Faleceu em fins de maio o jornalista Jacob Feldman, militante do PCB nas décadas de 1950 e 1960 e que foi ainda secretário de redação do Jornal Hoje, editado naqueles tempos pelo Comitê Regional do Partido em São Paulo.
Acerca de Jacob, transcrevemos algumas de suas palavras para a tese de pós-graduação de Pedro Estevam da Rocha Pomar, Comunicação, cultura de esquerda e contra-hegemonia: o jornal Hoje (1945-1952), orientado pelo Prof. Dr. Celso Frederico.
O JORNAL HOJE E A ENTRADA NA MILITÂNCIA JORNALISTICA
Jacob Feldman. Acompanhado do amigo e também ex-militante do PCB Waldemar Yañez Gonzales, Feldman concedeu uma longa entrevista, bastante concatenada, que pode ser vista como um excelente roteiro para a elucidação da história do Hoje do ponto de vista dos que produziam o jornal. Feldman foi repórter e redator. Ingressou jovem no Hoje, oriundo da Juventude Comunista, e ali se tornou jornalista profissional. Manteve-se na carreira depois que saiu do jornal do PCB.
Em razão de sua existência atribulada, Hoje por vezes precisou circular sob nomes de ocasião. Notícias de Hoje, O Sol e O Popular de Hoje foram os títulos utilizados, entre 1948 e 1952, para driblar as suspensões que lhe foram impostas pelo governo.O jornal deixou de circular em agosto de 1952, assumindo então o título Notícias de Hoje, que sobreviveu até 1959.
….. A primeira diretoria do Hoje reuniu alguns nomes de projeção social e política: o historiador e editor Caio Prado Júnior, o pintor Clóvis Graciano, os jornalistas Jorge Amado e Nabor Cayres de Brito, e o irmão deste, o médico Milton Cayres de Brito.
Nessa época eu estava vinculado à UJC, União da Juventude Comunista, e um dos repórteres, por sinal o melhor do Hoje, chamado Raul Azedo Neto, ao fazer a cobertura jornalística de uma passeata que a juventude fazia na Rua Direita, ele chegou-se a mim, me convidou para engrossar os quadros da redação e eu fui. Isso foi em 1950.
Comecei como todo “foca”, eu sempre me julguei com alguns pendores de redator, mas “apanhei” muito e depois aos poucos eu acabei aprendendo, entre aspas, a ser jornalista dentro do Hoje. E fiquei lá em duas fases: uma até 1955, e outra de 1956 a 1958. Foi essa a minha participação
A VIDA NA CÉLULA DO JORNAL
O porteiro da redação do Hoje dizia: “O nosso jornal”. Nós éramos realmente uma comunidade. Havia a paginação, havia os revisores, naquela época ficavam em dupla (…). O jornal geralmente rodava às 2, 3 da manhã. Ele foi durante muito tempo, ou todo o tempo, cognominado de “a fortaleza do partido”, porque era um prédio, na rua Conde de Sarzedas, que tinha de 4,5 a 5 metros de largura, ou 6 metros, quando muito, com 90 metros de fundo. Não havia nenhuma entrada lateral, ele era todo construído cimentado, todos os lados e em cima.
Portanto só havia uma maneira de a polícia entrar: pela frente. E sempre havia um segurança do partido tomando conta da parte da frente, porque é ali que nós funcionávamos. Quando o jornal foi empastelado, a redação foi empastelada pela polícia, e quebraram tudo, nossas máquinas de escrever, a gráfica serviu de redação precariamente (…) Da redação à gráfica, era uma distância de sete, oito quarteirões. A nossa redação era na Quintino Bocaiúva, depois do empastelamento nós fomos para a Praça Clóvis Beviláqua — até porque o locador da Quintino Bocaiúva já não queria a gente mais como locatário — num prediozinho antigo, ocupamos o terceiro e quarto andares de um prédio de quatro andares, sem elevador. Os meninos subiam os quatro andares bem, agora os mais idosos é que sofriam. E a nossa redação funcionava lá, e a gráfica na Conde de Sarzedas. E também era um trabalho heróico, porque além da maquinaria toda obsoleta, também era o problema de salários. Operário gráfico sempre foi muito procurado naquela época. Os nossos linotipistas recebiam diariamente propostas de outros jornais. Um deles, que era considerado excelente linotipista, o Herminio, recusava salários que seriam hoje, fazendo uma projeção, em torno de 3 mil reais por mês. (…) Ele recusava salários… ele e os outros também, mas mais ele.
…..havia um judeuzinho, como eu, Eliezer Strauch, que o pai o deportou quando o menino tinha uns 16, 17 anos, e estava envolvido com o partido e o jornal, o pai mandou para os Estados Unidos, lá para um irmão do pai, para viver lá. ‘Não, aqui é um perigo’, ele já tinha sido preso. Ele chegando lá foi trabalhar num jornal do partido, o Daily Worker, o jornal do PC americano. E ele era tão talentoso que em poucos meses conseguiu ser redator do Daily Worker. Mas aí também andou tendo problemas de perseguição política, voltou e veio trabalhar com a gente…
(…) Isaac Akcelrud quis podar o namoro do Henrique de Aquino, que era um rapaz da circulação de Hoje, um moreninho, não sei por quê razão, não me atrevo a adivinhar, mas parece que não concordava com o comportamento da moça. Aquela coisa de dirigente do partido daquela época, né? E o Henrique levantou esse problema numa reunião da célula da redação — o Wolney que contou, eu não estava presente. O Wolney disse que o Henrique falou assim: “É, companheiro Isaac, você não pode impor”. Aí diz o Isaac: “Eu imponho sim”. Aí diz o Henrique: “Então você é um impostor”.
A SOBREVIVÊNCIA DO JORNAL, DO MILITANTE: DO PARTIDO
A campanha incluía ainda, como observado pelos espiões do DOPS, “várias modalidades de arrecadação”:
Todos os dias são enviadas contribuições espontâneas ao Hoje, dinheiro este que é entregue diretamente ao jornalista Joaquim Câmara Ferreira, não se sabendo a quem é entregue posteriormente ou onde é depositado.
Estão os comunistas, nessa campanha, aplicando também a assim denominada arrecadação domiciliar, efetuada principalmente por senhoras e moças, que percorrem bairros operários, batendo de porta em porta e solicitando contribuições. Segundo soube, somente na tarde da 4ª feira última foi arrecadada quantia superior a 1.000 cruzeiros, nas proximidades de S. Caetano (…).
…Nem sempre se adotavam meios ortodoxos de arrecadação para o jornal.
Feldman relata que, em 1953 (ou 1954), Pena Malta, um dos responsáveis pelas finanças partidárias no Comitê Estadual, parece ter encontrado uma forma engenhosa de reavivar o caixa do então Notícias de Hoje:
Um dia ele chegou e disse: “Olha, você sabe que o jornal, como entidade, tem direito a importar com total isenção de impostos tudo que quiser, tudo que for relacionado com o mister do jornal: máquinas de escrever, máquinas fotográficas, linotipos… (…) Papel era totalmente isento. Tanto assim que o papel que vinha da Suécia, através de uma firma chamada T. Janér, de São Paulo, era mais barato do que o que o Klabin fabricava. Melhor, era o linha d’água, papel da rotativa. Pois bem, mas o Pena Malta chamou a atenção do partido e do jornal. “Nós podemos importar o que quiser, mas precisa ter dólar para ir à Sumoc depositar”. (…) O problema era ter o dinheiro. Então o Pena Malta articulou com uns empresários aí que eu não sei quem fosse, disse:
“Olha, nós vamos fazer o seguinte, nós vamos importar, vamos dizer (…) um milhão de dólares, a gente usa o nome do Notícias de Hoje, importa, vem tudo sem imposto, e a gente vende”. E aí foi feito o negócio. Um dia lá no cais do porto, em Santos, nos galpões, aparece lá uma enormidade de mercadorias, em nome do Notícias de Hoje, e o jornal Estado de S. Paulo soube da coisa, né. Aí foram lá, fotografaram.
Tinha de tudo. Tinha assim… 40 máquinas fotográficas… (…) O Estadão ficou dois meses falando naquele assunto todo dia, você não lembra, Waldemar?, todos os dias. Entrevistavam deputados… Ah sim, teve deputado na Assembléia que pediu, não se falava CPI, pediu uma investigação. Mas acontece que o Rio Branco Paranhos conseguiu liberar, nós ganhamos a causa, a maracutaia foi feita, e os nossos fotógrafos ganharam máquinas novas, nós ganhamos umas máquinas de escrever novas também… (…) Quer dizer, o jornal se valeu de uma abertura que era feita para a imprensa burguesa, e nós entramos…
…..Quando eu era credenciado na sala de imprensa da Câmara Municipal, a Câmara destinava um jabaculê, você lembra da expressão, sabe o que é: um jabá. Todo jornalista credenciado na sala de imprensa tinha uma verbinha boa mesmo, acho que seria hoje uns mil reais, assim a título de nada, era uma contribuição dos vereadores. Eu me lembro de que o presidente do Clube de Imprensa lá, o Herculano Pires do Diário, veio até meio constrangido para mim, falou: “Você é do Notícias de Hoje, mas você aceita estar incluído, receber?” (…) Eu falei: “Só vou te dar a resposta amanhã”. Aí cheguei para o Câmara e falei: “Câmara, acontece isso. Eu pego a grana?” [E ele:] “Lógico, companheirinho!” Ele só me chamava de companheirinho. “Mas é lógico. Traz para cá que nós estamos precisando”, aquela vozinha meio fina. Eu falei com o Herculano: “Tudo bem, eu resolvi que vou receber o dinheiro”, e tal. E todo mês… Chegava no dia, o Câmara, muito malandrão, “chegou já a graninha?” Claro que não era para ele, era para o bolo, né, quer dizer,
aquilo engrossava.
….No papel, meu salário era 2.500 cruzeiros. O do Câmara 3.500. Mas nunca ninguém recebia. Em verdade, eu abria mão dos vales. E chegava sábado, o Naim [Kamil] entrava na redação suando em bicas, com uma importância xis, então precisava dividir. (…) Devia receber uma vez por mês, mas como nunca recebia, então tinha os vales. Era assim: 100 para os casados, 50 para os solteiros. “Pô, mas como é que eu faço para pagar a farmácia?”, “estou com o aluguel atrasado há três meses”.
“Companheiro, olha o nível ideológico”, costumava-se muito falar isso. (…) Para mim, a destinação seria 20. Aí eu dizia: “Deixa para lá, vai”. Naim perguntava: “Jacob, você vai querer?” Eu dizia “Não”, fazer o quê? Eu tinha casa, comida, roupa lavada.
AS AGRESSÕES DOS INIMIGOS
(Processo instaurado pelo Ministério da Guerra e pela Auditoria da 2ª RM. 30Z74 (4) 421- 560 f. 147)
O jornal Hoje, editado em São Paulo, capital, em sua edição de 25 de novembro de 1951, em um editorial sem assinatura, entre outras cousas disse: “A respeito, o Chefe do Escalão Territorial da 2ª Região Militar, em ofício circular secreto número 1.061 de 31 de julho, determina às Seções Mobilizadoras uma série…”. E mais adiante: “Diz o oficio que, em certa data, os reservistas receberão em suas residências um aviso nos seguintes termos: Convocado a participar das manobras de 1952…”
O atual Chefe do Escalão Territorial da 2ª Região Militar, o então Chefe do Escalão Territorial, senhor coronel José da Costa Monteiro, o tenente-coronel do Quadro do Estado Maior da Ativa, Benedito Hamilton Bianchão de Carvalho, asseveram que existe realmente o documento em apreço, tratando-se de longo ofício secreto que, entre outros assuntos, aborda a questão da convocação de reservistas para uma eventual manobra e salientam a importância do documento.
Verifica-se assim que o jornal Hoje, citando um documento secreto sobre preparo de mobilização, transcreveu parte dele, acrescendo comentários e asseverações não constantes do documento em apreço.
Desse modo, foi instaurado inquérito, do qual resultou um mandado de “busca e apreensão”. Na tarde de 7 de janeiro de 1952 foi realizada uma grande operação na redação e nas oficinas do jornal, em que os soldados do tenente coronel Diderot tiveram o auxílio pressuroso dos homens do DOPS. Foram detidos “17 empregados ou colaboradores, os quais horas depois foram soltos, restando presos os mais categorizados, isto é, seis redatores”, a saber: Oswaldo
Rodrigues Gomes, Francisco de Paula Campos de Oliveira, Vitório Martorelli, Djales Rabelo, Paulo Nunes Batista e Raul Azedo Neto. A contabilidade dos presos está errada neste informe, porque também foram aprisionados Elias Chaves Neto e Jaime Gonçalves, num total de oito pessoas.
Além disso, foram indiciados o repórter Jacob Feldman, o repórter fotográfico Walter Freitas, o ilustrador Itajaí Martins, o linotipista Genésio Ferreira da Silva e o paginador José Jofre Farias, entre outros. O juiz auditor de Guerra pediu ao DOPS os “antecedentes” também de jornalistas que não estiveram entre os detidos na invasão, como Joaquim Câmara Ferreira e Wolney Rabelo, e do advogado José Eduardo Fernandes. Jacob Feldman, que tinha então 18 anos, e passaria três dias detido em função do ocorrido….
….De todos os episódios de truculência policial que marcariam a história da imprensa comunista diária, o caso conhecido como da “Gruta Baiana” é talvez o mais excêntrico…
Eu cheguei à redação, o Azedo falou: “Olha, hoje tem feijoada na Gruta Baiana, vamos ver se reanimamos a Pérola”. Eu digo: “Não, eu já prometi para a minha mãe que vou almoçar em casa”. “Ah, vai comer a sopinha da mamãe ídiche”, e tal. Eu falei: “É, Azêdo, vou…” E eles foram para o almoço, começaram a tomar caipirinha, o João Taibo Cadórniga, que não era jornalista mas estava lá, foi junto, começou a fazer um discurso em homenagem à Pérola, tentando motivá-la. “Viva o
glorioso Partido Comunista do Brasil!”, “Viva Luis Carlos Prestes!” e tal. E tinha um tira do DOPS almoçando do lado. Esse tira chegou para ele e falou: “Olha, vamos maneirar, isso aí é proibido, vocês estão fazendo uma irregularidade”. Que nada. Aí é que incendiou mesmo.
Aí o Azedo já contestou, confrontou o tira, o tira tirou o revólver, o Azedo desarmou o tira, na valentona, arrancou o revólver da mão do tira e começou a dar tiro para o alto. Quer dizer, já imaginou, um restaurante à 1 da tarde, com tiro… aquela confusão toda, aí feita a besteira o Azedo saiu com o revólver na mão, pela Quintino Bocaiúva, entrou na Rua do Riachuelo e a primeira coisa que ele pensou: o Álvaro Moya e o Silas, com as esposas, moram num apartamento lá embaixo, no fim da Riachuelo. Eram dois casais que tinham alugado um apartamento. E foi se homiziar lá, se refugiar lá. Não sei o que ele fez com o revólver, se ele jogou no meio da rua. Bom, mas aí, feita a besteira, o pessoal foi todo para a redação. Passaram 15 minutos veio a Força Pública, entrou lá e estourou com tudo.
A polícia destruiu tudo, inclusive os laboratórios fotográficos. Mas, no domingo, Notícias de Hoje voltou a circular:
Quando eu voltei do almoço cheguei na rua Quintino Bocaiúva, vi aquele aparato de polícia todo, e encontrei o Wolney numa esquina, porque também não tinha ido almoçar lá. Nessa altura o Rivadávia Mendonça já estava sabendo, e o Artigas, começaram os telefonemas, nós nos articulamos e fomos para a gráfica. E lá nós editamos um jornal de quatro páginas só, no domingo. O Wolney escreveu um editorial…
(…) O editorial do Wolney foi uma obra literária, né. Eu lembro até hoje o título que ele fez, assim: “Ferida de morte, a besta escoiceia”.
O JORNAL, O COMUNISTA E OS COMUNISTAS
…Ele era ponto de passagem de todo o pessoal do partido que pudesse passar por lá. (…) Era a menina dos olhos do partido, de fato era mesmo. A gente era visto, modéstia à parte eu me incluo nesse grupo,como uma espécie de herói pela militância. Por quê? Porque a gente dava a cara para bater. Cada saída que a gente tinha para uma reportagem era sempre o risco de ser abordado pela polícia, levar umas borrachadas. (…) Então a redação era assim um reduto de pessoas.