Reproduzimos a seguir entrevista do integrante do Comitê central do PCB Muniz Ferreira a Gabriela Harrison e Isabel Silva, feita durante o III Forum do Pensamento Crítico, em março último, e publicada originalmente no site da Biblioteca Virtual 2 de Julho, acerca da ditadura implementada em 1964 no Brasil.
BV: Como você analisa o percurso da Ditadura Militar no estado da Bahia?
Muniz: O percurso da Ditadura Militar na Bahia foi semelhante ao ocorrido no restante do Brasil, considerando as particularidades de cada local. Exceto talvez por uma pequena nuance diferenciadora: os seus representantes no estado — forças políticas e personalidades — demoraram mais a se retirar do centro da cena política. Se relacionarmos a vigência do regime militar na Bahia aos seus grandes apoiadores ou a seus maiores beneficiários, podemos afirmar que, de certa forma, ele só acabou no ano de 2006, depois da derrota desse grupo político nas eleições para o Governo do Estado.
BV: Um golpe militar no Brasil. O quanto que isso tem de passado e o quanto poderia ter de futuro?
Muniz: De passado tem tudo, ele se inscreve no passado. Aliás, nós temos um longo histórico de golpes de Estado reacionários e de interrupções da processualidade política representativa. Isso aconteceu em 1937, no Estado Novo, que, embora não tenha sido um golpe estritamente militar ou militar institucional, como foi em 1964, instalou um regime autoritário, inclusive com traços fascistizantes. Considerando os períodos de vigência dos regimes de exceção, fortemente conservadores e antipopulares na história republicana do Brasil, perceberemos que, na maior parte do tempo, a sociedade brasileira, lamentavelmente, viveu sob governos de força.
Quanto ao futuro, é impossível prever. Penso que a humanidade não tem tido muito sucesso ao prever futuro. De todo modo, é preciso ter claro que as coisas não se repetem como já ocorreram, o Golpe de 64, por exemplo, não foi uma reprodução do Golpe do Estado Novo e, certamente, se tivermos a infelicidade de viver uma nova involução política, autoritária, reacionária e conservadora, não será exatamente como há cinquenta anos.
Hoje em dia, a forma através da qual são dados os golpes de Estado é diferente daquelas tão comuns até os anos 60 e 70 do século passado, como aconteceu no Brasil e em partes da América do Sul e Central. Existem novas modalidades, de certa forma mais artificiosas, como ocorreu recentemente na Costa Rica e no Paraguai, com outros arranjos, ações e artimanhas, que levam à destituição de governos considerados inconvenientes, sobretudo pelas classes dominantes e círculos dirigentes da sociedade, que os substitui, preservando uma certa aparência de legalidade.
BV: O que explica a presença do sentimento saudosista da ditadura militar em setores da sociedade?
Muniz: O que a ditadura representou? A ditadura foi um regime autocrático, voltado fundamentalmente contra as massas populares que se organizavam e se mobilizavam para transformar a sociedade brasileira. Qualquer tentativa de idealizá-lo como um regime que instaurou progresso, prosperidade, avanços e segurança é uma balela. Ele beneficiou uma parcela muito restrita da sociedade, as classes dominantes e alguns setores médios, mas foi uma infelicidade para a maioria do povo brasileiro, justamente porque interrompeu o processo de lutas, conquistas e avanços, que vinham acontecendo. Nostálgicos em relação ao Golpe de 64 são os que desejam o retorno daquela situação, em uma conjuntura, como temos visto, na qual voltam a ocorrer mobilizações populares e em que diferentes setores da sociedade começam a se organizar pra reivindicar seus direitos, obtendo mesmo algumas conquistas.
Este, porém, não é o discurso deles. O discurso da direita, sobretudo da direita fascista, e dos setores conservadores é caracterizado pela ênfase na ideia de ordem sobre a ideia de liberdade; a ênfase na ideia de hierarquia, sobre a ideia de representação, mais ainda, sobre a ideia de participação política. Os seus articuladores se sentem atemorizados pela mobilização, organização e luta travada pelos setores subalternos da sociedade, ou por terem mentalidade conservadora, ou por terem interesses sociais e de classe a defender, desta forma almejando a volta de um regime que restabeleça a ordem. É só assim que posso interpretar.
BV: Você considera que existem influências das manifestações populares que estão ocorrendo mundo afora para o ressurgimento da Marcha da Família considerando o contexto dos 50 anos do Golpe Militar?
Muniz: Em 2013, aqui no Brasil, observei que setores reacionários de extrema direita passaram a ir às ruas, na medida em que as manifestações populares iam se sucedendo, para disputar espaço. Porque isso? Porque esses setores encontram a expressão dos seus interesses sociais no discurso de parte da grande imprensa e de algumas lideranças religiosas conservadoras. Sem muita visibilidade na sociedade, nem mesmo do ponto de vista eleitoral ou institucional, eles viram nessa transferência do debate político para as ruas uma oportunidade de ficarem em evidência, em outras palavras, eles queriam pegar carona nas mobilizações populares. Pode-se dizer que até conseguiram algum êxito, ainda que limitado, mas quando se organizaram independentemente, tentando ressuscitar as famosas Marchas com Deus pela Família de 1964, para ir às ruas reivindicar aquilo que desejam realmente — a volta de um regime autoritário, de direita e reacionário — fracassaram.
Das manifestações marcadas, a mais concorrida, segundo algumas informações, reuniu 200 pessoas, em certos lugares não chegou a uma dezena de manifestantes. Fica óbvio que o regime que eles querem beneficia um número muito pequeno de pessoas: as classes dirigentes e alguns setores das camadas médias. Mesmo essas classes dirigentes e esses setores das camadas médias, excetuando os seus círculos mais conservadores, não têm motivos para se sentirem muito insatisfeitos no Brasil de hoje, continuam tendo, do ponto de vista econômico-social, os seus interesses perfeitamente contemplados na orientação seguida pelos governos vigentes, então porque que eles se mobilizariam? Esses ultrarreacionários que têm pelo conservadorismo e autoritarismo uma devoção quase religiosa — leitores de certos escribas que hoje em dia publicam livros aos borbotões e até figuram na lista dos mais vendidos — ainda são uma minora insignificante no conjunto da sociedade brasileira, embora possam crescer se continuarem a receber o apoio de determinados setores da mídia coorporativa.
Considerando que o sistema de comunicações no Brasil é terrivelmente concentrado, monopolizado e cartelizado, eles podem, pela insistência, aumentar o apoio entre os setores mais conservadores ou conseguir mobilizar, por ignorância, setores limitados das classes populares. Fora isto, não acredito que o apelo das suas reinvindicações tenham grande horizonte.
BV: Na Venezuela, Honduras, Equador e Paraguai, nos últimos anos, a palavra “golpe” continuou repercutindo na política. Contudo, não é mais necessariamente com o militar e o tanque na rua. Existem novas possibilidades de golpe na América Latina?
Muniz: Existem esses golpes institucionais, como por exemplo, o que aconteceu no Paraguai e em Honduras, cujos presidentes foram submetidos a um processo de destituição sumaríssimo e extremamente arbitrário. Um processo fundamentado na manipulação da interpretação de determinados dispositivos da própria constituição. Comparando ao que aconteceu no Brasil, o impeachment de Collor de Mello foi um processo que se arrastou por quase dois anos, com direito de defesa, debate parlamentar, um afastamento primeiro transitório, para depois tornar-se definitivo. Foi seguida uma série de regras e observados os procedimentos institucionais de modo a garantir o pleno direito de defesa. Em Honduras e no Paraguai não se observou esse procedimento, não houve garantia de direitos e por isso caracteriza-se como golpe. Isso pode acontecer, caso haja uma conjuntura favorável com o apoio de certos setores da população e com uma campanha acirrada da mídia.
Se lembrarmos, por exemplo, o que aconteceu no Golpe do Chile, simplesmente os grandes proprietários rurais e industriais, com o apoio inclusive do Departamento de Estado Norte Americano, subornavam os caminhoneiros para que não abastecessem as cidades, visando criar um clima de insatisfação generalizada. Mesmo que o indivíduo não tenha um motivo ideológico ou político para querer a destituição do governo, no momento que não consegue comprar comida porque os alimentos não estão chegando ao mercado, ele culpa o governo e se coloca contra.
Eu participei de ações de solidariedade internacional na Nicarágua na década de 1980, ali o imperialismo aliado às forças reacionárias fomentou uma guerra civil a fim de desestabilizar o governo sandinista. O conflito comprometeu grande parte do orçamento com defesa, impossibilitando o investimento em melhoria das condições sociais. O desgaste provocado por esta estratégia fez boa parte da população perder o interesse na preservação daquele governo. Então, a combinação de uma manobra institucional artificiosa e um contexto de perturbação econômica com forte implicação entre os setores da sociedade pode criar uma situação de insatisfação generalizada que possibilite a realização de um golpe de estado. Guardada as diferenças, acabamos de presenciar na Ucrânia algo parecido com isso.
BV: Outra data importante que temos este ano são os 25 anos da anistia promulgada por Figueiredo, já no período de início da flexibilização do regime, como você encara este processo? E qual o reflexo desta lei na atualidade?
Muniz: A anistia política se deu no contexto de decadência do regime militar e foi um dos instrumentos que fez avançar o processo da transição democrática. Essa consideração atribui à sua conquista, naquele momento, um valor inequivocamente positivo. Por outro lado, a correlação de forças que existia na sociedade permitiu que os militares aprovassem uma lei que, além de anistiar os condenados por um regime espúrio, discricionário e ilegítimo, anistiou também os praticantes de delitos realizados em seu nome, ou seja, a Ditadura, na verdade, se absolveu com aquela lei. Posteriormente, o Estado brasileiro aderiu a convenções, tratados e acordos internacionais, que consideram os crimes praticados pelos seus agentes como delitos imprescritíveis, crimes contra os direitos humanos, atos classificados como terrorismo de Estado. Cabe ressaltar que, recentemente, o Superior Tribunal Federal confirmou essa Lei de Anistia, de certa forma, dificultando sua revogação. Então o cenário é esse, por um lado se verificava o declínio do regime militar que, impossibilitado de converter o processo de transição democrática em um processo de autorreforma, tornou-se, ele próprio, um agente da transição, e por outro lado impuseram essa lei de anistia: um presente dado pelo regime militar aos agentes que praticaram os piores crimes no período de sua vigência.
BV: Como você compara a política externa que foi vigente durante o período militar e a politica externa atual?
Muniz: A política externa praticada pelos militares ao longo dos 21 anos de vigência do seu regime conheceu pelo menos cinco fases sucessivas. Uma fase de fronteiras ideológicas e ciclos concêntricos, que preconizava um alinhamento praticamente incondicional com os Estados Unidos, combinado a uma tentativa, por parte do Brasil, de exercer uma posição de liderança e de certo subimperialismo em relação a seus vizinhos sul-americanos. A fase em que vigorou a chamada política externa da prosperidade, na qual o governo brasileiro, ainda na época do presidente Costa e Silva, começou a vislumbrar outras possibilidades de ganho econômico para o país, afastando-se um pouco da rigidez desse quadro das fronteiras ideológicas, da subordinação da política externa brasileira e das demandas da guerra fria.
Há o momento seguinte que é chamada política externa de interesse nacional, já durante o governo Médici, a qual aprofunda a noção de que o Brasil deve priorizar, na formulação da representação de sua política externa, o interesse nacional, ou seja, a projeção e o desenvolvimento do país, invés de sua contribuição para o esforço de defesa do ocidente nos marcos da guerra fria. Na ditadura Geisel houve a política externa do pragmatismo responsável e ecumênico, na qual o governo brasileiro se dispõe a ampliar sua interação internacional, incluindo até países que seguiam regimes de ideologias de esquerda, desde que trouxessem dividendos econômicos e, por fim, no período Figueiredo, a chamada política externa do universalismo, que abandonava definitivamente considerações de ordem ideológica impedientes do estabelecimento de relações vantajosas para o Brasil com quaisquer estados do mundo, desde que isto não confrontasse tão abertamente os desígnios estadunidenses, como no caso de Cuba.
Então, os militares praticaram uma política externa que evoluiu de uma perspectiva propriamente militar para uma perspectiva mais diplomática, que apostava mais nas interações econômicas, na realização do interesse nacional pela via do intercâmbio e cooperação econômicos, do que na preservação de uma concepção geopolítica de poder baseada, por exemplo, na vinculação aos Estados Unidos ou no exercício de uma função subimperialista em relação aos vizinhos da América do Sul.
A política externa que se pratica hoje, para mim, tem como elemento definidor fundamental a diplomacia econômica. O Brasil mantém relações bastante amplas com diferentes países do mundo, relações muitas vezes apresentadas propagandisticamente como a identificação do Brasil com experiências políticas de caráter progressista, mas que, no fundo, representam interesses econômicos, oportunidades de bons negócios. Vejamos os casos da Bolívia, Venezuela, Cuba e do continente africano: o Brasil tem a oportunidade de realizar bons negócios com a Venezuela no setor do petróleo, com a Bolívia com a questão do gás, na África através da atividade das empreiteiras, em Cuba com a ampliação de portos, etc..
Então os interesses empresariais continuam presidindo as opções adotadas pela política externa brasileira, os interesses dos grandes monopólios econômicos, os quais efetivamente participam dessas interações. Embora, haja mais rupturas entre a política externa atual e a praticada pelos governos militares do que continuidade, a nova política continua orientada pelos interesses dos mesmos setores sociais, não é uma política voltada para atender as demandas das grandes massas populares.