Confira nesse trecho de Quem derrubou João Saldanha, de Carlos Vilarinho, a atuação daquele que viria a ser técnico da seleção brasileira de futebol na Guerrilha de Porecatu, que contou com participação decisiva do PCB.
“Em janeiro de 1951, João Saldanha foi designado para o comitê estadual do Paraná. Chegava ao fim o Governo de um tipo corrupto e sanguinário. Moisés Lupion (PSD) foi o responsável pelo desencadeamento da luta entre posseiros e grandes grileiros pela propriedade de terras no norte do Estado, o chamado Norte Novo. A zona conflagrada se situava ao sul do rio Paranapanema (fronteira com São Paulo), num perímetro formado pelos municípios de Jaguapitã, Guaraci, Centenário do Sul e Porecatu. Essas terras faziam parte de uma antiga concessão da Companhia Colonizadora Alves de Almeida & Irmãos.
Em junho de 1934, o interventor Manuel Ribas (1932-1945) anulou a concessão e loteou as terras, a preço barato, para quem quisesse trabalhar. Como tantos outros antes dele, José Bilar (“Espanhol”) chegou à região em 1940. Cito outros: Francisco Lourenço Figueiredo (“Chico Quiabo”), Herculano Alves de Barros e Lázaro Bueno de Carvalho (“Lazão”). A maioria comprou sua terra, outros eram “grileiros”, mas de boa fé. Dos seus ranchos saíam caminhões transportando peroba e outras madeiras de lei para Assis ou São Paulo. Também tinham áreas de plantio: não muito café, mas milho abundante. Também criavam porcos. Era uma gente valente, com boa mão para plantar.
Em 1944, cerca de quinhentas famílias constituíram uma comissão para cobrar a entrega dos títulos de propriedade. Dessa comissão, além de José Bilar e Herculano de Barros, fizeram parte Hilário Gonçalves Pinha (filho da cunhada de Bilar) e Manoel Marques da Cunha. O paulista Hilário era dono de 30 mil pés de café, 300 cabeças de boi, 800 cabeças de suínos, um trator e dois bons caminhões de segunda mão. Manuel Ribas comprometera-se com os camponeses. Entretanto, o quadro mudou com a posse de Lupion (12/03/1947), ex-procurador de Jeremias Lunardelli, o “Rei do Café”.
Lupion assinou um decreto à feição da grilagem de Lunardelli e pôs à sua disposição a Força Pública para obrigar os camponeses a “abandonarem” as terras cuja propriedade, depois, iria requerer. Cada posseiro expulso rendia 30 mil cruzeiros ao tenente da polícia João André Paredes. No quadrilátero compreendido entre os rios Paranapanema e Centenário, a estrada Porecatu-Centenário do Sul e o ribeirão do Tenente, um punhado de camponeses mostrou à massa que, organizada, podia enfrentar os pistoleiros, os donos de cartório, os juízes corruptos e a polícia militar. Um deles, o paraibano Francisco Bernardo dos Santos, enfrentou-os com arma na mão. Em março de 50, ele fugiu para o DF para pedir providências a Dutra e aos congressistas. Voltou de mãos vazias. Em Regente Feijó, foi preso pela polícia de Ademar de Barros e entregue ao tenente Paredes, vindo a morrer nas mãos de José Celestino, jagunço de Lunardelli, depois de haver passado vinte dias amarrado no fundo de um jipe.
Os líderes dos posseiros buscaram a ajuda do PCB. Em novembro de 1948, decidiram armar-se para resistir. Formaram dois grupos, cada um com doze homens. Um comandado pelo “Espanhol”, o outro por Hilário (“Itagiba”), militante do PCB desde 1947. Em 9 de outubro de 1950, seguindo ordens do secretário de segurança, Libânio Pacheco, um destacamento chefiado por Paredes invadiu a propriedade de Chico Quiabo, assassinando três trabalhadores. Mas no dia seguinte, quando o caminhão policial corria pela estrada em direção a outra posse, topou pela frente com um grupo de camponeses armados, travando-se então cerrado tiroteio. Findou o combate quando o veículo conseguiu fugir em desabalada carreira. Saldo: alguns soldados mortos, outros feridos. Nenhuma baixa entre os camponeses. No pleito do dia 3, o PSD fora derrotado pela coligação UDN-PR-PST-PRP. O então deputado federal Bento Munhoz da Rocha (UDN) prometera garantir a propriedade dos posseiros. Eleito, recebeu-os (graças a Pomar) em seu gabinete e reafirmou o compromisso. Mas ele também era amigo de Lunardelli, tanto que, em sua companhia, participou da Conferência Cafeeira de Baton Rouge, nos EUA. Precavidos, os “intrusos” (assim chamados por O Globo) não largaram as armas, muito pelo contrário.
João Saldanha foi então deslocado para Londrina, trabalhando na sucursal do diário paulista (comunista) Hoje. João e Hilário reuniam-se fora da região conflagrada: “Nós íamos para outra região e nos reuníamos no mato mesmo, ou num ranchinho, numa casinha. Saldanha era muito inteligente, defendia a orientação do Partido a ferro e fogo, mas era um cara ponderado. E era um bom papo. Cada reunião que ele fazia, no almoço era uma festa. Nós tínhamos apoio da população. Isso era muito importante. Aonde nós chegávamos tinha comida, churrasco, tinha festa. Do Partido eram seis ou sete companheiros. Na verdade, chegamos a ter dez do Partido. Estes ficaram militantes, como foi o meu caso”.
No início de fevereiro de 1951, os posseiros passaram à ofensiva, atacando com sucesso a sede da Fazenda Tabapuã, “pertencente” a Jerominho (Jeronymo Inácio de Souza), estreitamente ligado a Lunardelli, amigo de Paredes e Celestino. Dias antes, este havia caído numa emboscada dos posseiros. Depois da deserção de Paredes (após a emboscada de outubro) e das mortes de Celestino e seu comparsa Luiz Menezes (Lalzinho), Jerominho passara a chefiar a jagunçada. Em 6 de maio, na fazenda do grileiro Clemente Vilela Arruda, os camponeses mataram a tiros o administrador Patrício Severo, além de ferir outros três jagunços.
Munhoz da Rocha decidiu agir. Assinou um decreto de desapropriação das referidas terras propositadamente confuso e que ele próprio não cumpriu. E nomeou uma comissão de donos de terras e interessados em grilos, comissão que jamais foi a Porecatu. Em março, ordenou que a polícia ocupasse Londrina, a fim de respaldar a tal comissão, que chegou a oferecer aos posseiros a troca de suas excelentes terras (roxas) por outras a sudoeste, em Campo Mourão, distantes (mais de 100 km) e piores. Nenhum quis contato com a comissão. Dois dos seus integrantes, os fazendeiros Aldovandro Gonçalves Magalhães e Clemente Vilela, estavam jurados de morte. Mas havia mais: os integralistas Edgar Távora e o padre Albino, este, grileiro feroz.
Os governadores de São Paulo e Paraná (leia-se UDN), com a cobertura de O Globo e similares, atribuíram ao conflito um caráter que ele não tinha. Repetindo 1935 e 1937, taxaram-no de levante comunista, identificado com a “ameaça” na Coréia. O Globo, que pregava o envio das tropas à Coréia, chamou o famoso quadrilátero de “Coréia Brasileira”. As forças que desejavam derrotar o movimento de resistência à participação do Brasil no massacre dos coreanos eram as mesmas que pretendiam justificar o massacre dos vermelhos no Paraná. Então, os enviados especiais de O Globo trouxeram do front notícias terríveis: suspeitava-se que um dos procurados, um tal de Hilário, seria, na verdade, ex-capitão do Exército paraguaio. Num “furo de reportagem”, O Globo soube pela cúpula da polícia paranaense que o Departamento Federal de Segurança Pública distribuíra na região boletins de Gregório Bezerra e Agildo Barata com a seguinte legenda: “Cuidado com eles! São traidores da Pátria! Querem entregar o nosso Brasil à Rússia!” Planos quiméricos foram denunciados: armamento, barricadas. Em Londrina, vivia-se sob estado de sítio de fato.
Na madrugada de 17 de junho, onze militantes do PCB foram detidos em suas residências e levados para local desconhecido. Seu crime: promover agitações em favor dos “intrusos”. Entre os presos, dois vereadores, um advogado, um engenheiro, um professor secundário, um corretor, um comerciante, etc. Houve protestos da Associação Médica de Londrina, da Federação de Mulheres do Paraná e da Câmara Municipal de Curitiba. Repercutiu o manifesto “Povo da Minha Terra”, da vereadora comunista, em Londrina, Maria Olímpia Carneiro Mochel. Entretanto, a trama prosseguiu. Na madrugada de 20, tropas da polícia partiram de Londrina em direção a Porecatu. Enquanto isto, a Força Pública paulista ocupou a margem norte do Rio Paranapanema. Na madrugada do dia 25, armada até os dentes, a coluna chefiada pelo major João Alencar Guimarães partiu para o sertão. Entretanto, por temor às emboscadas, não ousou penetrar na mata. No dia 27, O Globo lamentou: “Ao contrário do que denunciavam os preparativos bélicos, a entrada da tropa policial no interior da Coréia Brasileira não foi além de uma passeata. Percorreu as estradas de Porecatu, Vila Progresso, Centenário do Sul, Ribeirão do Tenente, às margens do Paranapanema, encontrando apenas, colonos assustados”. Neste dia, o secretário de segurança do Paraná, coronel Albino Silva, regressa a Curitiba. Fracassou o novo Plano Cohen.
O justiçamento do jagunço Celestino constituiu-se num episódio importante. João Saldanha chegou a conhecê-lo: “Vi estes caras pessoalmente em Centenário, centro da zona conflagrada. Onde entravam causavam medo. Mas também ódio. Eram cruéis. Mataram e torturaram muita gente. Andavam como bandidos mexicanos: de arma à bandoleira, e duas cartucheiras entrelaçadas pelo peito. (…) O que fizeram é inenarrável”.
Celestino foi liquidado numa operação comandada por Hilário: “Havia um matador profissional, que ganhava para liquidar e que chegou a comandar a polícia militar. Deram pra ele dezoito homens. Um cara de influência e muito capaz. Ele botava fogo na casa, estuprava mulheres, ameaçava fuzilar, etc. A minha casa ficou em cinzas. Os paióis de cereais, de arroz, de milho, para passar um ano, dois. Botaram fogo. Era um terror. Uns amigos nos informaram que ele tinha uma amante, muito bonita, perto da cidade. Essas coisas funcionam no campo. O cara tinha um sinal de buzina e de tiro. O cara deu dois tiros e tocou a buzina. De tal maneira que nós dissemos: Bom, é hoje. Fomos lá, fizemos o cerco e pegamos o cara na saída. Saldanha não estava nisso. Foi uma equipe de quatro. Celestino estava com esse menino na garupa do cavalo, que vinha para trazer o animal para casa enquanto ele ia pegar a condução para a cidade. O fato em si deu muita repercussão porque nós acertamos vinte e dois tiros (contamos os cartuchos). Foram quarenta e quatro buracos e a criança, um molequinho, não levou um arranhão. Nem o cavalo. Esse guri se jogou, é evidente, mas os primeiros tiros foram mortais no cara, quando o guri estava agarrado na cintura dele. Acertamos tudo nele. Nós atirávamos muito bem. A gente cortava cipó com tiro de fuzil. Eu matava passarinho de winchester, com uma bala. Toda a nossa turma era muito boa de tiro. Nós escolhemos esses quatro que foram lá, quatro caras que não tremiam. Nós sabíamos que a missão era complicada, que ninguém podia vacilar. Tínhamos que acertar mesmo. Não teve um erro. Além de tudo, havia um ódio, porque esse cara era bandido de sangue-frio. Então tínhamos que matar esse cara a sangue-frio mesmo. Não demos tempo a ele, que morreu com o revólver na mão. Deu ainda dois tiros, mas já estava morrendo. Eu digo tudo isto porque eu era o comandante. Éramos eu e mais três. Isto foi em 1951”.
A luta armada terminou após a assinatura de um acordo. Hilário esclarece: “Tenho a impressão de que foi em setembro ou outubro [de 1951]. Botamos a nossa turma para negociar. Não eram do Partido, mas simpatizantes, gente nossa, comerciantes, vereadores das cidades próximas (Centenário, Londrina). Montamos uma comissão onde o Saldanha jogou um papel decisivo. A luta em si foi parcialmente vitoriosa, pois nós conseguimos, mais ou menos, assentar cerca de mil famílias, com título de propriedade – estão lá até hoje – uma parte delas na própria região. Só que reduziram as áreas para dar para mais gente. Receberam terra legalizada. Hoje estão todos bem de vida, fazendeirinhos. No meu caso e no caso da minha família toda (os tios, primos e amigos), nós fomos levados para Paranavaí. Eu recebi trezentos hectares de terra, embora de qualidade inferior à de Porecatu, que era de primeira qualidade (terra roxa), própria para cana-de-açúcar. Enquanto não assentaram, não indenizaram as famílias que foram transferidas (um valor pequeno, mas que ajudou), continuamos a luta. Quando todo mundo foi transferido, encaminhado e recebendo as terras, aí, nós desarmamos o grupo, que nunca passou de 18 homens”.”