Artigo de Paulo Figueiredo publicado no site D24AM.com relembra o militante comunista Belarmino Marreiros.
“Alto e magro, bem alto para os padrões locais. Moreno, corpo um pouco curvado, cabelos ralos, próximos da calvície irremediável e com entradas já bem pronunciadas. Usava óculos de míope de aros negros, vestia-se sempre com calça cáqui e blusa de morim branco.
Era assim que Belarmino Marreiros comparecia todos os dias à sua barbearia na Rua Joaquim Sarmento, Centro de Manaus, no coração da cidade. Além de ocupar-se do antigo ofício de barbeiro, de tesoura e navalha, conversava sobre política com amigos, conhecidos e clientes, sobre o passado e o presente, preocupado com os destinos de sua gente e da humanidade. Com singeleza, traço característico de sua personalidade e de sua origem modesta, emitia opiniões seguras sobre cada momento da história, certo de que teriam embasamento científico sob a ótica do marxismo-leninismo.
Comunista de carteirinha, com direito a documento de identidade partidária que exibia como troféu, porquanto assinado pelo secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro, Luís Carlos Prestes, o lendário Cavaleiro da Esperança. Prestes, ícone maior e para sempre do movimento comunista no Brasil, não tinha defeitos e não falhava nunca, na opinião de seus antigos companheiros.
Com Miguel Costa, antes havia dado nome à Coluna, com feitos que Belarmino guardava na memória a respeito da jornada que cruzou o interior do País denunciando a miséria do povo, em defesa de reformas políticas e sociais e em oposição aos governos de Artur Bernardes e Washington Luís. Ao narrar os acontecimentos daquela época, protagonizados pela Coluna Prestes e que sensibilizaram a Nação na década de 20 do século passado, com tanto realismo como se deles tivesse participado, o barbeiro não conseguia conter a emoção. Com iguais sentimentos, falava da história do PCB, que se confundia com a biografia de seu líder maior, preso pela ditadura de Vargas, e do sacrifício de sua mulher e companheira, Olga Benário Prestes, entregue à polícia alemã para ser morta em campo de concentração nazista.
Para Belarmino, o Partidão e seus dirigentes jamais cometiam erros. Assim, aplaudiu o equivocado Levante do 3o. Regimento de Infantaria – RI, na Praia Vermelha, Urca, Rio de Janeiro, em 1935, que a direita apelidou para sempre de Intentona Comunista. E vibrou com um sonoro “pai-d’égua”, recolhido de suas raízes nordestinas, com o episódio ocorrido entre o capitão do Exército Agildo Barata, expoente da sublevação, e outro oficial legalista no mesmo evento no 3o. RI, cujo caso não cansava de contar com entusiasmo em seu salão de barbeiro. Referia-se à história do capitão que no curso das negociações de rendição perguntou a um grupo de revoltosos quem ali presente era o “filho da puta do Agildo Barata?”, recebendo do próprio e de bate pronto como resposta que Agildo Barata era e le, mas filho da puta era o capitão que buscava a informação. “Aquilo é que era cabra macho”, concluía Belarmino, orgulhoso pela atitude corajosa do comunista, que mais tarde seria de igual modo conhecido como pai do comediante Agildo Ribeiro.
A primeira e grande decepção do barbeiro Belarmino veio com a denúncia feita por Nikita Khruschóv, no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em julho de 1956, sobre os crimes praticados por Ióssif Stalin, mas, ainda assim, não arredou pé de suas convicções. Manteve-se firme, embora achando que a roupa suja deveria ter sido lavada em casa, entre os muros fechados do Kremlin, e não de forma pública e vergonhosa como terminou ocorrendo. Foi dura a provação para quem via em Stalin o “guia genial dos povos”, mas era preciso seguir em frente. Passou a lembrar do líder russo apenas e tão somente como o grande vitorioso sobre as tropas de Hitler durante a 2a. Grande Guerra, como era mais do que conveniente.
Belarmino morava com a família na Rua Ramos Ferreira, na subida do Buraco do Pinto, já quase esquina com Joaquim Nabuco, onde também se reunia uma pequena base do Partidão, formada por estudantes secundaristas, antes do Golpe de Abril de 1964. Uma vez por semana, lá estávamos com o velho barbeiro, junto com Alfredo Santana, José Botinelly, Luís Roberto Garcia, José Maria Monteiro e outros poucos, para discutir a situação política e as perspectivas da esquerda no Brasil. Fazíamos todos uma análise elementar da realidade nacional, sob enfoque do marxismo-leninismo, condicionada às nossas naturais limitações, e saíamos sempre desses encontros cheios de otimismo em relação ao futuro do País e de seu povo.
Belarmino foi preso na primeira leva de capturados pela quartelada de abril. Os militares já o encontraram de mala pronta, com a escova de dentes devidamente separada e tudo o mais. Sofreu tortura psicológica, agravada pela idade avançada, mas não abriu a boca, não disse nada que pudesse comprometer seus companheiros de partido e de ação política. Abriu uma única exceção, como fazia sempre, ao declarar-se comunista, comunista de carteirinha, com carteira subscrita pelo Velho, como também era chamado Luís Carlos Prestes, símbolo da luta pela implantação do socialismo no Brasil.
Foi pai de Miriam Marreiros Meirelles, mulher de Thomaz Antônio da Silva Meirelles Neto, o nosso Thomazinho, vítima brutal da ditadura, desaparecido político, com quem teve dois filhos, Larissa e Togo, que até hoje não sabem o paradeiro do pai, netos de Belarmino, um exemplo de coerência e dignidade, um homem simples e um patriota dos mais intrépidos”.