferencialmente os escritores estrangeiro? Significa que ele sofre a hegemonia intelectual e moral dos intelectuais estrangeiros, que se sente mais ligado aos intelectuais estrangeiros do que aos ‘patrícios’, isto é, que não existe no país um bloco nacional intelectual e moral, nem hierárquico nem (muito menos) igualitário. Os intelectuais não saem do povo, ainda que acidentalmente algum deles seja de origem popular; não se sentem ligados ao povo (à parte a retórica), não o conhecem e não sentem suas necessidades, suas aspirações e seus sentimentos difusos. (GRAMSCI: 2002, 42)

Há um bom número de trabalhos que buscam analisar paralelos entre Gramsci e Mariátegui, alguns inclusive suscitando a possibilidade de terem se conhecido pessoalmente. Ainda que essa última questão não tenha sido até hoje documentada, Mariátegui fez algumas referências a Gramsci ao longo de seus textos. Em Defesa do Marxismo, destaca Gramsci e Terracini como dois dirigentes políticos perseguidos pelo fascismo italiano, contudo, as maiores referências a Gramsci aparecem de maneira indireta, quase nunca ao próprio, mas ao grupo L’Ordini Nuovo, com quem Mariátegui simpatizou e cuja principal liderança era Gramsci. Ainda que nesse trabalho evitemos tal comparação direta entre os autores, é impossível não deixarmos de destacar algumas influências, temas de pesquisa e conclusões de análise em comum entre ambos.

Esse procedimento adotado por Mariátegui, que geralmente passa despercebido por grande parte de seus leitores, esperaria, ainda, algumas décadas até ser desenvolvido de forma sistemática pela crítica literária latino-americana, que à época do autor ainda se encontrava em estágio germinal. Partindo desse pressuposto inaugurado por Mariátegui de não se conter com uma adequação da teoria literária a critérios forjados para as literaturas metropolitanas, Retamar iria além, ao ponto de defender a inexistência de uma literatura universal, logo, uma teoria geral da literatura. Seguindo a divisão feita por Mariátegui, Retamar afirma que a fase cosmopolita se iniciaria com o modernismo, tendo como principal expoente a figura de Darío e Rodó, ambos já mencionados, coincidindo, outrossim, com o momento em que a América Latina adentrava o mundo moderno.

Voltando a Mariátegui, o autor afirma claramente que, para forjar uma literatura genuinamente nacional, o primeiro passo seria aquele que expressasse os sentimentos e os anseios da grande massa da população peruana, segmento social que à época correspondia a 4/5 dos peruanos: os indígenas. É com essa perspectiva que, dos onze autores abordados individualmente no capítulo destinado ao estudo da literatura em Sete Ensaios, há dois que demonstram uma identificação visível: González Prada e César Vallejo[3] .

Em relação a González Prada, Mariátegui o considerava uma das figuras mais destacadas do Peru independente, como o percursor da transição do período colonial para o período cosmopolita. Nos Sete Ensaios… Mariátegui inicia a seção destinada a discutir a obra de González Prada rebatendo uma acusação levantada por Ventura García Calderón, e que ganhava alguma aceitação pela intelectualidade peruana no momento, de que Prada seria o menos peruano entre todos os literatos do país. Mariátegui alertava para o fato de que Prada escrevia no momento em que a “peruanicidade” ainda estava em formação. Contudo, o simples fato de desafinar o coro vindo da San Marcos e afastar-se da tradição colonial da literatura permitia que sua 4 A afinidade com esses autores nota-se também no projeto editorial de Mariátegui. No levantamento feito por Tauro (1994) conta-se 5 publicações de Vallejo, variando desde poesias a contos e artigos de crítica literária. Já de González Prada aparecem dois artigos: Nuestros Indios e El intelectual y el obrero, sendo que ambos seriam mencionados por Mariátegui em Os sete ensaios…. Sobre Prada ainda contamos 8 artigos dedicados a discutir o seu pensamento publicado por outros autores na revista. literatura anunciasse uma outra genuinamente peruana. Foi em González Prada que a literatura peruana passou a receber influência de diversas outras, interrompendo o ciclo de exclusividade espanhola. Mariátegui cita uma passagem de Páginas Libres, em que Prada expressa essa necessidade de maneira clara:

Abandonemos as andadeiras da infância e busquemos em outras literaturas novos elementos e novos impulsos. Preferimos o espírito livre e democrático do século ao espírito das nações ultramontanas e monárquicas. Voltemos os olhos aos autores castelhanos, estudemos suas obras-mestras, enriqueçamos sua linguagem harmoniosa, mas lembremo-nos constantemente de que a dependência intelectual da Espanha significaria uma definida prolongação da infância para nós. (GONZÁLEZ PRADA apud MARIÁTEGUI: 2010, p. 244).

Para Mariátegui, Prada distinguia-se dos demais autores de sua época, tais como Francisco García Calderón e Riva-Agüero. Enquanto os últimos aderiam fervorosamente ao pensamento conservador, portando-se como verdadeiros ideólogos da elite civilista, Prada afiliava-se a um pensamento revolucionário, exaltando um anseio de justiça. Prada criticava a intelectualidade peruana por seu comportamento excessivamente acadêmico, por se absterem das grandes questões sociais em nome de uma pretensa imparcialidade. Acerca dessa crítica, afirmava:

El librepensador que llamándose a la neutralidad política, ve con indiferencia las iniquidades y los derroches de un gobierno tiránico, nos parece tan censurable como el estadista que, alegando la neutralidad religiosa, presencia con olímpica serenidad el predominio del clero y la difusión de las idea ultramontanas. El librepensamiento no debe renunciar a la política por una razón: los políticos no se olvidan de los librepensadores. Todo político de mala ley presiente un adversario en todo pensador de tendencia irreligiosa, presentimiento muy racional, pues quien hoy se subleva contra las autoridades que presumen bajar del cielo, mañana suele revelarse contra los déspotas que surgen de la Tierra. (GONZÁLEZ PRADA: 1964, p. 44)

Ainda que Prada incitasse correntemente à ação, Mariátegui afirmava que ele não era um homem de ação, mas sim de verbo, pois lhe faltavam características fundamentais de um realizador e organizador. Para Mariátegui, se González Prada não tivesse nascido em um país onde urgia a reorganização e moralização política e social, jamais teria impulsionado um partido. Era nesse sentido que Mariátegui alegava que os estudos de Prada ainda careciam de maior profundidade nas análises econômicas e políticas, cabendo às gerações seguintes completar essa tarefa. Portanto, não seria mera coincidência o próprio Mariátegui começar os Sete Ensaios com uma análise econômica do Peru. Estava ele, de certa forma, continuando a obra de González Prada. Ainda nessa mesma citação extraída de um texto de 1898 podemos notar outra característica central do pensamento de González Prada: o anticlericalismo. Em um dos países de população católica mais fervorosa do mundo, essa seria umas das principais críticas do autor à intelectualidade de sua época.

En resumen, casi todos los librepensadores nacionales vivieron pregonando las excelencias de la Razón y murieron acogiéndose a las supersticiones del Catolicismo; hubo en ellos dos hombres: el de las frases y el de los actos. Los mudos o linternas sordas no causaron ni bien no mal; pero los bulliciosos o histriones de pluma y de palabra, desacreditaron la idea, produjeron enorme daño, haciendo que los hombres de buena fe se retrajeran y callaran por miedo de figuras en tan ridícula y abominable compañía. (Idem, Ibidem, p.42)

Dessa forma, encontramos um dos pontos dos quais Mariátegui discordaria de González Prada. A relação entre religião e política em Mariátegui é um dos temas mais instigantes de toda a sua obra, tendo sido tratado por diversos autores. Ao referir-se particularmente a Prada, Mariátegui afirmaria que aquele se equivocava em suas antirreligiosidade, defendendo assim o caráter intrínseco entre a religião e o socialismo. Portando, seria nesse sentido que Mariátegui destacaria a necessidade de buscar o verdadeiro valor de González Prada não em seu anticlericalismo, mas em sua “crença de justiça”. Ao fazer alusão a esse senso de justiça, o autor seguramente pensava, sobretudo, na relação estabelecida entre Prada e os indígenas. Se condenava RivaAgüero por repudiar as tentativas de encontrar no passado incaico as raízes peruanas, valorizava Prada por justamente fazer o inverso. Em um momento em que predominavam as análises nas quais o índio era julgado como raça inferior, Prada divergia diretamente dessas tendências, evidenciando, inclusive, conhecimento da então sociologia em voga, dialogando diretamente com Le Bon e defendendo a ineficácia da divisão da humanidade em raças.

Enquanto a intelectualidade peruana defendia a inferioridade racial do índio, González Prada sustentava que, ao ser educado, o índio poderia chegar ao mesmo nível cultural e moral que o descendente espanhol. Ainda assim, Prada não era vítima da mesma ingenuidade, apontada por Mariátegui, presente em diversos autores peruanos, que fazia com que se encarasse a marginalidade indígena como algo meramente pedagógico. Nesse ponto, podemos perceber claramente a influência de Prada em Mariátegui, ao afirmar que “a questão do índio, mais do que pedagógica, é econômica, é social”, frase que seria retomada e aprofundada por Mariátegui décadas mais tarde. (PRADA: 1964, p.212). Dessa forma, pode-se perceber que tanto as críticas feitas por González Prada ao forte arraigo da intelectualidade peruana ao período colonial, quanto o destaque dado ao índio no processo de formação histórico-cultural do Peru coincidiam com os dois elementos fundamentais apontados por Mariátegui para a formação de uma literatura nacional.

Há ainda outro elemento em González Prada que mereceria a atenção de Mariátegui e lhe garantiria respeito entre os embrionários círculos operários de Lima: a união entre intelectuais e operários. Em um pronunciamento à Federación de Obreros Panaderos, em 1905, González Prada insistia em não separar o trabalho manual do trabalho intelectual, conclamando a união entre ambos. Não seria por acaso, então, que o movimento estudantil de 1918 declarasse sua referência em González Prada e batizasse a Universidade Popular com seu nome, cujo corpo docente contaria com intelectuais como Mariátegui, que por sua vez não somente faria questão de divulgar esse pronunciamento anos depois através da revista Labor, da qual ele era editor, como também faria destaque a González Prada como um dos principais antecedentes da ação classista em seu país, como podemos notar na contribuição escrita por Mariátegui para o Congresso da Confederação Sindical Latino-americana no Uruguai em 1929.

Esse clima de ebulição política marcaria as primeiras décadas do século XX peruano, momento em que apareceriam as primeiras greves operárias nas redondezas de Lima, assim como fortaleciam dos levantamentos camponeses e surgia uma camada média urbana que expressaria seu descontentamento em seu alijamento político. Sobre esses últimos, seria justamente a juventude que encabeçaria suas principais manifestações, somando-se às manifestações estudantis continentais que tiveram seu momento de maior expressão em 1918, em Córdoba, como mostramos na citação do Manifesto Limiar que abriu esse capítulo. Analisando as vanguardas estético-literárias na América Latina entre finais do século XIX e início do XX, Beigel afirma que há uma modernização literária tanto na poesia quanto na escrita que foi fruto do momento político da época. Trabalhando com muitos dos autores supracitados, como Darío, Martí e González Prada, a autora afirma que, ao contrário da tese defendida por alguns de uma suposta fuga esteticista, esses autores recorriam às letras uma vez que viam, diante de si, fechados os canais tradicionais que poderiam utilizar para expressar suas inquietações, seja para realizar uma crítica radical de caráter anti-imperialista, seja para rechaçar o estilo de vida norte-americano com base em um espiritualismo abstrato, podendo chegar a posições retrógradas. (BEIGEL: 2003, p.36).

No Peru em particular, o vanguardismo literário, estritamente associado ao momento político de inícios do século XX, buscou incorporar as reivindicações da massa indígena. Foi essa aproximação com a problemática das comunidades indígenascamponesas que permitiu o surgimento das primeiras expressões da literatura nacional no país. É nesse sentido que Mariátegui destaca a figura de César Vallejo que, para ele, seria a “alvorada da nova poesia no Peru”. A admiração pela poesia de Vallejo vinha da incorporação do sentimento indígena. Ainda assim, Mariátegui fazia questão de aclarar que essa incorporação não vinha da recorrência ao folclore ou ao exotismo, nem da mera utilização de palavras em quéchua ou do relato da condição indígena. O sentimento indígena em Vallejo estaria marcado, sobretudo, por sua atitude nostálgica. Mariátegui, valendo-se dos estudos de Valcárcel, afirmava que uma das principais marcas do comportamento indígena era seu sentimento nostálgico. Não uma nostalgia no sentido retrospectivo de um saudosismo colonial, alertava, mas a nostalgia como um grito de protesto dos indígenas, como a expressão de seu sofrimento ao longo dos anos na história peruana. Nesse sentido, nas obras de Mariátegui abundam citações de trechos de poemas de Vallejo, todos eles retirados de dois dos seus principais livros, Los Heraldos Negros e Trilce. Ademais de expressar em sua arte o sentimento indígena, Vallejo inovava também na forma, sobretudo em Trilce. Mariátegui considerava esse aspecto como a inequívoca separação entre forma e conteúdo, uma vez que o sentimento indígena não poderia expressar-se nas tradicionais formas existentes até então existente na literatura peruana.

A nostalgia de Vallejo também se mesclava com o pessimismo indígena. No entanto, destacava-se como um pessimismo diferente das tradições literárias anteriores. Alguns anos antes de escrever sobre Vallejo, Mariátegui já havia alertado para duas concepções distintas de pessimismo. O que Mariátegui parecia encontrar em Vallejo era a mesma atitude que afirmava ser característica dos revolucionários, o pessimismo em sua condenação do presente, ainda que a ele fosse somado o otimismo em relação ao futuro. “Pessimismo da realidade, otimismo do ideal”, fórmula que condensava Mariátegui em 1925, também muito próxima da que seria utilizada por Gramsci. (MARIÁTEGUI: 1959, p. 65). O pessimismo de Vallejo, para Mariátegui, apresentavase cheio de ternura e caridade, diferentemente do pessimismo exclusivamente negativo, que se limitava a constatar a miséria das coisas com um gesto de impotência. Essa postura condizia com a adesão socialista de Vallejo. Tal avaliação de Mariátegui acerca das características em Vallejo acompanhava a análise política que fazia do momento. Dezoito dias antes de morrer, Mariátegui redigiu um texto em que afirmava existir uma inquietude própria de sua época, que seria uma expressão intelectual e sentimental da crise do capitalismo. Ainda assim, essa inquietude poderia apresentar-se em sua forma reacionária, na tendência de se refugiar no passado.

Essa última tendência era expressa não somente na literatura. Em 1924, Edwin Elmore convocaria um congresso de escritores hispano-americanos. Entretanto, Mariátegui, que era favorável à unidade do continente, demostrava um profundo receio em relação a um ibero-americanismo oficial que reivindicava a época colonial como principal traço na formação social dos países latino-americanos, assinalando que era premente o questionamento da possibilidade ou não da realização de um congresso daquela envergadura, pois era fundamental que se soubesse primeiramente se já existia um pensamento latino-americano. (MARIÁTEGUI: 1980, p. 19).

Nesse sentido, é com essa pergunta que Mariátegui voltava ao tema poucos meses depois, em um de seus textos mais interessantes. Em novembro de 1924, o argentino Alfredo Palacio fez um discurso voltado à juventude universitária iberoamericana. Palacio, nesse discurso, conclamava à juventude a alterar radicalmente toda a forma de produção de conhecimento que até então vinha sendo processada. Mais do que se contrapor ao utilitarismo unicamente do Caliban norte-americano, Palacio estendia a crítica aos demais países e apregoava o colapso da civilização ocidental, apontando o caminho dos povos ibero-americanos à margem dela. Enquanto seus predecessores estavam marcados pela derrota da guerra Hispano-Americana. Para esse autor, a possibilidade de a América Latina seguir seu caminho autônomo estaria justamente na renovação do ensino universitário, incorporando aos estudos acadêmicos as modernas ideologias e os problemas sociais, sendo por isso necessária uma confederação de intelectuais para a elaboração desse projeto. O facilitador do processo, segundo o autor, seria a síntese de raças existentes no continente, que havia brindado aos seus povos com uma nova alma superior. Percebe-se, portanto, como esse autor ainda estava fortemente ligado a uma noção elitista da necessidade da formação de uma aristocracia intelectual que serviria de guia para a sociedade. Mariátegui, por sua vez, discordava dessa ideia, mas nesse texto em questão, sua crítica central girava em torno de dois aspectos: a questão racial e a tese de colapso da civilização ocidental.

Sobre o tema racial segue o argumento já demonstrado anteriormente. Mariátegui não duvidava de que na Argentina de Palacio pudesse de fato haver essa síntese de raças, mas, em seu país, tinha a certeza de que essa possibilidade não figurava, dada a situação extrassocial na qual se mantinha a massa indígena. No que concerne ao outro aspecto, a ruína da civilização do Ocidente, Mariátegui, que vivenciou a conjuntura europeia pós-Guerra, afirmaria:

La civilización occidental se encuentra en crisis; pero ningún indicio existe aún de que resulte próxima a caer en definitivo colapso. Europa no está, como absurdamente se dice, agotada y paralítica. Malgrado la guerra y la post-guerra conserva su poder de creación. Nuestra América continúa importando de Europa ideas, libros, máquinas, modas. Lo que acaba, lo que declina, es el ciclo de la civilización capitalista. La nueva forma social, el nuevo orden político, se están plasmando en el seno de Europa. (…) Nadie descarta, nadie excluye la posibilidad que Europa renueve y se transforme una vez más. En el panorama histórico que nuestra mirada domina, Europa se presenta como el continente de las máximas palingenesias. Los mayores artistas, los mayores pensadores contemporáneos, no son todavía europeos? Europa se nutre de la savia universal. El pensamiento europeo se sumerge en los más lejanos misterios, en las más viejas civilizaciones. Pero esto mismo demuestra su posibilidad de convalecer y renacer. (MARIATEGUI: 1980, p.24)

Ainda assim, Mariátegui em hipótese alguma era refratário da unidade da América indo-espanhola. Nesse sentido, ainda em 1924 escreveria um artigo ressaltando a identidade da formação histórica e cultural do continente, embora no então momento o nível de desenvolvendo entre os países se encontrasse em diferentes graus, o que para ele refletiria a dificuldade de alguns países, como o Peru, em não conseguirem romper os resíduos da feudalidade. Essa inaptidão de algumas nações concretizarem-se enquanto tal levaria Mariátegui a dizer

Pero lo que separa y aísla a los países hispano-americanos, no es esta diversidad de horario político. Es la imposibilidad de que entre naciones incompletamente formadas, entre naciones apenas bosquejadas en su mayoría, se concerte y articule un sistema o un conglomerado internacional. En la historia, la comuna precede a la nación. La nación precede a toda sociedad de naciones. (Idem, p. 14)

Essa postura extremamente crítica ao legado colonial, que deixara como principal traço na sociedade peruana a feudalidade impediria Mariátegui de abraçar qualquer tendência, seja política ou literária, que idealizasse o passado colonial. Essa seria sua crítica ao ibero-americanismo oficial, que, embora encontrasse grande respaldo na intelectualidade, desdenhava das massas.

Nessa mesma perspectiva, o autor opunha-se ao pan-americanismo, que, apesar de naquele momento apresentar-se como um ideário de unidade entre os povos americanos, não passava, na visão de Mariátegui, de propaganda e defesa ideológica do imperialismo norte-americano. Para Mariátegui, portanto, a rasteira oposição entre o ibero-americanismo e o pan-americanismo no conteúdo em que eram apresentados no momento era extremamente infértil. O autor se opunha à maneira cega com que alguns intelectuais ibero-americanos faziam críticas aos Estados Unidos, fazendo, assim, questão de aclarar a distinção entre a crítica ao Império e ao povo e sua cultura. Essa reticência de Mariátegui de abraçar qualquer crítica ao estrangeiro em nome do nacional vinha das implicações políticas que tal problema acarretava naquele momento. A mediação que conseguia fazer entre esses dois polos seria uma marca fundamental em sua análise da realidade peruana e na sua adesão ao marxismo.

Cinco meses antes de publicar tal artigo sobre o ibero-americanismo e panamericanismo, o autor escreveria para a mesma revista um texto de título Lo nacional y lo exótico, em que discutiria justamente uma tendência na intelectualidade peruana de alertar contra a assimilação de ideias estrangeiras, que classificavam como exóticas. Mariátegui associava essa tendência a um conservadorismo político, uma vez, que por trás dela, havia um rechaço implícito ao marxismo e à influência que a revolução russa já começava a fazer nos trabalhadores e parte da intelectualidade peruana. Assim, Mariátegui criticava essa mesma intelectualidade por desconhecer o elemento nacional peruano. A peruanidade que era invocada por eles não passaria de um mito, uma ficção. Como poderia o Peru, perguntava Mariátegui, país que ainda não tinha cumprido seu processo de formação nacional, isolar-se das ideias e emoções europeias? (MARIATEGUI: 2008, p. 50).

Nesse sentido, destacamos a tensão dialética existente no pensamento de Mariátegui acerca da mediação entre o particular e o geral. Ao mesmo tempo em que só pode ser compreendido levando em consideração a cultura latino-americana na qual estava submerso, o autor nunca chegou ao ponto de rechaçar a contribuição filosófica, política e cultural ocidentais. É com base nessa discussão travada por Mariátegui no que dizia respeito à América Latina que acreditamos ser o caminho mais fecundo para analisar um dos pontos mais debatidos, mas nem por isso menos passível de discussão, que é a forma através da qual concebia o marxismo e o modo com que o utilizava em suas análises acerca da realidade peruana e latino-americana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BEIGEL, Fernanda. El itinerario y la brújula: el vanguardismo estético político de José Carlos Mariátegui. Buenos Aires: Biblos, 2003.

FUNES, Patrícia. Salvar la nación. Intelectuales, cultura, política en los años veinte latinoamericanos. Buenos Aires: Prometeo: 2006.

MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade latinoamericana. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

______. Ideologia y política. Lima: Amauta, 1974. ______. Temas de nuestra América. Lima: Amauta, 1980.

MARTÍ, José. Nossa América. São Paulo: Hucitec, 1991.

PRADA, Manuel González. Horas de lucha. Lima: Fondo de cultura popular, 1964.

[1] Em um breve artigo sobre a contribuição de Mariátegui no debate sobre a literatura, Melis destaca a importância do crítico italiano De Sanctis em suas análises, que, segundo Melis, forneceria para Mariátegui as bases para a formulação de uma crítica literária permeada pela discussão política da formação nacional. Contudo, lembra Melis, Mariátegui não se limitou a apenas adotar a proposta metodológica apresentada pelo italiano, indo além na medida em que a própria sociedade peruana o impunha essa tarefa, como podemos perceber em seus estudos literários sobre o período colonial, o que não havia precedentes na história italiana. Em outra ocasião Melis também apontaria outros pontos de coincidência entre De Sanctis e Mariátegui, como a ideia de que a lírica ocupa um lugar prioritário no desenvolvimento da literatura, ainda que Mariátegui aqui também faz uma leitura livre para o caso peruano, onde vê essa “infância” na literatura oral indígena (Melis: 1999).

[2] Há um bom número de trabalhos que buscam analisar paralelos entre Gramsci e Mariátegui, alguns inclusive suscitando a possibilidade de terem se conhecido pessoalmente. Ainda que essa última questão não tenha sido até hoje documentada, Mariátegui fez algumas referências a Gramsci ao longo de seus textos. Em Defesa do Marxismo, destaca Gramsci e Terracini como dois dirigentes políticos perseguidos pelo fascismo italiano, contudo, as maiores referências a Gramsci aparecem de maneira indireta, quase nunca ao próprio, mas ao grupo L’Ordini Nuovo, com quem Mariátegui simpatizou e cuja principal liderança era Gramsci. Ainda que nesse trabalho evitemos tal comparação direta entre os autores, é impossível não deixarmos de destacar algumas influências, temas de pesquisa e conclusões de análise em comum entre ambos.

[3] A afinidade com esses autores nota-se também no projeto editorial de Mariátegui. No levantamento feito por Tauro (1994) conta-se 5 publicações de Vallejo, variando desde poesias a contos e artigos de crítica literária. Já de González Prada aparecem dois artigos: Nuestros Indios e El intelectual y el obrero, sendo que ambos seriam mencionados por Mariátegui em Os sete ensaios…. Sobre Prada ainda contamos 8 artigos dedicados a discutir o seu pensamento publicado por outros autores na revista.