“Caetanices”, em bela homenagem

O militante do PCB Felipe Oiticica comenta, nesse artigo, a canção “Um comunista”, que Caetano Veloso incluiu em seu mais novo álbum sobre o revolucionário Carlos Marighella.

A quem ainda não ouviu, recomendo uma canção incluída no último disco do grande compositor, letrista e intérprete Caetano Veloso, intitulada “Um Comunista”, na qual ele presta uma homenagem, tardia mas sincera, a Carlos Marighella. O link para o Youtube é este: http://www.youtube.com/watch?v=84fbY0T1sSY

Como é importante ouvir seguindo a letra, ela está no final deste artigo.

Formalmente, a música é de primeira qualidade. É uma espécie de litania (ladainha), em que a repetição exaustiva do motivo melódico realça extraordinariamente os versos e sua intenção. Tal técnica já foi usada muitas outras vezes. Por exemplo, em “Pra não Dizer que não Falei de Flores”, de Geraldo Vandré (a conhecidíssima “Caminhando e Cantando …”) e a menos conhecida “A Working Class Hero” (Um herói da Classe Operária), do John Lennon pós Beatles. Caetano, em “Um Comunista”, usa a técnica, mas com muito mais riqueza melódica e harmônica.

É surpreendente – num sentido positivo – que Caetano tenha composto uma canção como esta. Porque ele jamais demonstrou simpatia para com os comunistas. No caso, a homenagem é a um revolucionário que admirava provavelmente a partir de uma posição romântica. Mas, de qualquer maneira, há trechos que emocionam a todos nós, pelo reconhecimento que faz de determinadas características nossas.

Refiro-me aos seguintes trechos da letra:

“… foi aprendendo a ler / olhando o mundo à volta / e prestando atenção / no que não estava à vista / assim nasce um comunista …”;

“… os comunistas guardavam sonhos / os comunistas / os comunistas …” (trecho repetido várias vezes ao final da gravação);

“… sempre foi perseguido / nas minúcias das pistas / como são os comunistas …”

“… vida sem utopia / não entendo que exista / assim fala um comunista …”

Surpreende também que ele cite, como um dos que prenderam Marighella, o Antônio Carlos Magalhães – tendo em vista que sempre que teve oportunidade louvou o falecido senhor feudal da política baiana. Coisa que, por sinal, muitos outros faziam – inclusive o também falecido Jorge Amado.

Mas como nada é perfeito, Caetano comete dois erros crassos de avaliação – salvo se não se tratar de erros de avaliação, e sim de uma espécie de compensação política pela homenagem a Marighella e pelas frases de reconhecimento aos comunistas.

Um deles está contido no trecho “… as nações terror / que o comunismo urdia …”. Ora, que nações seriam essas? Não me consta que as nações em que o socialismo chegou a ser implantado exportassem “terrorismo”. Com certeza, por sua perspectiva internacionalista e pelo dever de levá-la à prática, apoiavam de diversas maneiras as lutas de libertação de outros povos. Daí a chamá-las de “nações terror” vai a distância exata entre uma afirmação coerente politicamente e uma simples “caetanice” (no pior sentido).

O outro erro aparece em “… o mulato baiano já não obedecia / às ordens de interesse / que vinham de Moscou …”. Claro que ele aqui se refere à ruptura de Marighella com a posição adotada pelo PCB de luta de massas contra a Ditadura, e sua adesão à luta armada. Entretanto, a ideia de que a estratégia àquela altura proposta pelo PCB fosse mero seguidismo das posições de grande potência da URSS (que de fato existiam) é um equívoco grave.

A posição de recusa da luta armada era claramente majoritária no interior do PCB. Não só pela compreensão de que ela não tinha – por todos os motivos – a menor condição de ser vitoriosa, mas também porque fortaleceria indiretamente o regime, que facilmente isolaria e estigmatizaria os grupos armados. O que de fato ocorreu.

O afastamento de inúmeros bravos camaradas para o caminho da luta armada é questão que não está mais em causa, pois a História nos deu razão. Apenas, o Caetano incorreu nos velhos erros de considerar que não tínhamos vontade própria, de que éramos meros “teleguiados” de Moscou. Com o adendo de que nem em todos os casos a URSS foi contra a luta armada. Há vários exemplos de apoio militante dos soviéticos a lutas de libertação nacional e a levantamentos armados contra governos opressores.

Parece que o genial compositor, letrista e intérprete baiano “deu uma no cravo e outra na ferradura”. Em sua nova canção, ele elogia os comunistas numa perspectiva idealista, mas os critica no concreto. Totalmente Caetano, afinal.

A letra da canção:

Um Comunista (Caetano Veloso)

Um mulato baiano,

muito alto e mulato, filho de um italiano e de uma preta huça,

foi aprendendo a ler

olhando mundo à volta e prestando atenção no que não estava a vista; assim nasce um comunista …

Um mulato baiano

que morreu em São Paulo, baleado por homens do poder militar, nas feições que ganhou em solo americano, a dita guerra fria, Roma, França e Bahia …

Os comunistas guardavam sonhos

Os comunistas! Os comunistas!

O mulato baiano, mini e manual

do guerrilheiro urbano que foi preso por Vargas, depois por Magalhães, por fim pelos milicos, sempre foi perseguido nas minúcias das pistas, como são os comunistas …

Não que os seus inimigos

estivessem lutando contra as nações terror que o comunismo urdia,

mas por vãos interesses

de poder e dinheiro, quase sempre por menos, quase nunca por mais …

Os comunistas guardavam sonhos

Os comunistas! Os comunistas!

O baiano morreu,

eu estava no exílio, e mandei um recado: – eu que tinha morrido e que ele estava vivo,

mas ninguém entendia,

“vida sem utopia não entendo que exista”: assim fala um comunista …

Porém, a raça humana

segue trágica, sempre, indecodificável, tédio, horror, maravilha …

Ó, mulato baiano,

samba o reverencia, muito embora não creia em violência e guerrilha tédio, horror e maravilha …

Calçadões encardidos,

multidões apodrecem, há um abismo entre homens e homens, o horror …

quem e como fará

com que a terra se acenda? E desate seus nós, discutindo-se Clara, Iemanjá, Maria, Iara, Iansã, Catijaçara?

O mulato baiano já não obedecia

às ordens de interesse

que vinham de Moscou,

era luta romântica era luz e era treva, feita de maravilha, de tédio e de horror …

Os comunistas guardavam sonhos

Os comunistas! Os comunistas!

(várias vezes)