“A irrupção inesperada de grandes manifestações populares em junho passado reascendeu o clássico debate sobre o relacionamento entre ação política espontânea e ação política planejada.” Em artigo que começa com a apresentação desse debate, o militante do PCB Golbery Lessa retrata conflitos vividos nas manifestações populares que tomaram as ruas do país.
“A irrupção inesperada de grandes manifestações populares em junho passado reascendeu o clássico debate sobre o relacionamento entre ação política espontânea e ação política planejada. As análises dos protestos efetuadas no calor da hora tenderam a contornar importantes referências teóricas em benefício de um tratamento mais empírico dos fatos. Um dos principais elementos tratados de modo insatisfatório foi o nexo entre a dinâmica da subjetividade individual numa mobilização coletiva, o comportamento do senso comum nas revoltas populares e seu contato direto e indireto como os polos de direção consciente. Para avançar na compreensão das Jornadas de Junho, seria importante não esquecermos uma lição clássica: a espontaneidade política coletiva consiste apenas na falta de planejamento sistemático das ações e na inexistência de uma vanguarda legitimada pela base, não é a ausência de processualidade subjetiva coerente e nem isolamento ideológico do grupo mobilizado da totalidade social.
Quando segmentos importantes entre os manifestantes rejeitaram as organizações de esquerda localizadas na oposição, estavam negando a fonte da maior parte das ideias contestatórias do status quo que eles mesmos estavam levando à rua. A maioria dessas ideias originou-se na esquerda da opinião pública nacional, que tem as organizações políticas referidas como suas expressões práticas mais relevantes. Várias palavras de ordem explicitadas, como o Passe Livre e a Tarifa Zero, foram sendo construídas e difundidas ao longo da última década e outras, como a defesa do Sistema Único de Saúde (SUS) e mais verbas para a educação, são ainda mais antigas. As citadas propostas para o transporte público são claramente contrárias aos valores e às propostas neoliberais, apontam de modo contundente para a “desmercantilização” do acesso aos bens públicos.
As Jornadas de Junho não surgiram como um raio num dia de céu azul, resultaram da mudança de hegemonia no interior de uma consciência popular disputada pelo discurso da esquerda (tendo seus principais núcleos na Universidade, nos partidos marxistas e nas redes sociais), pela narrativa da direita e pela propaganda dos governos municipais, estaduais e federal. Em junho, a balança começou a pender abruptamente para a esquerda, deixando os defensores da Ordem sem chão. Entretanto, a hegemonia neoliberal anterior tinha inibido o avanço nacional e o enraizamento entre o povo dos partidos e outras organizações políticas de esquerda, o que gerou um desencontro entre o aumento da consciência crítica das massas e a sua forma de explicitação política. O desprezo ao sistema eleitoral vigente virou recusa de toda representação. A defesa da horizontalidade e a crítica ao neoliberalismo tornaram-se individualismo e fragmentação. Naquelas circunstâncias, não poderia ter sido diferente. O povo não conseguiria improvisar em semanas uma organização política nacional e um programa legitimado pela maioria para a superação do status quo.
Na última semana, o embate sangrento entre Exército e Irmandade Muçulmana no Egito ilumina aspectos importantes das Jornadas de Junho no Brasil. A crise econômica, social e política daquele país alçou ao poder as duas únicas instituições com capilaridade nacional, apoio internacional e suficiente unidade de ação. O grave impasse egípcio reside no fato de que nenhuma das duas instituições é democrática, anti-imperialista e anticapitalista. No Egito há, na presente conjuntura, a ausência de uma alternativa política libertária para os impasses da sociedade. As Jornadas de Junho demonstraram uma situação análoga no Brasil. A deslegitimação das organizações sustentadoras do status quo (como o movimento sindical pelego, os movimentos sociais cooptados e os grandes partidos políticos) não encontrou organizações políticas de esquerda suficientemente fortes, nacionalmente estabelecidas e suficientemente conhecidas pela população. Nessas circunstâncias, o povo ficou à mercê da propaganda da mídia e dispersou-se por falta de um programa, coordenação nacional de suas ações e unificação das palavras de ordem.
É impossível recolocar o gênio popular dentro da garrafa. A consciência do povo adernou à esquerda e debate-se política avidamente em todos os ambientes. A inflação, as dívidas e a mercantilização dos bens públicos continuam a corroer o poder de compra dos trabalhadores e a crise de representação não foi superada, pois a maioria dos sindicatos e movimentos sociais continuam se negando a expressar a indignação popular com as medidas neoliberais dos governos. Portanto, novas jornadas de protesto no Brasil são tão certas quanto a existência das pirâmides da Gizé. Para evitar o mesmo impasse egípcio, é necessário investir todas as forças no rápido e sólido desenvolvimento das instituições políticas críticas ao status quo brasileiro.”