Nascido em Recife em 1914, Mario Schenberg é reconhecidamente um dos físicos teóricos mais importantes do Brasil, tendo publicado trabalhos nas áreas de Termodinâmica, Mecânica Quântica, Mecânica Estatística, Relatividade Geral, Astrofísica e Matemática. Foi, também, aguerrido militante comunista.
Iniciou em São Paulo a campanha O Petróleo é Nosso, lutou pela defesa dos minérios nucleares do país e esteve envolvido nos debates sobre as centrais nucleares, mostrando-se contra o acordo Brasil-Alemanha de cooperação nuclear.
Foi eleito suplente de deputado estadual para a Assembléia Constituinte do Estado de São Paulo, na legenda do PCB, em 1946. Revelou-se respeitável orador, que chegou diversas vezes a inverter a posição dominante da bancada.
Em 1947, sob a liderança de Caio Prado Jr., a bancada comunista na Assembléia Legislativa de São Paulo aprovou o Artigo 123 da Constitução do Estado, instituindo os fundos de amparo à pesquisa no estado para impulsionar o seu desenvolvimento científico e tecnológico – antessala da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
Em 1948, foi cassado e vítima de perseguições na universidade, como os outros membros da bancada comunista. Em 1962 foi novamente eleito deputado estadual, agora pela legenda do PTB, mas foi impedido de tomar posse por ser clara e inequivocamente um quadro do Partidão.
Em 1964, foi preso pela ditadura militar 7 dias após o golpe militar, permanecendo confinado no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) por dois meses. No ano seguinte, sob acusações de atuação política na universidade foi perseguido e preso. Seu mandato de prisão somente foi revogado devido à pressão da comunidade científica internacional.
Com a declaração do AI-5, em 1969, foi aposentado compulsoriamente e proibido de entrar no campus universitário. Na década de 70 sofreu inúmeras perseguições e ameaças de entidades do governo, que ameaçavam por vezes sua integridade física.
Foi também praticante das artes plásticas, tendo convivido com camaradas como Di Cavalcanti e Candido Portinari, também membros do PCB; e Pablo Picasso, comunista que militou tanto no PC espanhol quanto no PC francês.
Abaixo, reproduzimos um artigo de Schenberg sobre as perseguições que sofreu no meio acadêmico por ser comunista.
“E certas coisas não devem ser perdoadas”
Mário Schenberg
“Não está muito fácil para mim falar, porque eu estou muito comovido com aspalavras que já ouvi aqui e que muitas delas me surpreenderam realmente. Porque eu sinto que muitas idéias eram reparações a injustiças que tinham sido cometidas. Não digo pelos próprios professores em questão, mas pelo sistema todo. De modo que esta data aqui é uma data que eu reputo muito interessante, porque é uma espécie de mea culpa das pessoas que tanto prejudicaram o desenvolvimento científico do Brasil. Não quero dizer com isso que entre estes não tenha havido muitos que fizeram muito pela ciência no Brasil. Mas eu acho que o lapso negativo ainda não foi de todo dissipado.
Enfim, vamos agora nos congratular com o fato de termos atingido um grau de liberdade… Eu me lembro de determinados momentos que foram muito dolorosos, como o momento em que eu fui expulso do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. Porque eu fui, né ? E não era mais membro. Fui cassado. Não sei se era cassado, se o termo é tecnicamente correto, mas, em todo caso, foi o que aconteceu. E, sem dúvida, eu sei que o fato de ter tido de interromper a minha colaboração com o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas me prejudicou bastante e, talvez, tenha prejudicado também a outros setores da ciência brasileira.
Mas, de qualquer maneira, estamos já em épocas melhores e esperamos que essas coisas, ou coisas semelhantes, não se repitam mais. Quero agradecer a todos os meus colegas, amigos, companheiros de trabalho, etc, pela solidariedade que me manifestaram, tantas vezes nesses anos de perseguição. Mas tenho esperança de que este ciclo já esteja encerrado, de que essas coisas não vão se repetir mais, pelo menos nestas formas que nós conhecemos anteriormente. Mas não quer dizer que uma vigilíncia não seja sempre necessária. Porque não estou dizendo que os métodos que forma usados anos atrás continuem a ser usados diretamente da mesma maneira, mas podem ser usados de outras maneiras, que podem ser tão prejudiciais quanto aquela.
E, principalmente, que houve uma coisa que foi muito grave e que eu acho que a ciência brasileira não se reestabeleceu. Está certo que é uma questão técnica, mas era mais uma questão moral que estava em jogo. Não foi feita uma aceitação plenária, de todo a ciência brasileira, em relação as perseguições destes anos de Ato 5 e dessas coisas todas. Eu acho que alguma hora chegará em que será preciso fazer uma autocrítica completa, que eu acho que não foi feita. Foi feita em parte e já melhorou bastante, não há dúvida. Mas eu não acho que foi completa. Seria preciso se chegar a uma geração que tivesse plena consciência dos erros cometidos. Enquanto não se tiver uma compreensão clara de todos os erros cometidos a gente sempre corre o risco de repetí-los novamente, de uma forma um tanto diferente. Então eu acho que todos os mea culpa que nós possamos fazer sempre serìo, talvez, insuficientes, porque realmente coisas muito terrÌveis aconteceram aqui no Brasil.
Mas eu acho que não vale a pena ficar fazendo críticas ao passado. Se o passado tem seus podres, que sejam enterrados. Não se perca um tempo novo assim ainda discutindo certas coisas terríveis, que muitos de vocês talvez nunca conheceram, talvez nem saibam que elas aconteceram. Mas ,então, eu sou muito contente de que tenhamos superado esta etapa e que estajamos agora num outro ciclo. E eu acho que este novo ciclo permitirá dar um impulso maior para a ciência brasileira. Não só para compensar o que se perdeu nestes anos, mas para ir mais adiante, sobretudo. Não só reparando erros cometidos, mas, sobretudo, abrindo caminho novos.
Mas eu acho que não se deve dizer que foi uma coisa, assim, que passou, aconteceu, alguns fatos lamentáveis. Porque houve atos que forma extremamente ativos, sobretudo quando eu fui expulso do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. Não foi através de um ato democrático de congregação, que eu fui afastado. Mas eu fui afastado do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. E nunca mais pude voltar. É um fato. Nunca ninguém sentiu a necessidade de me dar uma …, reconhecer a luta que eu travei naqueles anos de cassações e outras coisas. Então eu acho que, do ponto de vista moral, a questão não pode ser considerada como fechada.
Eu acho que a gente não deve insistir demais sobre assuntos negativos, nem e´ do meu temperamento. Eu sempre gosto de olhar para frente, ao invés de ficar olhando e relembrando coisas do passado. Mas há certas coisas que a gente não deve esquecer, porque se a gente esquece, perdoa; e certas coisas não devem ser perdoadas. Eu acho que cientistas, por exemplo, não podem, absolutamente, perdoar atos de expulsão de outros cientistas de cátedras universitárias. Eu acho que nunca devem perdoar isso, nem podem. Porque se eles perdoam isso, então estão trabalhando contra si mesmos. Esse tipo de coisa não é tolerável.
Bom, mas, enfim, vamos olhar pra diante, não esquecendo os erros do passado, que sempre podem se reproduzir de um momento para outro. Mas, de qualquer maneira, procurando atingir níveis superiores. Eu não sei se o Centro Brasileiro já se refez das perdas deste período, não posso afirmar isso. Tenho sérias desconfianças de que não se refez. Podem ser que criaram novos cursos, mas eu acho que há alguma coisa que é um dano moral que se faz e eu não estou convencido de que a posição do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas foi correta nestes anos de perseguições e outras coisas. Acho que, em muitos pontos, não foi. Eu acho que, enquanto realmente não se faça uma expiação dessas coisas, não se pode voltar a reassumir, realmente, a trilha certa.
Bom, eu não quero mais ficar me recordando desses acontecimentos passados. Não quero que nenhuma dessas coisas que tanto me amarguraram se tornem a repetir, nem requer mesmo uma repetição feita apenas por uma lembrança. E que a nossa lembrança se vire para outros aspectos melhores e mais sadios do que esses que nós presenciamos nestes anos.
Desculpem, as vezes, se há um resto de amargura que eu ainda tenho. Porque, realmente, foram tamanho os efeitos que exerceram sobre a minha carreira científica, em particular a expulsão, praticamente, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. Enfim, todas estas coissas aqui certamente me atingiram muito e me prejudicaram largamente também. Mas eu acho que nós estamos voltando, não sei se já voltamos, mas estamos fazendo um esforço considerável para voltar ao caminho da democracia no Brasil. Eu acho que nestes últimos anos, tem sido feito um esforço muito considerável neste sentido. Mas eu acho que esta coisa não pode ser feita simplesmente esquecendo certas coisas. Há certas coisas que não se esquecem. Seria a mesma coisa que se propor que se esqueça um arquivo de Tiradentes, essas coisas deste tipo. Não se pode e não é nem desejável. A memória destes crimes deve ser mantida execrada, mas viva. Viva, mas não viva como uma repetição, mas viva como uma não-repetição. Não sei se estou, talvez, com muita amargura de certas coisas, mas realmente os episódios que eu vivi no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas ainda não os esqueci até agora e acho que não os esquecerei nunca. Porque muitas dessas coisas foram o Brasil daquela época, o Brasil da ditadura. Mas eu não estou certo de que os cientistas tenham reagido com toda a energia necessária a essas coisas”.
Acho que algum dia se fará um juízo, e não quero ser eu o juiz dessa coisa, mas muitas das coisas que aconteceram não se justificam nem hoje mais. Então, que todo jovem das novas gerações saibam, depois, que ,um dia, coisas lamentabilíssimas aconteceram aqui, nestas instituições, e que os efeitos nocivos disso não desapareceram, ainda continuam. Mas estou certo de que estamos nos aproximando de um momento em que não só a lembrança, mas as sombras que deixaram, também desaparecerão”.