Valéria Guimarães
Cassado desde 1928, o Partido Comunista do Brasil (PCB) voltou à legalidade em 1945. A alegria durou pouco — dois anos depois, cairia, novamente, na clandestinidade —, mas foi o bastante para o PCB montar uma grande estrutura e viver seu período áureo. Tornou-se um grande reduto de intelectuais, explorou ao máximo o carisma de Luiz Carlos Prestes, teve jornais e editoras. Para se aproximar ainda mais das “camadas populares”, adotou uma parceria estratégica com o samba. Sacudindo a poeira de anos de clandestinidade, o PCB ficou íntimo dos sambistas e das agremiações carnavalescas. Prova disso é que esteve bem perto de organizar o carnaval carioca de 1947.
Em viagem pela União Soviética no final de 1957, Mário Lago visitou a Rádio de Moscou. Diante do que viu, não pensou duas vezes: “Olha, eu só tenho esperança de que, se algum dia o Partido Comunista tomar o poder no Brasil, não faça o rádio que os camaradas estão fazendo. Vai ser uma chatice e ninguém vai ligar o rádio!” O relato está no livro Mário Lago: Boemia e política, da historiadora Mônica Veloso, publicado pela Fundação Getúlio Vargas em 1997. Militante e boêmio, Lago era um crítico contumaz do trabalho de propaganda política do partido e da postura ortodoxa dos “camaradas” que renunciavam à vida social em nome da causa comunista. Para ele, não fazia sentido ser militante 24 horas por dia. “Você não pode abrir mão de sua individualidade. Você é um militante naquele momento. Está cumprindo uma tarefa, fazendo uma reunião, está estudando uma coisa. Agora, você continua sendo o homem comum que trabalha numa loja, trabalha numa fábrica, e quando sai do trabalho vai ver o seu futebol, vai se divertir.” Para o compositor, ator e escritor, vida social e militância política nunca foram incompatíveis. Conversas de botequim poderiam ser uma eficiente propaganda partidária. Falar a linguagem do povo e “ser igual a qualquer um” era a senha para conquistar as massas populares para o partido.
Difícil, para muitos intelectuais do PCB, era conseguir adaptar discurso e prática às circunstâncias. Em correspondência a seu filho Júnior Ramos, encontrada no Arquivo Graciliano Ramos, do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, o romancista alagoano escrevia sobre as dificuldades de lidar com as camadas populares em um comício realizado no Rio de Janeiro, em 1945: “Talvez metade do auditório fosse formado pelas escolas de samba. (…) Deus me deu uma figura lastimosa, desagradável, cheia de espinhos. Resolvi não fazer ao público nenhuma concessão: escrevi na minha prosa ordinária, que, se não é natural, pois a linguagem escrita não pode ser natural, me parece compreensível. (…) Decidi, pois, falar num discurso como falo nos livros. Iriam entender-me?”.
Os intelectuais no PCB
Cassado desde 1928, o PCB volta à cena política em 1945, permanecendo na legalidade até 1947. Tempo suficiente para montar uma grande estrutura e conhecer o período áureo de sua história. De cerca de dois mil militantes no final dos anos 20, o PCB passa a contar com 200 mil filiados. Mesmo com pouco tempo para a campanha, o desconhecido Yedo Fiúza, lançado pelo partido para concorrer à presidência da República em 1945, obtém a marca expressiva de 10% dos votos. O partido elegeu 14 deputados federais e fez de Luiz Carlos Prestes seu representante no Senado. A crescente popularidade do PCB rendeu-lhe grandes resultados nas eleições para prefeitos e vereadores de 1947, formando a maior bancada do Distrito Federal.
Diversos fatores motivaram a entrada em massa de intelectuais e do operariado no partido. Entre eles, a campanha vitoriosa da União Soviética no combate às forças do Eixo; a volta do PCB à legalidade num cenário de relativa distensão política, caracterizada pela democratização de 1945; e o prestígio de Luiz Carlos Prestes, no partido desde a década de 1930. Jorge Amado, Graciliano Ramos, Monteiro Lobato, Edison Carneiro, Cândido Portinari, Dorival Caymmi, Procópio Ferreira, Nélson Pereira dos Santos, Oscar Niemeyer, o maestro Francisco Mignone, o jornalista Pedro Mota Lima, o cronista Alvaro Moreyra, o pianista Arnaldo Estrela e o cientista Mário Schenberg faziam parte do respeitável grupo de intelectuais filiados ao PCB.
Os intelectuais e os artistas do PCB colocavam em prática a política cultural do partido, baseada no realismo socialista, modelo estético stalinista que chegou ao Brasil na segunda metade dos anos 40. A produção de uma arte “genuinamente” proletária era um dos principais instrumentos de educação política das massas. Cabia aos intelectuais do partido alfabetizar os “camaradas” iletrados e ministrar “aulas de conhecimentos gerais”, além de esclarecer pontos fundamentais da teoria marxista-leninista. Teatro, cinema, cartazes, exposições, conferências, poemas: todos os recursos materiais e humanos disponíveis eram utilizados a serviço da causa comunista.
Dispondo de uma estrutura bastante razoável, a imprensa comunista nos anos 1945-1947 cresceu vertiginosamente. O partido contava com diversos jornais e revistas, além de duas editoras, o que deu um grande impulso ao trabalho de divulgação do comunismo no Brasil. Voltado para as massas, o diário comunista, Tribuna Popular, de circulação nacional, chegou a tiragens de 50 mil exemplares. Veiculava notícias das agências comunistas internacionais, publicava matérias sobre o movimento operário e a luta camponesa, mas também dava substancial espaço para o entretenimento, visto como um importante instrumento de educação política das massas. Falava-se de cinema, teatro, esportes (com destaque para o futebol), música, notas sociais, fofocas sobre políticos e personalidades em evidência. Os anunciantes, em muitos casos, buscavam uma associação entre os produtos e a linha política do partido, como no caso do “Sabão Russo – contra erupções, espinhas e panos” ou dos perfumes Cavaleiro da Esperança. Na compra dos perfumes por atacado, o consumidor era contemplado com folhinhas com retrato de toda a bancada comunista na Constituinte de 1946.
A foice e o pandeiro
O samba, reconhecido nos anos 1940 como uma das maiores formas de expressão artística popular, fruto de um complexo processo que Hermano Vianna chamou de “mistério do samba”, também foi privilegiado pelos comunistas. É amplo o espaço dedicado ao mundo do samba na Tribuna Popular. As colunas “O Povo se Diverte” e “O Samba na Cidade” eram publicadas com regularidade. Notas sobre a agenda e os preparativos dos bailes carnavalescos, cartas de leitores sobre o carnaval, homenagens feitas pelas agremiações carnavalescas à Tribuna Popular, divulgação dos assuntos de interesse da União Geral das Escolas de Samba (UGES) faziam do jornal comunista um espaço de participação e representação do mundo do samba. Um forte vínculo ideológico estabelecia-se entre a UGES e o Partido Comunista.
As escolas de samba eram vistas pelo PCB como organismos de concentração das camadas populares e tiveram um importante papel na estratégia de comunicação com o operariado, fiel freqüentador dos grêmios recreativos, uma de suas raras opções de lazer. Por caminhos diversos, como visitas às quadras das escolas, realização de festas eleitorais, nas quais as escolas de samba eram as principais atrações, promoção de torneios de futebol com exibição das escolas de samba e visitas de sambistas à sede da redação da Tribuna, o Partido Comunista se aproximava das camadas populares. Na verdade, havia uma negociação recíproca: a aproximação com os comunistas no período da legalidade também aumentava a credibilidade do mundo do samba junto à sociedade.
Em novembro de 1946, no campo de São Cristóvão, o PCB organizou um desfile em homenagem a Luiz Carlos Prestes, do qual participaram 22 escolas. A maioria dos enredos exaltava o Cavaleiro da Esperança. Diversos intelectuais comunistas faziam parte do corpo de jurados. Paulo da Portela, eleito Cidadão Samba em 1937, um sambista respeitado por sua luta pela aceitação social do samba do subúrbio, também fazia parte do júri. Sagrou-se campeã a escola de samba Prazer da Serrinha. O samba “Cavaleiro da Esperança”, da escola Lira do Amor, de Lourival Ramos e Orlando Gagliastro, recebeu um prêmio especial, não previsto no concurso: “Prestes!/ O Cavaleiro da Esperança/ Um homem que pelo pequeno relutou/ Seu nome foi bem disputado dentro das urnas/ Oh! Carlos Prestes/ Foi bem merecida a cadeira de sena-dor/ Passou dez anos encarcerado/ Comeu o pão que o diabo amassou/ Oh! Prestes.”
Carnaval e eleições de 1947
Percebendo o sucesso junto ao mundo do samba, os comunistas buscam estreitar ainda mais a aproximação com as agremiações carnavalescas. Era comum, quase uma regra, que um jornal organizasse os festejos carnavalescos. Em 1947, foi a vez de a Tribuna Popular pleitear o direito de organizar o carnaval.
O primeiro bimestre daquele ano seria bastante agitado para os comunistas: eleições para a Câmara dos Vereadores, em janeiro, e promoção do carnaval. A campanha eleitoral, bastante lúdica, como reivindicava Mário Lago, utilizava em abundância versões de conhecidas marchinhas populares. “Mamãe, não quero”, do comunista Jararaca (da famosa dupla caipira Jararaca e Ratinho), que seria eleito vereador, era uma das mais famosas:
“Mamãe, não quero/ Mamãe, não quero/ Mamãe, não quero mais mamar/ Eu já estou grande/ Quero saber em quem é que eu vou votar/ Vota meu filho/ Que és moço e és viril/ Vota pra grandeza e pro progresso do Brasil/ Vota com cuidado/ com cuidado vota/ Dá o teu voto/ A um sincero patriota!/ Não vota, meu filho/ Não crê na marmelada/ Dos que prometem tudo/ E no fim não fazem nada/ Vota com cuidado/ Olhe bem a lista/ Escolha os candidatos do Partido Comunista.”
A tradicional eleição para Embaixador e Embaixatriz do Samba, no ano de 1947, foi organizada pela Tribuna Popular. Um ensaio para um outro pleito do qual o mundo do samba, dentro de poucos dias, não poderia se furtar: as eleições de 19 de janeiro, votando nos candidatos do Partido Comunista. A 15 de janeiro, lia-se na Tribuna: “Doraci de Assis conquista o primeiro lugar. A candidata do Prazer da Serrinha é seguida de perto por Tereza Lima e Luciana Batista. João Amazonas, Pedro Mota Lima e Vespasiano Luz, candidatos da Chapa Popular que os sambistas levarão ao Senado e ao Conselho Municipal, assistiram à apuração”.
Retorno autoritário
Os planos de organizar os preparativos para o carnaval de 1947, conhecido como Carnaval da Vitória, em alusão à vitória sobre o nazi-fascismo, foram frustrados. Embora se diga que os anos 1945-1964 foram marcados pela democratização no país, permanecia ainda um forte traço autoritário, expresso na repressão da “polícia especial” às manifestações dos trabalhadores; na manutenção da censura; na cassação do PCB, em 1947; e na suspensão dos mandatos dos comunistas, em janeiro do ano seguinte.
O PCB, mais uma vez, cairia na clandestinidade. Para diminuir a influência do partido junto às escolas de samba, foi criada uma nova entidade representativa, a Federação Brasileira das Escolas de Samba, que passou a receber a subvenção oficial e a atrair diversas escolas filiadas à União Geral das Escolas de Samba, que foi sendo esvaziada.
Acusadas de “subversão”, várias escolas de samba foram investigadas pela polícia política. Constam nos arquivos do Dops documentos relativos à “infiltração” de “elementos comunistas” nas escolas de samba, em pleno período de democratização. “Recomendava-se” a substituição desses componentes, sob pena de cassação das licenças de funcionamento. Durante a ditadura militar, a produção de documentos referentes à “subversão” nas escolas de samba aumenta consideravelmente. A documentação estende-se até o ano de 1983, quando a Unidos de Vila Isabel comemorava o aniversário de 85 anos de Luiz Carlos Prestes.
Longe de ser encarado como uma forma de alienação popular, o samba, para os comunistas, foi fundamental para o contato com o operariado. O estreitamento dos laços entre o PCB e as escolas de samba, na segunda metade dos anos 40, consolidou uma parceria bastante sólida. Mesmo durante o novo período de ilegalidade, que se inicia em 1948, a parceria PCB/mundo do samba não se dissolveu. Ao contrário, ganhou novo fôlego com o interesse de setores da classe média, especialmente estudantes universitários e classe artística, que buscavam abrir caminho para a participação das camadas populares nas lutas sociais.
Em 1998, Luiz Carlos Prestes foi louvado na avenida pela Acadêmicos do Grande Rio. Dessa vez, não num desfile promovido pelo partido, mas com todo o aparato que cerca o carnaval carioca da atualidade, no desfile oficial. Sinal dos tempos.
Valéria Lima Guimarães é historiadora e mestre em história social pela UFRJ. Artigo originalmente publicado na revista Veredas do Centro Cultural Banco do Brasil.