Por Allan Brasil de Freitas
Introdução
É célebre a frase dos anos 1920, atribuída a Lenin por Lunatcharsky, de que “o cinema é a mais importante das artes”. Não faltaram, durante as décadas subsequentes, aqueles que fizeram eco a tal afirmação. O cinema, pensado em sua totalidade, apresenta possibilidades de interações sociais entre público e obra que dificilmente podem se dar em outras manifestações culturais e artísticas. A relação dialética entre os elementos que compõem o dispositivo cinematográfico, para além de sua dimensão estética, em sua dimensão política, e o público a quem o cinema se dirige, guarda em seu âmago potencialidades que poucas vezes foram tentadas a serem levadas a seus limites. Como já apontava Eisenstein:
“O cinema, sem dúvida, é a mais internacional das artes. Não apenas porque as plateias de todo o mundo veem filmes produzidos pelos mais diferentes países e pelos mais diferentes pontos de vista. Mas particularmente porque o filme, com suas ricas potencialidades técnicas e sua abundante invenção criativa, permite estabelecer um contato internacional com ideias contemporâneas. Porém, no primeiro meio século de sua história, o cinema só explorou uma parte insignificante de suas infinitas possibilidades. […] O cinema, a mais avançada das artes, deve estar em posição avançada nesta luta. Que ele indique aos povos o caminho da solidariedade e da unanimidade no qual devemos nos mover.” (EISENSTEIN, 2002, p.11, p. 12)
Essa característica internacionalista do cinema, como bem apontado por Eisenstein, guarda em si um elemento politicamente complexo: ao mesmo tempo em que é possível tomar conhecimento das ideias dos diferentes povos, também é possível, e, em se tratando do mundo sob a ordem capitalista em seu estágio imperialista, diríamos, provável, se não inevitável, que sejamos seduzidos por ideias alheias a nossos interesses, tanto em nível de interesses nacionais quanto a nossos interesses enquanto classe. Sem querer adentrar de maneira mais consequente nos processos de disputa ideológica e de hegemonia, o que nos seria impossível dado o espaço deste breve artigo, será preciso fazer alguns apontamentos a esse respeito mais a frente.
Porém, antes disso, retornemos à frase de Lenin. Se para ele, de fato, o cinema era a “arte mais importante”, muito dessa avaliação deve-se, podemos dizer, a grande capacidade de Lenin de fazer uma leitura objetiva e bastante acertada das necessidades imediatas da revolução recém-vitoriosa. Com a vitória na guerra civil sobre a contrarrevolução e o governo operário camponês consolidado, a tarefa que se colocava a frente dos bolcheviques era a edificação da nova sociedade socialista sobre os escombros da velha Rússia czarista. Para além da reconstrução do país, devastado pelos anos de guerra, também era crucial elevar a qualidade de vida das massas. Mas não se tratava simplesmente de criar as condições materiais para o socialismo a nível de subsistência apenas. A transformação radical das bases econômicas da sociedade também implicava uma transformação radical nas relações humanas, era preciso um trabalho de elevação da consciência política e cultural. Será nesse sentido que, ainda em 1918, será colocado como tarefa dos proletários na frente do trabalho cultural o seguinte:
“Lunatcharsky assumiu a responsabilidade pela condução dos trabalhos revolucionários no campo da educação e da cultura perante o soviete em 1917. Em sintonia com as instruções do soviete, definiu em 1918 a tarefa do proletariado na frente cultural como a realização da autoeducação proletária dos trabalhadores, tal como enunciada por Rosa Luxemburgo e reproduzindo os termos do Programa da Proletkult – organização criada às vésperas de Outubro, por ele mesmo, juntamente com Bogdanov […] com o propósito explícito de atuar na esfera da agitação e propaganda.” (COSTA, 2018, p.26, grifo da autora)
Em um país rural e de baixíssimo nível de alfabetização como era o caso da Rússia czarista, esse processo de autoeducação necessitava de novos modelos e instrumentos, que os bolcheviques tiveram que descobrir no seu trabalho político junto às massas. Era preciso também que novos valores, não mais baseados no individualismo burguês, mas sim na cooperação e fraternidade, fossem fomentados nessa nova sociabilidade socialista que se edificava, uma nova cultura que abarcasse o que de mais positivo havia no seio da classe operária. Nesse sentido, o trabalho cultural dos revolucionários também deveria ter um elemento didático poderoso o suficiente para desenvolver entre o povo um sentido crítico em relação à própria cultura, tendo o marxismo como sua base:
“(a classe trabalhadora), tem no marxismo tudo o que precisa, ou a investigação profunda e exigente dos fenômenos sociais, base da sociologia e da crítica da economia política e a culminação da concepção filosófica do mundo. Nesse sentido, o proletariado já é o herdeiro de tesouros que ultrapassam as mais brilhantes realizações do cérebro humano. […] Que classe de marxistas-leninistas seríamos se, depois de demonstrar que em qualquer obra literária ou de arte podemos ver os fios entrelaçados da correlação de classes e da luta de classes, não estivéssemos (agora, na ditadura do proletariado) em condições de os indicar?” (LUNATCHARSKY apud COSTA, 2018 p.27)
Devido a conjuntura que se apresentava à época, juntamente ao seu caráter de massas, o cinema, enquanto instrumento de agitação e propaganda revolucionária, se mostrou um poderoso propulsor dessa autoeducação dos trabalhadores pretendida pelo Estado soviético. Muitas foram as iniciativas culturais e educativas encabeçadas pelo grupo do Proletkult a utilizarem o cinema, em inter-relação com o teatro, iniciativas que tiveram, inclusive, significante participação do futuro cineasta e teórico Sergei Eisenstein. Mas, sem dúvida, a experiência mais significante no campo do cinema executada pelos bolcheviques foram os Kinopoezd (cine-trens), comandados pelo cineasta Aleksandr Medvedkin, que consistiam de enormes vagões, que em seu interior possuam laboratórios de revelação, edição, filmagem e projeção, e que percorriam as regiões mais remotas do território soviético, filmando junto ao povo seus hábitos, tradições e culturas, ao mesmo tempo em que levava o programa revolucionário de educação e elevação política.
Esta breve retrospectiva introdutória, se é que podemos assim chamá-la, do papel do cinema no projeto revolucionário socialista em seus primeiros anos nos permite ter uma visão um pouco mais panorâmica das inspirações políticas do cinema do Grupo Ukamau, coletivo cinematográfico boliviano que se propôs, e propõe, a uma prática revolucionária dentro do cinema. Seguindo os passos das experiências passadas e mirando superá-las em suas potencialidades junto às massas trabalhadoras e campesinas, o Grupo Ukamau define, em linhas gerais, o cinema revolucionário da seguinte maneira:
“Podemos ensayar una definición del cine revolucionário como aquel cine al servicio de los interesses del Pueblo, que se constituye em instrumento de denuncia y clarificación, que evoluciona integrando la participación del Pueblo y que se propone a llegar a él.” (SANJINÉS, 1978, p.38)
Central nesse entendimento de cinema revolucionário é a necessidade da luta anti-imperialista. Nesse sentido, podemos retornar a questão anterior, sobre como, através do cinema, podemos também ser seduzidos por interesses contrários aos nossos reais interesses nacionais e de classe. Sobre essa questão, o Grupo Ukamau é categórico:
“Hoy está demonstrado que la maquinaria militar-económica del imperialismo (las inter-relaciones entre las multinacionales, los organismos de espionaje, la maquinaria militar y la política del sistema son um todo perfectamente coherente) está vinculada e planificada con la política de instrumentalización de los medios de comunicación massiva que se dentinan por una parte ala desinformación y por otra a la formación de una ideologia afín a la del sistema. Esta ideologia de una sociedade individualista que no distingue en la realidad otro objetivo que la acumulación de cosas y possibilidades, sean de poder, influencia, vantaje, dinero, etc., necesita para su expación aniquilar qualquier otra ideologia opuesta política o culturalmente. Y en este último terreno la destrucción de toda resistência cultural allana el camino y la instalación de su sistema politico.” (SANJINES, 1978, p.49)
Articulando a sua práxis cinematográfica nestas duas camadas da luta socialista, o movimento de liberação a nível nacional e a luta anti-imperialista a nível continental, o Grupo Ukamau fará uma distinção entre dois momentos dentro do cinema revolucionário, um antes da liberação e outro depois da liberação, o primeiro correspondendo a um movimento de clarificação e desmistificação dos processos de exploração e repressão sob a ordem capitalista, e a segunda, ao processo de mobilização para a construção do socialismo (SANJINÉS, 1978). Em ambos os estágios, o cineasta não é mais que um instrumento do povo, sendo este, em sua coletividade, o verdadeiro agente do fazer cinematográfico, daí a ideia, absolutamente primordial dentro das concepções do Grupo Ukamau, de “cine junto al Pueblo”. Essa mudança de perspectiva, em relação ao cinema convencional, também implica numa mudança de forma e conteúdo do cinema:
“Un film sobre el Pueblo hecho por um autor no es lo mismo que un film hecho por el Pueblo por intermédio de un autor; como intérprete y traductor de esse Pueblo se convierte em vehículo del pueblo. Al cambiarse las relaciones de creación se dará um cambio de contenido y paralelamente un cambio formal.”(SANJINÉS, 1978, p.61)
Como o leitor pode notar, através dessas observações inicias a respeito da práxis do Grupo Ukamau, o cinema aqui, em sua potencialidade revolucionária, não é entendido como um instrumento meramente ideológico ou de convencimento político. Para muito além disso, o cinema é concebido enquanto instrumento organizador da classe na sua materialidade. Aí está, no nosso entendimento, a pedra angular do cinema revolucionário. No movimento duplo de denúncia e clarificação dos mecanismos do capitalismo e do imperialismo e da integração horizontal e coletiva do povo no processo do fazer cinematográfico, há um salto qualitativo do cinema enquanto tal, passando este, desse modo, a qualidade de cinema revolucionário.
Mas eis que surge a seguinte questão: em que medida e de que modo esse cinema revolucionário se traduz em linguagem cinematográfica? Para pensarmos sobre esta questão recorreremos ao filme “El coraje del Pueblo” (1971), pois, sendo este filme, na visão dos próprios realizadores, a obra que de modo primeiro conseguiu realizar totalmente os processos, tanto estéticos quanto políticos, de um cinema revolucionário, como entendido pelo Grupo Ukamau, ele é objeto privilegiado para o estudo deste cinema e sua práxis.
Mas antes de nos debruçar sobre o filme, passemos a um breve histórico da origem do Grupo Ukamau.
Antecedentes políticos e formação do Grupo Ukamau
Durante toda a primeira metade do século XX, a economia boliviana esteve profundamente escorada na exploração do estanho. Já em 1909 a exploração deste minério representava 40% do comércio exterior, alcançando a marca de 75% em 1949. Essa produção, entretanto, pouco contribuía para o desenvolvimento econômico do país. Em particular, por dois fatores: primeiro, os impostos cobrados pelo governo eram quase irrisórios, variando de 3 a 5%, e segundo, porque a exploração de estanho estava extremamente concentrada nas mãos de basicamente apenas três magnatas, Simon I. Patiño, Mauricio Hothschild e Carlos Aramayo. Esta configuração econômica e política tornou o Estado boliviano não mais que um mero agente intermediador entre os grandes capitais internacionais e a burguesia interna boliviana. Como resultado disso, tanto a economia nacional quanto a estabilidade institucional burguesa se equilibravam em bases profundamente frágeis. Com a crise de 29, esse equilíbrio desabou. A primeira consequência da crise política que se instaurou, foi também a mais desastrosa: a Guerra do Chaco, disputada entre Bolívia e Paraguai entre os anos de 1932 e 1935. Não nos aprofundaremos sobre a guerra por falta de espaço, basta dizer que seus efeitos foram profundos. Em 25 de novembro de 1934, o governo boliviano foi deposto pelo exército. Em 14 junho de 1935 a paz foi finalmente assinada por Tejada Sorzano, o vice-presidente empossado pelos militares. Esse desfecho trágico, de uma guerra ainda mais trágica, fez do período do pós-Guerra do Chaco um período de profunda convulsão social.
Nesse cenário, surgem duas forças políticas de destaque em oposição às oligarquias: o Partido Obrero Revolucionario (POR), de orientação trotskista, e o Movimento Nacionalista Revolucionario (MNR), de orientação nacionalista pequeno-burguesa. Esses dois partidos serão os protagonistas, junto a forças menores, da revolução de 1952. Os anos de 1940 foram de ainda maior crise que os anos 1930, com repressão brutal do governo sobre as massas populares, sendo o massacre de Catavi, em 1942, em resposta a uma greve mineira, um episódio bastante ilustrativo.
A crescente oposição ao governo, junto à intensa agitação política junto às bases do povo, desembocou na insurreição revolucionária de 1952, ocorrida entre os dias 9 e 11 de abril daquele ano. Iniciada no dia 9 pelo MNR, com movimentos conspirativos de cunho golpista, com o intento de manter as massas longe do processo, tudo indicava que a iniciativa seria derrotada, sendo que ao fim daquele mesmo dia 9, as lideranças do MNR já se movimentavam no sentido de fugir do país, frente a iminente repressão que sofreriam do governo em resposta à tentativa de tomada de poder. Foi só com a entrada das massas trabalhadoras, a partir do dia 10, mobilizadas em particular pelo POR e por outras forças revolucionárias de orientação socialista, transformando o intento golpista em insurreição popular revolucionária, que a revolução pôde lograr êxito.
O período revolucionário que se seguiu foi de grandes contradições. Por um lado, o governo revolucionário comandado pelo MNR e pela recém-fundada Confederación Obrera Boliviana (COB) conseguiu grandes avanços rumo à soberania nacional, como a nacionalização do estanho e a reforma agrária. Por outro, qualquer reforma que pudesse ir para além da institucionalidade burguesa rumo a uma ruptura socialista foi rechaçada brutalmente, com o uso da repressão incluso. Essa repressão afetará profundamente o outro protagonista da insurreição, o POR, que se desestabilizará e perderá boa parte de sua influência política durante os anos 1950.
Será desse caldeirão político, das ebulições acarretadas pelo processo revolucionário de 1952, que surgirá um grupo de artistas engajados na construção revolucionária, entre eles o pintor Miguel Alandia. Essa geração ficará conhecida como a “Geração de 52”.
“O novo governo dirigido pelo MNR em 1952 buscou consolidar sua imagem e sua visão nacionalista de revolução com tentativas de controle oficial sobre o mundo cultural. Uma das iniciativas neste campo foi incentivar artistas dispostos a tematizarem o nacionalismo a partir das imagens das comunidades indígenas milenares das camadas populares. Convencionou-se chamar os artistas envolvidos ou próximos deste projeto de Geração de 52, que em comum possuíam o propósito explícito de fazer de sua arte um veículo de intervenção na vida política.” (ANDRADE, 2011, p.214, grifo nosso)
Essa geração servirá de inspiração para um grande número de jovens artistas, entre eles Jorge Sanjinés, que, por volta de 1958, se aproxima deste grupo, dando início a sua atuação no cinema engajado. Em 1959, junto de Oscar Soria e Ricardo Rada, Sanjinés fundará o grupo de cinema Kollasuyo, mais tarde renomeado para Grupo Ukamau, nome retirado do primeiro longa-metragem realizado pelo grupo: “Ukamau”, lançado em 1966 e que teve um profundo impacto nacional.
Em relação a revolução de 1952, a perda de base social, como resultado da repressão, e a crescente pressão internacional exercida pelos E.U.A, levará o processo revolucionário a recuar em seu programa político cada vez mais nos anos seguintes, sendo encerrado de uma vez por todas pelo golpe de estado comandado pelo general René Barrientos contra o governo eleito de Paz Estenssoro em 1964.
No decorrer da década de 1960, em particular após 1967, ano da morte de Ernesto Che Guevara nas selvas bolivianas, as posições e a práxis do Grupo Ukamau se radicalizarão e seu comprometimento com a revolução socialista se tornará ainda mais aguerrido. Será também nesse período que sua concepção de um cinema revolucionário se cristalizará, tendo como resultado de sua práxis o filme “El coraje del Pueblo” (1971). Não faremos aqui uma análise pormenorizada do filme, nos reteremos somente na sequência de abertura deste, mas poderemos ainda assim, cremos nós, extrair alguns entendimentos dos processos presentes nele.
El coraje del Pueblo: da memória coletiva à ação política
O filme “El coraje del Pueblo” tem como foco a reconstituição dos eventos imediatamente anteriores ao acontecimento conhecido como “massacre da noite de San Juan”. Em 1965, René Barrientos, como forma de tentar esmagar a resistência operária mineira aos decretos promulgados em maio de 1965, que reduziam em 40% os salários destes, declara a ocupação militar de todo território mineiro e coloca a COB e todos os sindicatos e partidos de oposição na ilegalidade. Em 1967, as mobilizações mineiras são retomadas de forma intensa e, nas minas de Catavi e Siglo XX, é declarada uma greve de 24 horas. Os dirigentes mineiros então decidem marcar uma plenária para os dias 25 e 26 de junho, a fim de discutir uma pauta de reivindicações, para além da questão da guerrilha, que já se instaurara no país, sob o comando de Che Guevara. Os sindicatos mineiros já haviam arrecadado fundos para a guerrilha, e havia expectativas de sua integração na luta armada em desenvolvimento. O exército, porém, alertado desse movimento da parte dos mineiros, decide impedir a mobilização por meio de um ataque surpresa às vésperas da realização da plenária. Com os mineiros desarmados e despreparados, o resultado deste ataque foi um massacre com um número desconhecido e vítimas.
Usando o testemunho dos sobreviventes deste massacre, bem como dos familiares e amigos das vítimas, para além da experiência coletiva a que passou toda a comunidade, o filme, em seu encadeamento de situações históricas com a intervenção ativa dos participantes reais destes eventos, tenta fazer vir à superfície a relação dialética entre os diversos fenômenos e desencadeamentos econômicos e políticos, eliminando dessa maneira as distorções ideológicas e, através da síntese, chegar a um esclarecimento das reais causas do que é mostrado.
“[…] se empleó un método reconstructivo que tenia un principio similar al de las leyes de la dialéctica: la de los câmbios cuantitativos en cualitativos, y entonces, por medio de una cadena de saltos de una situación histórica a otra, se establecía la conexión secreta, la lógica interna, la interrrelación del fenómeno histórico que aparecia deformado en su exterior por la superposición de elementos anecdóticos, que em síntesis eran eliminados, para llegar así al esclarecimiento. Pero toda esta estructura que eliminaba las limitaciónes y los vicios de la argumentación era a su vez respaldada por la intervención presente y viva de los próprios protagonistas y testigos de los hechos que autointerpretaban sus experiências, dando de esta manera el toque de irrefutabilidad documental.” (SANJINÉS, 1978, p.22)
O filme, finalizado em 1971, trata de maneira mais pormenorizada de um evento contemporâneo à sua realização, o massacre da noite de San Juan, ocorrido em 1967, porém, no seu escopo de conjugação da memória de luta da comunidade mineira, ele trata de trazer para aquele presente uma série de outros momentos de mobilização, e neste movimento, o filme denuncia como cada uma dessas mobilizações foi esmagada pela ação da burguesia. Logo nos primeiros momentos do filme, somos transportados para 1942, em meio a uma manifestação de trabalhadores. Trata-se da greve mineira ocorrida em Catavi e brutalmente reprimida pelo exército a mando dos barões do estanho, em particular Simon. I. Patiño. Surgem na tela letreiros com os dizeres: “los hechos de esta película son verídicos, su reconstrucción se apoya en testimonios e documentos”. Intercalam-se imagens da manifestação mineira e de soldados, que esperam de maneira apreensiva a aproximação da massa trabalhadora. Os gritos das reinvindicações se intensificam e a moral da manifestação de eleva. É nesse momento que, de modo inadvertido e sem provocações, o exército dispara contra a multidão mineira. O desespero se estala. Em meio a gritos e choros, a multidão se dispersa deixando para trás seus mortos. O exército, então, visando escamotear o número de vítimas do massacre, joga os corpos em valas coletivas. Em meio a isso, começam a soar fortes tambores, que tratam de acentuar a barbárie que acabara de ocorrer. Surge um novo letreiro: “El gobierno boliviano presionado por la empresa minera Patiño, ordeno al exérjito abrir fuego sobre la multitud de obreiros que exigin aumentos de salários: 400 muertos, más de 1.000 heridos.”. Corte seco para a foto de Simon Patiño, com a legenda: “Personas responsables: Simon Patiño, Dueño de las minas”. Em seguida, corte seco para a foto de Pedro Arce, com uma legenda com seu nome e seu cargo, ministro de governo. Por último, corte seco para a foto do presidente boliviano à época, o general Enrique Peñaranda. A isto se seguem mais casos de repressão governamental, dessa vez só como sequência de fotos de tais repressões, sempre seguindo a essas, as fotos e os nomes dos responsáveis: Potosi, 28 de janeiro de 1947, número de mortos desconhecido; Siglo XX, 28 de maio de 1949, 80 mortos e 115 feridos; Vila Victoria – La Paz, 18 e 19 de maio, 200 mortos e 450 feridos; Sora, 28 de outubro de 1964, o exército bombardeia a zona mineira, número de mortos desconhecidos; imagens da ocupação militar da zona mineira em maio de 1965, número de feridos desconhecido, 800 mortos; e por fim, Llallagua, setembro de 1965, 105 feridos 32 mortos. Tudo sublinhado pelo som forte e ritmado de tambores.
Já nesta sequência inicial, o filme faz um movimento duplo em sua construção didática: de um lado, denuncia os arranjos entre a burguesia e o governo, evidenciando como este é sujeito direto dos designíos daquela, tomando o cuidado de não apenas nomear os responsáveis pelo esmagamento do povo, como também de mostrar-lhes a cara, para que a névoa ideológica em torno das estruturas do sistema capitalista seja dissipada, desmontando o caráter abstrato do Estado, demonstrando assim que este é peça no domínio direto de classe e que esta classe, a burguesia, tem nome e sobrenome. O segundo movimento é o da rememoração, do resgate das memórias coletivas das comunidades. Não há um único ator durante o filme inteiro. Todas as pessoas que participam de sua construção são moradoras da própria comunidade. No processo de reconstituição dos acontecimentos representados pelo filme, na ação criadora do povo, abre-se espaço para a espontaneidade de experiências populares ao qual este cinema revolucionário almeja. O desenrolar das sequencias, que não são planejadas a priori, mas, pelo contrário, são deixadas ao mando da multidão de trabalhadores, ali reunidos, que criam os diálogos e gestos no próprio movimento da memória que ali se evoca, dá corpo vivo a experiência passada da comunidade. A câmera, nessa situação, se coloca no mesmo ponto de vista desta, participando como uma testemunha a mais dessa experiência.
“Al eliminarse la verticalidad própria del cine concebido a priori, se daba passo y se abrían las puertas a una participación real del Pueblo em el processo de creación de una obra que ataña a sua historia y destino.[…] La cámara tenía, por lo tanto, que jugar um papel de protagonista a sua vez, debía situarse em los puntos de vista de los participantes y participar como um testigo a más.” (SANJINÉS, 1978, p.23)
Nesse sentido, a forma do filme se adequa ao conteúdo. A linguagem cinematográfica no cinema revolucionário, como entendido pelo Grupo Ukamau, deve ser uma linguagem que desencadeie a reflexão e o pensamento crítico, de modo que utilizar as formas canônicas do cinema convencional burguês não é possível, uma vez que, em seu entendimento, a linguagem empreendida por esse cinema, a linguagem do imperialismo mesmo, visa o exato oposto, ou seja, a mistificação dos processos políticos e econômicos, bem como o embrutecimento cultural das massas. Isso não implica um abandono de possibilidades estéticas mais elevadas em proveito de uma suposta maior clareza dos objetivos políticos do filme, muito pelo contrário. Caso assim o fosse, o cinema revolucionário não seria mais que um panfleto em forma de filme. Nesse sentido, a beleza estética aqui deve ser usada como um meio para o objetivo político.
“El cine revolucionario debe buscar la belleza no como objetivo sino como medio. Esta proposición implica la relacción dialética entre belleza y propósitos, que para producir la obra eficaz debe darse correctamente. […] La carencia de una forma creativa coherente reduce su eficacia , aniquila na dinámica ideológica del contenido y sólo nos enseña los contornos y la superficialidad sin entregarnos ninguna esencia, ninguna humanidad, níngun amor.” (SANJINÉS, 1978, p. 57)
Desse modo, através do uso de planos sequência, com pouca interferência de cortes, e planos abertos, em que a comunidade é entendida em sua totalidade, e rejeitando o uso extenso do primeiro plano, tão comum no cinema convencional, o filme traduz a cosmovisão da comunidade tradicional indígena para a linguagem cinematográfica. A memória coletiva de uma comunidade só poderia ser representada através da linguagem própria da comunidade a que ela pertence, no caso de “El corage…”, as comunidades mineiras e campesinas.
A memória e a história que se evoca nessa sequência é a história dos vencidos. É a reminiscência coletiva, expressa nos indivíduos do presente, que, ao se vincularem historicamente com as lutas das gerações passadas, devem agora cumprir a tarefa da libertação. Como coloca Benjamin:
“O sujeito do conhecimento histórico é a própria classe combatente e oprimida. Em Marx, ela aparece como a última classe escravizada, como a classe vingadora que consuma a tarefa de libertação em nome das gerações derrotadas.” (BENJAMIN, 1987, p.228)
Ainda em diálogo com Benjamin:
“Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele foi de fato”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela lampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso” (BENJAMIN, 1987, p.224)
Perceba que estes processos transcendem a estrutura narrativa do filme. Não há aqui uma relação meramente obra/público, que já se desintegra pelas próprias características de produção. Há também um processo de auto-organização dos trabalhadores que participam da ação do fazer fílmico. Pela reconstituição da memória em ato encenado, sem a interferência de um “autor”, como entendido na concepção burguesa de cinema, a intervenção dos trabalhadores, ao compreenderem os objetivos políticos a que almejava o filme, passa a uma postura consciente militante.
“En la filmación de El coraje del Pueblo muchas escenas se plantearon em el lugar mismo de los hechos discutiendo con los verdaderos protagonistas de los acontecimentos históricos que estabámos reconstruyendo, los que em el fondo tenían más derecho que nosotros de decidir como debían reconstruirse las cosas. Por otra parte, ellos las interpretaban con una furza e una convicción dificilmente alcanzables por un actor profesional. Esos compañeros no solamente querían transmitir sus vivencias com la intensidad que tuvieron sino que sabían cuáles eran los objetivos políticos de la película, y su participación se hizo por eso militancia. Tenían clara conciencia de cómo iba a servir la película llevando la denuncia de la verdad por todo el país y se dispusieron a servirse de ella como un arma.” (SANJINÉS, 1978, p.63, grifo do autor)
Esta breve análise da sequencia inicial de “El corage del Pueblo”, à luz dos desenvolvimentos teóricos do Grupo Ukamau, deve ser entendida como uma mera introdução aos conceitos elaborados por estes. Nesse sentido, para um entendimento mais consequente do cinema revolucionário, será necessário um estudo mais sistemático da práxis do Grupo Ukamau, o qual pretendemos desenvolver no futuro breve, porém, no que tange este artigo, nos limitamos por aqui.
Considerações finais
O leitor deve ter notado que em momento algum do texto precedente nomeamos os realizadores de “El coraje del Pueblo” individualmente, sempre recorrendo ao coletivo, nesse caso o Grupo Ukamau. Isso se deu de maneira deliberada. Como já apontado anteriormente, a práxis do cinema revolucionário submete o indivíduo do diretor (e nisso, também, o do roteirista), ao papel de mero meio de transmissão dos intentos do povo. Nisso está um elemento importantíssimo deste cinema que, infelizmente, não chegamos a discutir durante a análise: a concepção de um cinema coletivo. Nas palavras do próprio grupo:
“[…] el cinema revolucionário no puede ser sino colectivo em su más acabada fase, como colectiva és la revolución. El cine popular, cuyo protagonista fundamental será el pueblo, desarrollará las historias individuales cuando éstas tengan el significado de lo colectivo, cuando estén integrados a la historia colectiva. El héroe individual debe dar paso al héroe popular, numeroso, cuantitativo, y en el processo de elaboración este héroe popular no será solamente un motivo interno del film sino su dinamizador cualitativo, participante y creador.” (SANJINÉS, 1978, p.61)
A busca por esse herói coletivo se insere justamente num embate ideológico mais amplo, que denota a conjugação de novos signos e a novas relações dos signos populares. Isso significa dizer que é necessário uma mudança de base subjetiva rumo à uma superação da subjetividade burguesa, individualista e atomizada, para uma subjetividade coletiva e comunitária. Mas essa mudança só pode se dar na medida em que também mudem as bases econômicas que estão em sua estrutura, pois o caráter de toda cultura é definido pela divisão social do trabalho que constitui sua base (LUKÁCS, 2021).
Portanto, não há de se falar em cinema revolucionário se este cinema não esteja integrado, isto quer dizer, organizado politicamente, na luta revolucionária real, junto aos sindicatos, partidos, e demais organizações da classe operária, ainda que não vinculado diretamente às diretrizes destas organizações.
Ainda que, com o distanciamento histórico e o devido balanço crítico, a experiência do Grupo Ukamau dos fins dos anos 1960 e início dos 1970 tenha um nível de otimismo um tanto exagerado e uma confiança na eclosão revolucionária que não se concretizou, é de vital importância, a nosso ver, tal experiência, pois há nela elementos riquíssimos para pensarmos o cinema enquanto instrumento mobilizador da classe trabalhadora.
Desse modo, cabe aos revolucionários de hoje, que fazem do cinema um campo de luta, empreender um estudo sistemático e crítico dessa experiência, e extrair dela, assim como de outras experiências verdadeiramente revolucionárias, as lições necessárias pra o avanço da causa revolucionária, à pena de nos vermos a tentar inventar a roda mais uma vez.
Bibliografia
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SANJINÉS, Jorge; UKAMAU, Grupo. Teoría y Práctica de un Cine Junto al Pueblo. 1. ed. Argentina: Siglo XXI, 1979.