Reproduzimos a seguir aula inaugural do ano letivo de 1961 na Universidade da Bahia, proferida no auditório da Reitoria, a 1º de março de 1961, pelo Professor Adjunto Heron de Alencar, da Cadeira de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia. Heron de Alencar foi um intelectual orgânico e militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Condicionado a exílio em 1964, faleceu em 1971 sem ter sido anistiado. Médico obstetra; livre-docente em Filosofia da Universidade da Bahia; professor de Literatura Brasileira da Universidade Sorbonne em Paris; vice-reitor da Universidade de Brasília durante a gestão Darcy Ribeiro; fundador do ensino de Letras/Literatura no Instituto Central de Artes da UnB; pesquisador das obras de José de Alencar e de Machado de Assis; consultor junto ao arquiteto Oscar Niemeyer para a elaboração da proposta de arquitetura original da UnB; participou ainda da equipe de comunistas brasileiros exilados na Europa em convênio com o governo da Argélia em apoio à Reforma Universitária daquele país.
Senhoras e Senhores:
A honra que me foi generosamente conferida, de pronunciar esta lição de abertura do ano escolar na minha Universidade, após tantos anos de ausência, não se explica, a meu ver, senão por dois motivos:
a) pelo desejo de prestigiar àqueles que, ainda não tendo atingido, do ponto de vista burocrático e administrativo, a última etapa da carreira de professor, nem por isso deixam de ser fiéis à vocação ou profissão a que desde cedo se entregaram. E por entender desse modo é que, desde agora e no inicio desta lição, quero agradecer a homenagem que se pretende prestar a nós, os livres docentes desta Universidade;
b) o segundo motivo — e não vejo porque escondê-lo ou omiti-lo — seria a curiosidade de ouvir a quem, tantos anos ausente, regressa de uma experiência universitária num dos centros de ensino e cultura de maior tradição na história do Ocidente.
Se me procuro explicar a minha presença aqui, neste local, neste instante e nestas circunstâncias, é porque desejo me situar em face da responsabilidade que me foi deferida. Dela não quero nem pretendo fugir. Ao contrário, até. A minha determinação é a de esgotá-la ao extremo, para que esta minha fala, pretensiosamente batizada com o nome de “lição”, possa revestir-se das características de uma conversa informal, porém aberta e franca corno deve ser a permuta de ideias entre homens que pensam o que dizem e dizem o que pensam.
Professor de Literatura, não pretendo falar de Literatura. Livre-docente e Professor Adjunto da minha Faculdade de Filosofia, também não é das reivindicações específicas e particulares a essa condição que pretendo falar. Nem mesmo da Universidade francesa que vi — a não ser o estritamente necessário para dizer como essa experiência me fez passar a ver a Universidade brasileira. Disposição que talvez desaponte muitos dos que aqui vieram curiosos de saber como estão lá as coisas, na atitude compreensível mas nem por isso menos nociva de alienação cultural que adiante tentarei discutir. Julgo ser mais oportuno e sincero se tentar pensar alto uma série de problemas que me preocupam desde o início mesmo da minha experiência de professor estrangeiro na Sorbonne.
O primeiro desses problemas, de natureza estritamente pessoal, foi o duplo choque que senti ao aproximar-me da realidade europeia e ao distanciar-me da realidade brasileira. Não exagero nem me ponho em atitude falsamente intelectual se acrescentar que data dai, do momento da consciencialização desse choque, o desaparecimento de uma certa euforia que eu carregava como ilusão de felicidade e bem-estar.
Jamais me ocorrera pensar que o contato direto com os sistemas europeus de vida cole-tiva me arrastasse à aventura de uma totalrevisão de conceitos e preconceitos, de noções e ideias que eu supunha umas pouco variáveis e outras definitivas.
Por outro lado, eu também estava longe de pensar que, um dia, a perspectiva da dis-tância me faria sentir e ver que a minha ideia do Brasil, de alguns aspectos e fenômenos brasileiros, não tinha muita base real, concreta:
— ou era uma ideia que não se fundamentava em fatos ou se fundamentava em fatos mal interpretados, deturpados por uma visão perigosamente otimista e mesmo ufanista da realidade brasileira e de seu processo histórico;
– ou era uma ideia recebida por herança, como esses antigos e belos retratos de antepassados com a aura que os acompanha, que a família e a escola nos impõem desde cedo, por intermédio das primeiras lições de história e de cultura cívica: Era, enfim, uma ideia que tinha quase o misterioso prestígio de uma “verdade absoluta”. Melhor ainda: era uma ideia que participava da natureza do mito.
Essa visão mítica da realidade brasileira, que eu carregava em mim, não me permitia que eu objetivamente me aproximasse — ou me afastasse — da verdadeira realidade, para estudá-la e conhecê-la. Era uma fatalidade histórica, que eu e os da minha geração deveríamos aceitar sem maior exame. O máximo que se nos permitia era lamentá-la, como quem lamenta o irremediável. No que me concerne a mim, pessoalmente, a minha atitude era semelhante àquela atitude do personagem de Graciliano Ramos, em Caetés, aquele humilde intelectual de província do interior que, ao final da história, dando-se conta da ausência de supostas diferenças existentes entre ele, intelectual, e o resto da pequena comunidade alagoana, deseja concluir que, no final de contas, ele também não passa de um selvagem, de um caeté, ligeiramente polido, com uma tênue camada de verniz por fora, consequência dos 400 anos de civilização, outras raças, outros costumes. Mas, apesar desse pensamento, o narrador concluirá a sua história dizendo, com a melancolia e o desencanto de quem, por fim, começa a se conhecer a si próprio e aos outros:
“Outras raças, outros costumes, quatrocentos anos. Mas, no íntimo, um caeté. Um caeté descrente.
Descrente? Engano. Não há ninguém mais crédulo que eu. E esta exaltação, quase veneração, com que ouço falar em artistas que não conheço, filósofos que não sei se existiram.
Ateu? Não é verdade. Tenho passado a vida a criar deuses que logo morrem, ídolos que depois derrubo — uma estrela no céu, algumas mulheres na terra …”
A modificação dessa atitude constitui todo um longo e penoso processo de crise, de con-flito, a partir daquele duplo choque a que me referi ainda há pouco. Não receio empregar aqui expressões como crise e conflito, para definir um estado de espirito do qual ainda não me libertei. Para tentar traduzir fases de uma experiência que ainda não se completou, e eu espero não se complete nunca. Não sou nada original quando digo que é precisamente a noção de conflito que caracteriza a condição humana real, no mundo de hoje em dia. Sei — e de que modo sei — que não é nada fácil nem cômodo tomar consciência dessa condição, aceitar e afrontar esse estado de espírito, que é feito de inquietação e mesmo de angústia. Por outro lado também sei que esse ponto de vista contraria a perspectiva clássica e, sobretudo, vai de encontro ao ponto de vista da filosofia racionalista. Mas a minha heresia, se heresia existe, é perdoável: não sou filósofo e, muito menos, filósofo racionalista. Sou um simples e modesto professor universitário, em grande parte improvisado e autodidata, que se viu um dia, entre surpreso e amedrontado, compelido a pensar por contra própria, obrigado a dizer a sua opinião — e não a opinião de outros — sobre certos aspectos e fenômenos do seu contexto social, político e cultural. De duas uma: ou eu passava a pensar e a dizer, em lugar de repetir o que outros bem ou mal já haviam dito, — ou eu assumia atitude igual à daquele engenheiro que, tendo de construir uma estrada, e amedrontado em face da tarefa e do esforço de afrontamento com o terreno, com os rios e com os homens que deviam auxiliá-lo, se refugia na embriaguez exclusiva de seus cálculos puros, abstraindo-se do imediato, do real, do concreto.
Não ignoro que o conhecimento racional, a elaboração e o jogo de conceitos constituem elementos fundamentais do processo normal e indispensável do espirito humano. Mas, também não ignoro que o verdadeiro engenheiro será aquele que, servindo-se da álgebra e de abstrações matemáticas ainda mais ousadas, procure melhor conhecer os dados concretos da estrada que vai construir; do mesmo modo que nós, o comum dos mortais, devemos ex-trair da realidade contextual em que vivemos — e que pretendemos modificar e melhorar — os conceitos que nos ajudem a conhecer e a modificar essa realidade.
Para nós, professores universitários, é ainda mais urgente e indispensável esse constante retorno ao real, essa referência permanente e constantemente renovada aos dados imediatos do concreto. Pois essa condição concreta — essa situação existencial, para usar uma expressão em moda — é que é a nossa, por oposição à condição de anjo. E eu estou longe de cometer a injustiça de pensar que algum de nós aspire a assumir a condição de anjo.
Não sei se o primeiro em ordem cronológica, mas, seguramente, o mais grave dos meus conflitos interiores, foi o resultante do meu contato com o sistema universitário francês e as reflexões que, a partir dai, passei a fazer em torno da Universidade Brasileira.
O que de pronto e de logo me chamou a atenção foi urna espécie de febre reformista em todos os setores daquele sistema. Nos gabinetes de trabalho, nas salas de aula, nos corredores sombrios ou nos frios anfiteatros da minha veneranda Sorbonne, — onde tanto aprendi e a que tanto devo — uma pesada atmosfera de reivindicações e de reforma nunca deixou de existir desde que ali penetrei, com a minha timidez e a minha humildade de provinciano e estrangeiro. A medida em que, pouco a pouco, me adaptava a um sistema de ensino e de trabalho tão diferente do nosso — e incomparavelmente mais eficiente do que o nosso — eu ia me apercebendo do sentido e do alcance de certas reivindicações reformistas de professores e alunos. Tive a feliz oportunidade de acom-panhar de perto toda a campanha de que resultou a Reforma contida no decreto de 6 de Janeiro de 1959. Se faço referência ao fato, neste instante, não é para analisar a reforma em si mesma, mas, simplesmente, para repetir agora a pergunta que tanto me fiz, quando da minha permanência na Europa: porque em todo o mundo, se observa essa febre de reforma da Universidade? Na França, na América, na Inglaterra, em Portugal, no México, no Brasil, até mesmo na União Soviética, as sugestões ou medidas de reforma se acumulam de dia para dia, e o observador mais atento poderá se perder num emaranhado de novos decretos, regimentos e regulamentos. E tudo isso porque?
Aparentemente fácil, a resposta a essa pergunta equivaleria a uma solução para a crise da Universidade como instituição, e eu não me sinto capaz de formulá-la. Mas, isso não me impede, nem a mim nem a ninguém, de avançar hipóteses de discussão, que só análise e estudo demorado poderão confirmar ou infirmar.
A primeira dessas hipóteses seria a de que a Universidade como superestrutura social e como instituição de cúpula não tem atingido os objetivos que lhe foram propostos no mundo moderno. Talvez melhor: instituição tipicamente medieval em suas origens, nascida coma resposta a necessidades imediatas de ordem religiosa ou de Estado, a Universidade perdeu o dinamismo e o cunho de contemporaneidade de que inicialmente se revestiu, para transformar-se pouco a pouco em depositária e transmissora do “tesouro” universal. Em lugar de criar ela passou a preservar o que já estava criado. Mais ainda: em certos casos ela passou a se opor à criação de novos valores e de novas verdades, ela se recusou ao diálogo e à discussão, a fim de não comprometer o “tesouro” de que ela se tornara defensora e guardiã. Com a nova obrigação de formar uma elite baseada no mérito e no valor individuais, que substituísse aquela outra elite baseada em direitos hereditários ou outorgados como favor, ela se anacronizou na preocupação quase exclusiva de transmitir uma cultura “oficial” que, por definição mesmo, teria de desconhecer todo o progresso imediato e recusar toda a renovação de base. Aquela sua outra missão primeira, de elaborar o saber como experiência de saber, de ser uma comunidade de professores e alunos capaz de criar unia cultura contemporânea como instrumento de assimilação e domínio da realidade, essa outra missão se foi perdendo com o correr dos tempos. E de tal modo se perdeu, que chegamos ao ridículo de discutir se a pesquisa é ou não função da Universidade.
Por outro lado, e em consequência desse processo de verdadeiro esclerosamento da Universidade como instituição dinâmica resultou também, o que não é menos grave, um enorme descompasso entre os objetivos e o espirito da Universidade e a atitude do professor universitário. À antiga humildade do homem de cultura, que ele era, substituiu um academicismo por vezes pretensioso e arrogante. Vítima do próprio sistema que ajudou a estabelecer, ele não se deu conta de que, ao repetir verdades “absolutas” ao transmitir uma cultura tida como definitiva, não fazia senão proclamar a morte dessa cultura, negar essas mesmas verdades que pretendia defender como absolutas. A cultura é um processo, e as noções e os conceitos que dela derivam não servem ao homem senão como etapas da sua extraordinária aventura no domínio do conhecimento.
Tudo isso está hoje na consciência de cada professor universitário que se orgulha dessa condição. E é isso que explica a febre de reforma que grassa em todas as Universidades do mundo. Será ilusão e ingenuidade, porém, acreditar que reformas parciais ou de pormenor, como a que ocorreu na França em 1959, possam retirar a Universidade da crise em que ela se encontra. Para dar apenas um exemplo, eu cito o caso da proibição, durante um século aproximadamente, de inserir Baudelaire nos programas de ensino da França; foi só em 1959, no centenário da publicação de Flores do mal, que os tribunais franceses absolveram o grande poeta maldito e foi possível o seu nome figurar nos programas de aula e de exame. Sei do constrangimento de professores de literatura francesa a esse respeito, e entre eles tenho amigos que admiro; mas, tenho dúvida de que a esse sentimento corresponda, por coerência, uma atitude realmente renovadora em face da Universidade; como tenho dúvidas de que ele impeça a repetição do fato com um escritor do século XX.
No caso brasileiro, penso eu, os problemas são de outra natureza. Mas nem por isso me-nos graves.
E nem se diga que a ausência de uma verdadeira tradição universitária no Brasil é um dos elementos fundamentais da nossa crise. Como, de resto, se pretendeu sugerir que o atraso cultural do Brasil era devido a essa mesma ausência de tradição universitária. Nem é tão verdadeira a afirmativa, nem é verdade que somos um povo atrasado e subdesenvolvido porque cedo não tivemos Universidade. O Colégio das Artes da Bahia, no século XVI, conferiu graus e diplomou doutores, só não se transformando em Universidade por motivos políticos. Por outro lado, países como o Peru, o Chile e o México, possuíram Universidades desde muito cedo e nem por isso podem ser considerados mais adiantados do que o Brasil.
Parece-me mais certo reconhecer, em primeiro lugar, que a Universidade Brasileira, apesar dos esforços iniciais em sentido contrário, foi criada e se desenvolveu como um prolongamento do nosso ensino secundário. E isso, em grande parte, graças à Faculdade de Filosofia, como um dos elementos centrais do organismo universitário. Ninguém desconhece que sou professor de uma Faculdade de Filosofia. Acredito poder afirmar que os meus colegas e os meus ex-alunos são testemunhas do amor que tenho à minha Faculdade e da dedicação com que nela me entrego aos encargos que me são confiados. Pretendo dar provas dessa dedicação e desse amor, e do orgulho que sinto em pertencer ao corpo docente da minha Faculdade, ao indicar aqui, com o espirito da mais alta crítica construtiva, o que na Faculdade de Filosofia da Universidade Brasileira me parece mais agressivamente errado.
Não apenas o espírito que a orienta, ou a sua atitude em face da realidade brasileira, mas a sua própria concepção, trazem as marcas do nosso péssimo sistema de ensino secundário. A estrutura da instituição, a organização dos currículos, o enciclopedismo anacrônico dos programas, tudo isso faz da Faculdade de Filosofia, no Brasil, um departamento mais categorizado do sistema do ensino secundário. Nós, os professores, somos repetidores de aulas, esgotadores de programas gigantescos. A massa de leis e de artigos de regimentos, e muita vez a aligeirada e cômoda inter-pretação que deles se faz, pretende sugerir que o trabalho de professor é dar aulas, é repetir aulas. Como se nos fosse honestamente possível dar 18 aulas semanais, sem cair na mais esterilizante e estúpida das rotinas. Por outro lado, aos alunos se obriga a frequência a um interminável número de classes, à memorização de toda uma série de pontos e assuntos sem nenhuma utilidade prática ou teórica, à execução de trabalhos que pouco ou nada dizem como resultado de um labor inteligente de assimilação de cultura e de técnicas de pensamento. Para citar apenas um exemplo, tenha-se em mente o caso da secção de Letras Neolatinas, cujos alunos, ao fim de quatro anos de estudo, recebem da Faculdade a licença para lecionar, no curso secundário, seis línguas e suas respectivas literaturas.
Pior ainda, porém, é o ritmo acelerado com que atualmente brotam Faculdades de Filosofia em todo o país. Mais de 70 já existem no território nacional, e outras estão prestes a ser criadas. Algumas já foram criadas em cidades onde não havia até então o segundo ciclo do ensino secundário. Em ritmo mais lento, Faculdades outras que não a de Filosofia, e mesmo Universidades, vão aparecendo aqui e ali, em cidades sem condições normais para o funcionamento do ensino secundário.
Essa improvisação é um dos males graves da Universidade Brasileira. Até bem pouco tempo, o acesso à condição de elite se fazia normalmente pela aquisição de um título de doutor, de bacharel ou licenciado. Com esse crescimento canceroso de unidades universitárias e de Universidades o problema se agrava ainda mais. Estamos perigosamente improvisando não o formado, mas o formador. Estamos criminosamente improvisando, já não mais o que vai obter o título, mas o que vai conceder o título. É isso o gravíssimo num país, cujo vertiginoso ritmo de desenvolvimento está a exigir da sua Universidade um gigantesco esforço no sentido de aparelhar-se de moco adequado e eficiente para a formação de quadros de técnicos, de professores e de pensador de que o país tanto necessita.
Em lugar disso essa improvisação está fazendo de muitos dos nossos centros de ensino superior uma fábrica de desajustados. Desajustado o aluno, a quem o estabelecimento de ensino superior não orienta nem forma adequadamente para as tarefas da vida profissional. Desajustado o professor, a quem o sistema de ensino superior — se a ele se pode dar o nome de sistema — não permite o exercício digno e eficiente da profissão, tornando-a, em grande parte dos casos, um mero suplemento de outras atividades mais lucrativas.
Daí, em grande parte, os conflitos que se estão dia a dia multiplicando entre os estudantes, os professores e a administração das Universidades. O fenômeno já foi, aliás, registrado por um professor francês, cujo livro é uma inteligente observação da realidade brasileira. Analisando o fenômeno como uma das resultantes do nosso processo de desenvolvimento econômico, diz o professor Lambert:
“Universidades particulares ou públicas, fundadas apressadamente, estabelecimentos secundários, que são empresas lucrativas, acolhem facilmente a clientela numerosa, porque esta, fiel às tradições estabelecidas pelos Senhores, continua a procurar, sobretudo, o ensino jurídico, ou, mais recentemente, o literário, que se pode adaptar em instalações pouco dispendiosas e pode ser facilmente ministrado por professores improvisados. Estudantes ambiciosos, mal alojados e mal alimentados, ávidos por terminarem os estudos e poderem enfim ganhar a vida, esperam de seus estudos o mesmo prestígio que deles anteriormente auferia a pequena elite rica, mas esperam também os mesmos níveis de vida elevados, que essa pequena elite atinge através da sua fortuna e não dos seus diplomas.
Sem dúvida, o desenvolvimento de novas atividades e a industrialização parcial do país acarretam as necessidades de novos quadros, que justificam o aumento do número de estudantes. Não é, porém, a formação técnica que procura a maioria desses estudantes atraídos pelo prestígio das profissões liberais ou da função, e não será também a formação técnica que poderão facilmente adquirir, pois esta é muito especializada e dispendiosa para que se possa improvisá-la”.
E mais adiante prossegue o Professor Lambert
“Os estudantes, que imprudentemente se multiplicam, aspiram a transferir-se para o grupo socialmente mais alto, anteriormente constituído pela pequena aristocracia da civilização agrícola, e a beneficiar-se dos mesmos níveis de vida, sem compreender que a sua própria quantidade lhos impede e que, se os milhões de caboclos miseráveis poderiam, não sem sacrifícios, manter no luxo os milhares de privilegiados, já não o poderiam fazer senão muito dificilmente, caso estes passassem a ser centenas de milhares.
Esses estudantes muito numerosos, cujas grandes ambições pesam sobre os ombros do povo, sem que por isto deixem de ser frustradas, constituem um grupo ativo de descontentes, que, nas cidades, estão em ótima situação para observar os contrastes extremos do luxo e da miséria que custam a suportar. Mas, os processos normais do regime representativo não dão oportunidade a esses descontentes de exercer influência sobre a política, porque as massas dão os seus votos aos Senhores.
Os estudantes sentem-se, portanto, grandemente atraídos pelos movimentos revolucionários, de que são muitas vezes os instigadores e aos quais, em vista da sua cultura, podem imprimir alguma ideologia. O fomento de agitações políticas por movimentos estudantis é uma característica das estruturas sociais de transição; é o que está ocorrendo hoje em vários países em processo de industrialização e foi o que ocorreu na Europa do século XIX. As revoltas, às vezes sérias, que se originam no fato de não ter a Universidade escolhido os professores que convinham aos estudantes, de terem os transportes coletivos aumentado as tarifas, e de haverem os teatros, e hoje em dia os cinemas, suprimido os descontos concedidos aos alunos das escolas, bem como de outros motivos mais elevados e desinteressados, ocorreram, no período da indústria-lização, na França ou na Alemanha, como hoje ocorrem na Índia, no Egito ou no Brasil; procuram justificativas no nacionalismo, mas são, antes de tudo, um indício da falta de desenvolvimento econômico. É uma fase da evolução política, que termina com a educação e a organização do proletariado”.
Embora não subscreva inteiramente a interpretação do ilustre professor francês (por considerar que em alguns casos ela aplica à realidade brasileira raciocínios elaborados pela observação da realidade europeia — multiplicação imprudente de alunos, correlação fatal entre o aumento do número de estudantes e a necessidade imediata de formação de quadros técnicos, os processos normais do regime representativo funcionando como obstáculo à influência dos descontentes, etc., etc. — embora, repito, não subscreva inteiramente a interpretação do ilustre professor francês, não posso deixar de reconhecer que, no seu conjunto, ela apreende e explica certos aspectos da vida brasileira como poucos o fizeram até agora. Apesar disso, porém, estou sinceramente convencido de que, no caso brasileiro, os conflitos por ele enumerados. resultam mais de equívocos, de má colocação de problemas básicos, do que de causas profundas e irremediáveis. Penso mesmo que só uma ação conjunta de estudantes, professores e administradores poderá impedir que se agrave a crise da Universidade Brasileira. E só uma convergência dessas três forças será capaz de conduzi-1a ao encontro de si mesma, como expressão da nossa realidade e como resposta às necessidades do nosso desen-volvimento.
Acredito — e esta é uma convicção que alimento desde há muito tempo — que um pri-meiro e eficiente passo nesse sentido seria uma ampla e enérgica campanha em favor da regionalização da Universidade Brasileira. Não é este o momento para entrar nos pormenores de um projeto aparentemente tão ambicioso. Mas não é nada inoportuno lembrar aqui que o sentido regional do processo da civilização brasileira está a exigir de cada um de nós, aluno, professor ou administrador, demorada reflexão sare a necessidade de regionalização da nossa Universidade. Lembra Gilberto Freyre que “o estudo das condições sociais, ou antes, da história social brasileira, parece indicar que no Brasil, como em outras nações não menos vastas e complexas, deve permitir-se a cada um particular lealdade à sua comunidade básica: região, área ou província. Não importa que nos seus apegos transnacionais, o homem vá tão longe quanto se possa imaginar e torne-se um verdadeiro cidadão do mundo. Sua condição de membro de grupo primário local parece, ainda assim, necessária para a sua saúde pessoal e social”.
Temos tido receio de ser regionais pelo medo de sermos considerados provincianos. Sei que isso não é de estranhar, num país em que o complexo colonial determinou as atitudes de europeização mais ridículas. E de americanização as mais inqualificáveis. Raros, até bem pouco tempo, teriam a coragem que teve o mais universal e o mais brasileiro dos nossos poetas contemporâneos quando, há mais de trinta anos, escreveu:
“Quem me fez assim foi minha gente e minha terra.
e eu gosto bem de ter nascido com essa tara.
Para mim, de todas as burrices a maior é suspirar pela Europa”.
Essa recusa de alienar-se culturalmente — e desse modo e não de outro é que se deve entender os versos de Carlos Drummond de Andrade — é um exemplo a ser urgentemente seguido. Particularmente pela Universidade Brasileira. Temos, sem dúvida alguma, ainda muito que aprender com os países mais desenvolvidos. Mas daí a querer imitá-los, a querer copiar-lhes soluções que não se adequam senão aparentemente à nossa realidade problemática, há todo um abismo que já é tempo de evitar. Ou temos a coragem de ser o que somos, de assumir a nossa condição de brasileiro e transformá-la numa condição de povo desenvolvido e de cultura própria, ou continuaremos a ser essa sociedade inautêntica e alienada de que nos fala Guerreiro Ramos, “induzida a ver-se a si mesma segundo uma ótica que não é a própria, modelando-se conforme uma imagem de que não é sujeito.
“Se há um setor de atividades em que o Brasil pode orgulhar-se de não padecer de alie-nação cultural, de tê-la superado, é — e na assertiva ninguém veja qualquer laivo de uma irreverência, que não está em meus hábitos, não se coaduna com a minha formação nem com a solenidade do ambiente — o futebol. Que poderia chocar se mencionado numa Universidade de um país onde esse esporte não tivesse a expressão atuante que tem entre nós, onde não encerrasse as lições de autenticidade e afirmação que encerra. Que me perdoem os mais ortodoxos: o que reclamo é a coragem de procurarmos nossos próprios caminhos, é que nos voltemos com a maior atenção para o nosso contexto e dele aproveitemos, aprendamos, sem preocupações com uma ortodoxia que em última análise representa a consagração de padrões intocáveis. O futebol brasileiro deu-nos lições eloquentes. A primeira, a da necessidade de profissionalização em regime de dedicação exclusiva. A segunda, a da planificação da atividade, a procura de um trabalho de conjunto sem a rigidez excessiva que cerceia o talento individual. E por fim, talvez a mais importante, a afirmação de um estilo realmente brasileiro, inconfundível, ao qual sabe manter-se fiel em todos os momentos e circunstâncias.
Se isso foi e é possível ao futebol, com idênticas ou melhores razões deve ser possível a nós, Universidade Brasileira. E um dos primeiros passos nesse sentido, volto a repetir, seria a regionalização da Universidade. Ideia que alimento há tanto tempo, e que há quatro anos tive a oportunidade de debater numa conferência para estudantes brasileiros em Paris, tive agora a alegria de vê-la exposta num dos estudos de Fernando de Azevedo, onde se pode ler :
“Mas, para isto, para que as universidades se transformem a um tempo, em centros de alta especialização intelectual e científica e em focos de irradiação cultural, devem organizar-se de maneira que, servindo à conservação e ao progresso constante do saber humano, possam adaptar-se às diferenças regionais, favorecer a interação contínua dos núcleos culturais e exercer uma ação larga e intensa sare as ca-madas populares. Nada de imutável deve nela existir, nada de fixo e de parado; nada que seja suscetível de constranger a sua evolução ou de submetê-la a padrões rígidos que possam entravar-lhe o desenvolvimento ou o processo normal de adaptação às condições do tempo e aos quadros geográficos e culturais do pais. Não sendo um produto cristalizado, mas vivo, uma “obra histórica”, o que lhe poderá comprometer o sucesso é, antes de tudo, a rotina burocrática, o rigor e a estreiteza de fórmulas e o excesso de organização. Ela acompanhará o progresso do pensamento humano na medida em que a sua estrutura e os princípios que a inspiraram lhe permitirem e lhe facilitarem a seleção de novos elementos, a introdução de novas disciplinas e de novas ciências, a instituição de cursos não previstos e ainda a criação de cadeiras, em beneficio ou intenção de especialista, nacional ou estrangeiro, verdadeiramente notável em determinado setor de conhecimento e de investigação.”
E depois de enumerar exemplos estrangeiros da antiguidade e da atualidade, situando a tese no Brasil:
“A variedade de quadros geográficos e geológicos que oferecem, em certas zonas do país, extraordinários campos de exploração, no domínio das ciências naturais; as diferenças de culturas regionais que apresentam um rico acervo tradicional, como o humanismo e a arte colonial em Minas ou na Bahia, ou as tradições populares afro-índias, nesse Estado e no Nordeste; a expansão industrial de São Paulo ou as “culturas marginais” no centro-sul, podem refletir no campo universitário, dando origem a “especializações” do maior alcance científico que, diferenciando uma das outras Universidades do país, aumentarão o seu interesse e o seu poder de atração. A cultura, elaborada pelas universidades, mas achegada ao meio imediato e aos seus problemas, não seria por essa forma uma cultura “sobreposta”, mas orgânica, assimilada e recriada pelo próprio povo, neste sentido de que a criação de uma nova mentalidade resultaria não só das influências de cima para baixo, mas da permeabilidade da cultura superior às influências de toda a vida social exterior ou subjacente as grandes estruturas universitárias.”
Não sei de outra Universidade brasileira melhor indicada para iniciar uma campanha em favor da regionalização da Universidade, que esta nossa da Bahia, a cujos quadros do-centes tanto me orgulho de pertencer. Universidade pioneira em vários setores de atividades, no campo da técnica como no do humanismo — e ai estão o Curso de Geologia do Petróleo, o Laboratório de Geomorfologia, Centros de Estudo de Matemática e Física, o Laboratório de Fonética Experimental, O Museu de Arte Sacra, A Escola de Dança, a de Administração, a Escola de Teatro, os Seminários Internacio-nais de Música, o Departamento de Assistência ao Estudante que representam ativos centros de trabalho, de estudo e pesquisa em grande parte inexistentes nas outras Universidades Brasileiras — esta nossa Universidade, com os elementos de que já dispõe e com as provas de vitalidade e dinamismo que tem dado, pode e deve transformar-se numa autêntica comunidade de alunos, professores e administradores, para a elaboração e cumprimento de todo um vasto programa de estudos e pesquisas regionais que sirva de base a uma planificação do desenvolvimento regional e nacional. Os próprios conflitos de que foi teatro esta Universidade, ressalvados os excessos de falta de respeito e mesmo de pudor de que muita vez se revestiram manifestações coletivas ou relações de pessoa a pessoa — esses próprios conflitos representam a prova mais indiscutível de que esta Universidade, como nenhuma outra das que conheço, é terreno em que o diálogo e a discussão, não apenas se podem manifestar, mas podem e devem ser um dos instrumentos melhores de sua realização como instituição elaboradora de cultura.
O meu otimismo, a esse respeito, vai mesmo ao ponto de pensar que esse movimento no sentido da regionalização da Universidade de, veria ter, como um dos pontos de partida, a criação pela e dentro da Universidade da Bahia, de uma Universidade Internacional de Estudos Brasileiros, de caráter periódico na sua função docente e de caráter permanente na sua função de pesquisa e estudo da realidade brasileira. A estrutura e o funcionamento dos Institutos de Universidade, que tanto serviço prestam quando bem orientados, não poderiam, entretanto, formar o quadro ideal para o florescimento de um organismo do gênero desse que agora proponho como sugestão aos professores e alunos desta Universidade. E muito menos os Institutos de Faculdade, mais limitados que aqueles. Só mesmo a estrutura de uma Universidade Internacional poderia permitir, de um lado a assimilação de quadros culturais que por essa ou aquela razão estão fora da Universidade — e sou também otimista quanto à existência e utilização desses quadros — e, de outro lado, a execução de um programa de elaboração e permuta de conhecimentos, de que tanto carecemos.
Que me perdoem todos os que aqui vieram, pelo tempo que lhes roubei. Pelos lugares comuns que certamente aqui proferi. Pelas verdades demasiadamente conhecidas que aqui repeti. Lembro, porém, aquela minha advertência inicial, de que não vinha pronunciar uma lição, mas, pensar alto uma série de problemas. E isso era importante para mim, nessa fase inicial de retomada de contato com a minha terra, os meus amigos, a minha Universidade, aos quais quero e vou servir com o melhor do meu esforço.