Considerações sobre o Poder Popular

A seguir, apresentamos uma síntese do pensador marxista uruguaio Raúl Zibechi sobre o tema do Poder Popular. Tradução e adaptação de Ivan Barbosa Hermine, integrante do Comitê Central do PCB.

Sobre o Poder Popular, os debates, as discussões, os escritos em torno deste tema têm uma longa história, quer no movimento socialista ou nos movimentos revolucionários do mundo. Diria mesmo que antecede os escritos de Marx, porque na própria revolução francesa houve forma de organização popular. Embora eu não vá considerá-la, seria interessante que levem em consideração como antecedentes aos debates sobre como exercer o poder de uma forma que não seja uma réplica, um decalque, uma cópia, como disse Mariátegui, do poder burguês, com base no que seja o Estado.

O próprio Marx pouco considerou este tema na maior parte de seus escritos. É sabido que Marx abordou, de forma muito intensa, a análise econômica, mas não abordou o tema do Estado, do poder, com a mesma intensidade. No Manifesto Comunista, tendeu a deixar o terreno numa situação dúbia, com pouca definição. Marx falava da classe erigida em classe como tal ou classe para si, ou falava da democracia, mas nunca sobre o poder exercido pela classe trabalhadora, a classe operária.

Foi a partir da “Comuna de Paris”, do que foi a experiência da “Comuna de Paris”, a partir do momento no qual os trabalhadores se erigem no poder, na Comuna, é quando Marx começa a refletir e basicamente o texto dele que reflete sobre isto é a guerra civil na França, uma declaração da Associação Internacional dos Trabalhadores, da AIT. É a partir deste momento que ele elabora a ideia da ditadura do proletariado, basicamente o poder dos trabalhadores, que se fundamenta no que seria a destruição do Estado burguês. Marx diz neste texto: os trabalhadores não podem assumir a máquina do Estado e colocá-la em funcionamento como antes, mas sim destruir a maquinaria do Estado burguês e começar a gerir um poder que, em seu nascimento, vá em direção à extinção do Estado. Essa ideia da extinção do Estado é muito importante, muito recorrente em Marx. É aí que trabalha a ideia da ditadura do proletariado e, sobretudo, de um tipo de poder no qual os cargos eleitos, as pessoas nomeadas para exercer o poder são permanentemente removíveis, não ficam de uma maneira fixa neste lugar. Para Marx, a ideia de burocracia civil ou militar é uma ideia a erradicar no futuro poder dos trabalhadores e, nesse sentido, a “Comuna de Paris” lhe dá uma série de ideias e experiências muito ricas para sua reflexão. Em que sentido? No sentido de que lhe permite pensar o poder como algo não separado das pessoas, como algo controlado pelas pessoas, como algo que pode e seria bom que fosse rotativo, que não houvesse um grupo de pessoas especializadas em exercer o poder, separadas das pessoas, e além disso, que tivessem as remunerações similares às de um operário qualificado, que não tivessem um salário privilegiado. A partir daí, da ideia da ditadura do proletariado, a ideia deste tipo de poder já é desenvolvida a quase meio século depois pelos revolucionários russos, basicamente por Lênin e pelos bolcheviques. È interessante constatar como, até 1905, os bolcheviques não tinham uma proposta acabada de como seria o Poder Popular, o poder operário na revolução russa.

São as massas populares que, em 1905, criam os soviets, voltando a criá-los depois da revolução de fevereiro. Derrubam a monarquia em 1917, instalam novamente os soviets e Lênin, dessa maneira, diz que as massas operárias, camponeses, soldados, ou seja, operários e camponeses em armas criam uma forma que são os soviets, ou seja, são parlamentos de delegados operários, camponeses e soldados. Lênin toma essa forma, essa fórmula, erigindo o mecanismo de poder. Em determinado momento, em junho e julho de 1917, diz: ”todo poder aos soviets”.

Que analogia poderíamos estabelecer entre este momento de 1917 e a “Comuna de Paris”, 40 anos antes?

Não é que os revolucionários já tinham em seus estudos, em seus escritos, uma teoria acabada de como seria o Poder Popular. Não é que os revolucionários elaboraram intelectualmente, teoricamente, uma ideia do Poder Popular. É a experiência viva dos setores populares da classe operária que leva os dirigentes revolucionários, no primeiro caso Marx na AIT, e depois Lênin e os bolcheviques, a teorizar a importância de um poder.

No primeiro caso, a ditadura do proletariado, o poder dos operários na “Comuna de Paris”, dos operários e do povo parisiense, e no segundo caso os soviets.

Hoje, quando precisamos aprofundar as reflexões, são dois momentos muito interessantes, não para copiar, não para imitar, mas sim para se ter um impulso político e teórico na mesma direção.

A experiência das massas, a luta de classes é fundamental. É o elemento central de nossas reflexões como socialistas, como revolucionários. A experiência somente não é tudo, evidentemente, mas sim é necessária tê-la como elemento fundamental.

Numa segunda instância, Marx e Lênin tratam de sistematizar esta experiência, a era comuna e a era dos soviets. Extrair dali os elementos que consideram os mais importantes e, a partir dessa elaboração teórica, devolver aos organismos de poder o que eles consideram que são as bases sobre as quais podem melhorar uma criação, naturalmente uma criação espontânea dos setores populares que tem aspectos notáveis e problemas. A reflexão teórica seria regatar a criação e lhe devolver aqueles elementos que permitam que essa criação seja melhorada e não caia numa questão de inércia, de burocracia ou de deformações.

Este jogo, que não é um jogo, é uma séria política revolucionária: estar com as massas, resgatar sua experiência ou o mais avançado de sua experiência, decantar aqueles elementos mais anticapitalistas ou mais revolucionários, devolver esses elementos de forma que possam aprofundar sua experiência. Precisamos refletir, reviver e, sobretudo, se me permitem exagerar um pouco, reproduzir, imitar.

Na América Latina, dando um salto das experiências europeias para a América latina, temos tido, desde a revolução cubana até hoje, uma enorme quantidade de experiências de luta de classes, de luta de massas, de lutas operárias, camponesas, estudantis e de novos sujeitos que emergem nas últimas décadas, indígenas, mulheres e outras experiências muito ricas. Em alguns casos, essas experiências deram lugar a criações que não foram necessariamente de Poder Popular, mas que estiveram muito próximo de criar órgãos de Poder Popular. Não vou deter muito na Revolução cubana, como todos sabem criou os CDR, mas sim em outras experiências mais recentes, como a equatoriana, que no ano 2000 criaram os Parlamentos populares, provinciais. Duraram poucos meses, mas foram órgãos importantes de Poder Popular ou no caso da Bolívia, quando as revoltas, principalmente a de 2003, criaram, na zona do altiplano, os quartéis indígenas que, de alguma maneira, foram órgãos de Poder Popular.

Uma problemática que temos hoje e que nos faz falta, é aprofundar o que entendemos por Poder Popular. Vou colocar algumas questões e posteriormente as irei responder.

Um movimento social é um Poder Popular?

Minha primeira resposta é não. É um elemento fundamental de organização popular, mas não necessariamente é um órgão ou forma do Poder Popular.

As grandes mobilizações sociais, que temos tido nas últimas décadas na América Latina, são formas de poder Popular?

Eu diria que são instâncias capazes de destituir governos, de neutralizar o modelo neoliberal, mas não necessariamente criaram órgão do Poder Popular.

Na América Latina, foram criados órgãos do Poder Popular na Bolívia, durante o governo de Juán José Torres (Asamblea Popular, 1970). Anteriormente, surgiram as milícias operárias e camponesas na Revolução de 1952. Na Argentina, por algum tempo, a classe operária organizou as “Cordinadoras Fabriles” em Buenos Aires, no ano 1975. Era um poder transitório, um poder da classe operária argentina para fazer frente à burocracia sindical que reprimia os próprios trabalhadores, na gestão José López Rega, criador da “Triple A” (Alianza Anticomunista Argentina). Os sindicatos peronistas argentinos abalaram a repressão da Triple A. No Chile, tivemos a experiência dos “Cordones Industriales” em Santiago, no governo Salvador Allende.

Os Partidos de esquerda não se preocuparam com essas experiências, exceto o MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionaria) do Chile.

Como trabalhar para impulsionar a criação desses órgãos?

1 – O MST no Brasil: cada assentamento é uma forma de pequeno poder, um órgão de Poder Popular. Nesses assentamentos, funcionam poderes distintos dos estatais, com educação e pedagogia diferenciadas das estatais. Seria um dos vários mecanismos de reconstrução da sociedade brasileira, tanto no plano produtivo, organizativo e de poder, caso formassem um processo de luta de classes e de transição a uma nova sociedade. Há várias experiências deste tipo na América Latina (Bolívia, Equador, México, Venezuela).

São movimentos que conquistaram territórios ou espaços urbanos e a população organizada toma as decisões sobre o que deve ser feito.

2 – Na Venezuela, o governo apoia tais experiências, as “Comunas”, as iniciativas do movimento popular, rural ou urbano. Seria uma base possível para um poder. O governo promove a criação de comunas. Essas experiências nem sempre são iguais.

3 – No México, há duas experiências distintas de Poder Popular. A primeira foi a “Comuna de Oaxaca” em 2006. Parte da população controlou a cidade durante seis meses, utilizando mais de mil barricadas. Chegou a ter cadeia de rádio e televisão sob seu controle. Havia uma Assembleia Popular que foi o órgão de poder nesses seis meses.

Diga-se de passagem, que Poder Popular na cidade é diferente do Poder no campo. Nas áreas rurais, a presença do Estado é mais diluída. É possível tomar um território, defendê-lo e organizá-lo de maneira particular. Na cidade, está o núcleo do poder da burguesia, do Estado burguês. Há grandes dificuldades de se estabelecer formas de Poder Popular. Em Caracas, na Venezuela, há uma exceção: há várias ocupações do “Movimiento Pobladores” com cerca de trezentos edifícios tomados e geridos pelo movimento.

A outra experiência, no México, é o “zapatismo”. Trata-se de uma experiência rural de caráter indígena em regiões remotas. Os indígenas da América Latina estão organizados em comunidades, formas de poder num pequeno território. Um grupo de famílias tomam decisões políticas, econômicas, culturais e sociais. As comunidades são micropoderes.

Os zapatistas possuem três níveis de poder autônomo:

1 – Comunidades (cerca de 1.200);

2 – Municípios autônomos ou comunidades agrupadas (38 municípios);

3 – Regiões autônomas, também denominadas “Caracoles” ou “Junta Del Buen Gobierno” (5 regiões).

A forma de governo é bem parecida com a “Comuna de Paris”. As bases nomeiam representantes que podem ser destituídos a qualquer momento. São mandatários para cumprir uma tarefa concreta, devendo prestar contas à população, às bases ou comunidades. A participação nesses órgãos não é remunerada. É a comunidade que sustenta a família ou pessoa que assumiu o cargo. A participação é igualitária entre homens e mulheres. É um poder subordinado ao coletivo, revogável, sujeito a substituição. Um poder para lutar e transformar a sociedade.

A partir dessas reflexões, podemos levantar algumas questões:

1 – O Poder Popular não é o Estado. É algo distinto e em conflito com ele. É uma auto-organização de sujeitos revolucionários. É um sujeito múltiplo que se dota de formas de poder.

2 – Qual a relação do Poder Popular com o Estado?

Pode haver relações de cooperação e de conflito, de diálogo ou confronto. É difícil que só haja um tipo de relação. O conflito estaria sempre presente, pois são poderes diversos. Se o governo for direitista, sempre haverá tensões, fortes conflitos. Se o governo for de esquerda, progressista, poderia acontecer duas situações: o governo teria uma lógica em relação ao Estado e outra lógica em relação ao Poder Popular.

Em que grau este governo progressista estaria apoiando o Poder Popular? Um apoio total ou parcial?

Mesmo sendo um governo progressista, o conflito sempre se manifestaria.

3 – Nos espaços dominados pelo Poder Popular, não poderá ser reproduzida a lógica da burguesia, a lógica do capitalismo. As práticas capitalistas devem ser contidas e potenciadas as práticas comunitárias, socialistas, coletivas, comunistas, enfim, práticas não capitalistas. O Poder Popular não pode ser fotocópia do Estado. Tem de ser um poder diferenciado. É uma ferramenta nas mãos da população.

4 – Sobre a crise do socialismo real, a crise da União Soviética, a crise do campo socialista, gerou uma falta de debates sobre estes temas. Até o final dos anos 80 e início dos 90, os debates sobre o Poder Popular estavam sobre a mesa. Uns optavam pelas comunidades, outros pelos soviets, com uma gama importante de propostas e debates.

5 – Hoje, o debate sobre o Poder Popular está praticamente abandonado. Tomar o poder do Estado e reproduzir o seu funcionamento não é suficiente para avançar por um caminho alternativo. Além disso, o Estado é uma maquinaria muito perversa, reproduzindo estadistas, funcionários e burocratas. É uma máquina afastada da população, por isso, é necessário retomar as discussões, intensamente, sobre o tema Poder Popular.

6 – Isto não quer dizer que, em certos momentos, não seja positivo que forças progressistas assumam o governo do Estado a fim de que a classe inimiga não o use contra as forças populares. Este é outro debate.

7 – Meu desejo é centrar sobre a importância do Poder Popular, recuperar as experiências históricas, rediscutir os soviets, rediscutir a “Comuna de Paris”, rediscutir as comunas e as experiências latino-americanas, algumas das quais anteriormente mencionadas. Abrir um espaço para discutir o Poder Popular é uma forma de aprofundar o trabalho por uma sociedade diferente da atual, pela revolução e por uma mudança de longa duração.

Vídeo completo:

https://www.youtube.com/watch?v=anWMdkF_XZM&feature=youtu.be