As Revoluções do século XIX e a poesia do futuro[1]

As Revoluções do século XIX e a poesia do futuro1

Mauro Luís Iasi2

A revolução social do século XIX

não pode tirar sua poesia do passado,

e sim do futuro.

Antes a frase ia além do conteúdo;

agora é o conteúdo que vai além da frase.

Karl Marx (18 Brumário)

No momento em que o século XVIII fechava suas cortinas sobre o mundo moderno que nascia, o ciclo das revoluções burguesas atingia seu apogeu e iniciava sua crise. A consolidação das revoluções burguesas a partir das experiências inglesas do século XVII e início do século XVIII, a Guerra de Independência dos EUA em 1776 e a Revolução Francesa de 1789 marcariam profundamente a formação dos estados nacionais que se formavam tendo por base a universalização do modo de produção capitalista.

As profundas mudanças na forma de produção da vida e nas relações sociais de produção, condensadas no que se chamou de Revolução Industrial, foram acompanhadas de mudanças políticas marcadas pela crise do absolutismo feudal, assim como uma intensa efervescência cultural e filosófica, da qual são manifestações o racionalismo inglês, o iluminismo francês e o esclarecimento alemão. As mudanças políticas se caracterizaram pela luta da burguesia pelo poder de Estado, no chamado ciclo das revoluções burguesas.

Ocorre que, mesmo no momento de seu apogeu, o ciclo burguês demonstrava, simultaneamente, o vigor de sua hegemonia e o germe das contradições que, ao se desenvolverem, apontaria para a superação da ordem do capital. Marx dizia que a humanidade só se propõe às tarefas que pode realizar, porque, quando analisamos bem as coisas, vemos que os objetivos revolucionários só brotam quando já existem, ou pelo menos estão em gestação as condições materiais para seu desenvolvimento. Neste momento da história, os objetivos de uma revolução proletária não poderiam passar de germes, embriões de uma futura luta contra o capital.

A burguesia recém chegava ao poder e lutava, duramente, para impor seu domínio contra a resistência das velhas camadas feudais. O efeito prático desse momento de transição pode ser comprovado pela solução de compromisso que brota da revolução Inglesa na formação do Governo Misto, defendido por Locke e Montesquieu, no qual a nobreza e a burguesia convivem numa forma de governo que mantém a Monarquia e divide o poder, com um Parlamento composto de em uma Câmara Alta, na qual participam os nobres, e uma Câmara Baixa, ocupada pela burguesia, como representante do povo. Da mesma forma, os revolucionários franceses acompanham, atônitos, a inflexão da Revolução Francesa até Napoleão coroar-se Imperador.

No momento mesmo em que a ordem burguesa completava sua transição, as contradições da forma capitalista de sociedade já agiam como um poderoso ácido corroendo as pretensões de universalidade burguesa e demonstrando o papel que caberia aos trabalhadores no interior da ordem do capital. O século XIX emerge como o momento de consolidação da ordem burguesa capitalista, mas, ao mesmo tempo, como embrião das lutas proletárias que se dariam por todo o século XIX e XX.

Se esses germes de rebelião já estavam presentes na Revolta dos Justos de Babeuf na França, no pensamento socialista utópico de Sanit-Simon, Fourier, Blanqui, Proudhon, ou mesmo, antes, nas lutas camponesas na Alemanha no século XVI, será apenas com o pensamento de Marx e Engels que a afirmação de uma Revolução Proletária ganha a consistência de uma alternativa histórica contra o capital e o Estado Burguês.

Os textos apresentados na coletânea A Revolução Antes da Revolução, da coleção Assim Lutam os Povos (Editora Expressão Popular), dividida em dois volumes (As Lutas de Classes na França e As Lutas de Classes na Alemanha), são os primeiros esforços dos seus autores – Karl Marx e Friedrich Engels – para buscar compreender a história de um ponto de vista materialista e dialético, mas, também, esboçar os elementos centrais de uma estratégia revolucionária que fosse capaz de armar os trabalhadores para um contexto concreto muito preciso, no qual os trabalhadores entravam em luta numa conjuntura em que a burguesia ainda lutava contra os remanescentes da ordem feudal, ou seja, nas palavras de Marx, ainda lutávamos contra os inimigos de nossos inimigos.

São trabalhos produzidos entre os anos de 1850 e 1871, portanto, sob o impacto de uma grande onda revolucionária que abalou o mundo em 1848 e 1849, contexto no qual os trabalhadores se levantaram, em muitos lugares, em aliança com setores da burguesia contra a ordem feudal, como na Alemanha, e em outros, como na França, já diretamente contra a ordem burguesa.

Como deveriam agir os trabalhadores em um momento histórico em que, já percebendo a natureza da ordem capitalista, não havia ainda as condições materiais para desenvolver novas relações sociais de produção socialistas em transição para uma sociedade comunista?

Engels, analisando as lutas dos camponeses alemães nas revoltas que ocorreram já em 1525, afirma que:

O pior que pode acontecer ao chefe de um partido extremista é ser forçado a encarregar-se do governo num momento em que o movimento ainda não amadureceu suficientemente para que a classe que representa possa assumir o comando e para que se possam aplicar as medidas necessárias para o domínio dessa classe.3

No entanto, ao contrário de propor que os trabalhadores esperassem calmamente pelo desenvolvimento de tais condições, Marx e Engels procuram compreender o movimento da história à luz de uma revolução permanente, ou seja, de forma que as lutas operárias e de seus aliados navegassem no interior de uma revolução burguesa, desde o primeiro momento, criando as condições para que o inevitável domínio da burguesia fosse o mais instável possível e preparasse as condições de sua superação por uma revolução proletária.

Interessante é que, a despeito da radicalidade dessa posição, os partidos socialdemocratas, de orientação marxista na época, procuraram justificar o rebaixamento de seus programas e as estratégias bem comportadas de acomodação à ordem capitalista e ao Estado Burguês, como no caso do POSD alemão e dos mencheviques russos, com base em uma suposta afirmação de Marx segundo a qual não seria possível a revolução socialista e a superação da sociedade capitalista enquanto as forças produtivas materiais não se desenvolvessem ao máximo, gerando as condições materiais para que novas relações sociais surgissem.

É fato que Marx, em seu Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política (1859), afirmava que nenhuma sociedade desaparece antes que desenvolva todas as forças produtivas que é capaz de conter, nem surgem relações sociais de produção novas, antes que amadureçam no seio da sociedade anterior as condições para tanto. No entanto, em nenhum momento, como os textos que aqui apresentamos demonstram, tal constatação implicou para Marx ou Engels em um rebaixamento programático ou prático da revolução proletária.

Engels reagiu a essa deformação, por exemplo, quando o POSD alemão corrigiu sua introdução à segunda edição de As lutas de classes na França de 1848 e 1850 de Marx, afirmando que o texto havia sido “arrumado de tal modo que surjo como um pacífico adorador da legalidade a todo custo”, ao mesmo tempo em que insistia para que o texto fosse publicado na íntegra para dissipar “esta vergonhosa impressão”4.

Como poderíamos combinar a afirmação materialista segundo a qual não existiriam bases materiais para construir uma transição socialista antes que o capitalismo desenvolvesse ao máximo e mundialmente as forças produtivas, com o princípio de que os trabalhadores deveriam agir com autonomia e independência de classe, recusando a marchar a reboque da burguesia em sua luta contra a ordem feudal?

A solução desse paradoxo se dá através da afirmação segundo a qual os trabalhadores deveriam se organizar em partidos independentes, com programas próprios e traçar uma estratégia na qual caminhariam com a burguesia em tudo que interessasse aos trabalhadores, como a derrubada da ordem feudal, e, em seguida, marchariam contra ela quando tentasse consolidar seus próprios interesses contra os trabalhadores. Para isto, os trabalhadores deveriam agir simultaneamente de forma legal e secreta e, no curso da luta burguesa e democrática, constituir um duplo poder que preparasse, desde o início, as condições de um futuro poder proletário5.

O que assusta os reformistas de toda ordem é que parece haver um paradoxo entre a afirmação de Marx sobre os fundamentos teóricos da mudança social e sua orientação política prática. O que ocorre, no entanto, é que a maioria dos críticos de Marx e, infelizmente, boa parte de seus seguidores não entenderam que a dialética deste autor implica em tratar o estudo da história em dimensões sobrepostas, ao mesmo tempo simultâneas e distintas.

No Prefácio de 1859, Marx se refere à dimensão do modo de produção, portanto, ao nível estrutural em que se desenvolvem as formas como os seres humanos produzem sua existência por meio de certas relações sociais de produção, a partir de certo grau de avanço das forças produtivas materiais. Nesse âmbito é que podemos afirmar ser fundamental, para que ocorra a mudança social, o desenvolvimento ao máximo das forças produtivas, até que estas entrem em contradição com as relações sociais de produção, dentro das quais haviam se desenvolvido até então. Da mesma forma, coerente com tal afirmação, que não é possível o desenvolvimento de novas relações sociais antes que se desenvolvam no seio da sociedade anterior as condições materiais para isso.

Entretanto, não podemos supor que Marx acredite que a história se resolva nesse choque objetivo entre forças produtivas (a relação entre a natureza, a força de trabalho e o que os seres humanos sabem fazer em cada época) e as relações sociais de produção. Como Engels falou certa vez, a “história não faz nada”, quem faz são os seres humanos de carne e osso. Portanto, a contradição objetiva e estrutural torna possível uma mudança social, mas não pode realizá-la. A contradição entre o avanço das forças produtivas e a antiga forma das relações sociais de produção inscreve na história uma nova classe social que necessita, para garantir sua existência como classe, superar a forma das relações sociais estabelecidas, mas essas relações beneficiam uma antiga classe que, pela posição privilegiada em que se encontra, detém privilégios, necessitando, portanto, mantê-las.

Surge, assim, uma luta de classes, que é o motor que pode ou não mudar uma sociedade. Nesse âmbito estaríamos, então, no terreno concreto da luta, no terreno propriamente histórico no qual os seres humanos jogam sua sorte e seu destino, construindo, no tecido vivo do cotidiano e do momento conjuntural, os caminhos que os levam ao futuro de emancipação ou derrota. É neste campo em que a história e as revoluções se fazem. As revoluções não acontecem, são feitas.

Pode haver, portanto, uma disparidade entre as condições objetivas, que tornam ou não possível uma mudança social, e as condições subjetivas, que dependem da ação dos seres humanos em cada época, de suas formas de organização, de sua capacidade de compreender a história e retirar dela seus ensinamentos, capacidade de construir seus planos de luta e os meios para implementá-los. Neste campo, duas situações são possíveis: os trabalhadores estarem preparados em uma conjuntura da luta de classes em que a revolução se apresenta como uma possibilidade, mas em um momento histórico e estrutural do desenvolvimento das forças produtivas no qual não estão dadas as condições para que transitemos para uma nova sociedade; ou um momento em que, ainda que estejam dadas as condições objetivas e materiais para o salto revolucionário, os trabalhadores não reúnem as condições subjetivas, de organização e consciência, para enfrentar a tarefa histórica que se apresenta.

No século XIX estávamos no primeiro caso e hoje estamos no segundo. Se, como afirmou Engels, não há nada pior que um líder revolucionário ser obrigado a assumir um governo sem que haja condições históricas para completar o domínio da classe que representa, somos forçados a completar que não há nada de mais trágico do que um líder que, tendo condições para isso, não o faça.

No século XIX, as revoluções proletárias, lutando por sua autonomia e independência de classe, só podiam tirar sua poesia do futuro, emancipar-se dos fantasmas da revolução francesa, deixar de pedir emprestado as frases e as roupas dos mortos e lançar-se ao futuro que ainda estava por se constituir. No ciclo das revoluções burguesas, a frase ia muito além do conteúdo. A burguesia prometia a igualdade, a liberdade e a fraternidade, mas perecia nos limites de uma emancipação meramente política no interior da ordem capitalista, ou seja, na igualdade perante a lei enquanto reproduz e perpetua a desigualdade de fato, da liberdade de compra e venda, da livre concorrência, sustentada na exploração brutal da força de trabalho, da fraternidade abstrata no corpo do Estado, como cidadão político, enquanto se aprofunda a individualização do ser social, mesquinho e egoísta na livre concorrência e no mercado.

Onde poderiam encontrar os proletários do século XIX sua poesia? Não no passado. No futuro. Em uma emancipação humana, em uma sociedade de produtores associados, sem classes e sem Estado, sem mercadorias, em que se supere a escravizante subordinação dos indivíduos à divisão do trabalho, quando o trabalho deixaria de ser um mero meio de vida para converter-se na primeira necessidade da existência, quando os seres humanos se desenvolveriam em todos os sentidos recuperando o ser social submetido à egoísta forma individual, quando cada um poderia dar de acordo com sua capacidade, recebendo de acordo com sua necessidade.

Antes, dizia Marx, a frase ia além do conteúdo, mas agora o conteúdo é que vai além da frase. As palavras da ordem burguesa não podem ainda expressar os conteúdos futuros que estão em construção. A consequência prática dessa contradição é que os trabalhadores que se rebelavam contra a nascente ordem do capital ainda usavam as palavras burguesas contra a burguesia, perdendo sua autonomia histórica e diluindo-se como setor radical da revolução burguesa. A burguesia lutava pela democracia, a liberdade, a igualdade jurídica. Os trabalhadores tentavam se diferenciar adjetivando as palavras e os valores burgueses: a democracia verdadeira, a liberdade de fato, por direitos dos trabalhadores, e assim por diante.

Os textos que apresentamos são os primeiros esforços de Marx e Engels ao afirmar que a verdadeira conquista dos trabalhadores nas lutas do século XIX não seria a conquista do poder, mas a construção da classe trabalhadora enquanto uma classe, a construção de sua independência, sua autonomia histórica, nos termos de Gramsci. Construir-se como sujeito revolucionário com um projeto próprio de sociedade, diferenciando-se, primeiro, da pretensão de universalidade burguesa, para depois afirmar sua própria universalidade além dos limites de sua própria classe ao propor o fim das classes e a emancipação da humanidade pelo fim do Estado.

Marx, em seu 18 Brumário, escreve que:

As revoluções proletárias, como as do século XIX, criticam-se constantemente a si próprias, interrompem-se continuamente na sua própria marcha, voltam ao que parecia terminado, para começa-lo de novo, troçam profunda e cruelmente das hesitações dos lados fracos e da mesquinhez das suas primeiras tentativas, parece que apenas derrubam o seu adversário para que este tire da terra novas forças e volte a levantar-se mais gigantesco frente a elas, retrocedem constantemente perante a indeterminada enormidade dos seus próprios fins, até que se cria uma situação que torna impossível qualquer retrocesso (…).6

O grande mérito dos textos aqui referidos é trazer estas lutas e a perspectiva histórica do proletariado para o terreno prático dos contextos conjunturais analisados. Ficará claro ao leitor atento que em nenhum momento se perderá o eixo central de garantir a independência e autonomia de classe, mesmo nos contextos nos quais parecem estar mais distantes as condições materiais para uma revolução proletária.

No terreno prático da conjuntura, da luta de classes, a análise de Marx e Engels ganha detalhes de uma sintonia fina, na qual não são suficientes as categorias e conceitos da análise estrutural ou própria de um corte histórico mais amplo. As classes se manifestam por personificações, personagens, partidos, formas de governo, em uma legislação específica, frações, fragmentos, manifestações artísticas e culturais, imprensa, e uma multiplicidade de fatores que agem, segundo Engels, como um conjunto complexo de ações e reações recíprocas, de maneira que o resultado pode ser uma variante que não estava de início nas intenções manifesta de nenhum dos protagonistas.

Tudo isto talvez deixe o texto um pouco árido para o leitor de nossos dias. Os nomes, datas, acontecimentos, muitos dos quais habitavam a memória recente dos contemporâneos dos autores, perderam-se nas brumas da história. É sempre bom o leitor se fazer acompanhar por bons livros didáticos de história que podem ajudá-lo a contextualizar a época e elucidar as passagens. No entanto, a grande contribuição desses textos não é o preciosismo histórico para que você possa demonstrar erudição ao citar em uma conversa quem eram os Orleanistas, ou que tal fato o faz lembrar Thomaz Münzer. A principal contribuição do estudo destes textos do século XIX é a história da conformação de nossa classe como classe, no momento em que se consolidava o domínio burguês. É a lenta construção de nossa autonomia histórica e o momento no qual várias de nossas deformações nasciam, como a brilhante descrição de Marx sobre a estreia da socialdemocracia como expressão política da pequena burguesia.

Organizamos aqui cinco textos. No primeiro volume, trazemos os textos de Engels, começando pelo trabalho As Guerras Camponesas na Alemanha7, escrito em 1850, tendo por base o trabalho de Zimmermann, produzido entre 1841 e 1843. Apesar de tratar das lutas camponesas de 1525, Engels o edita exatamente por acreditar que há um paralelo entre aquela situação e as lutas na Alemanha de 1848 e 1849, principalmente no que se refere à traição da pequena burguesia no calor da luta contra o domínio feudal. Todo o pano de fundo do trabalho de Engels é a paciente afirmação sobre a necessidade de os trabalhadores se apresentarem como força revolucionária autônoma, para não se diluírem nos caminhos da revolução burguesa.

Presos à contradição, antes descrita, entre as condições favoráveis para a ação revolucionária e a ausência de condições históricas e materiais para levar a frente uma superação de caráter socialista, os camponeses alemães mergulham em um “dilema insolúvel”, assim descrito pelo autor:

O que realmente pode fazer encontra-se em contradição com toda a sua atuação anterior, com os seus princípios e com os interesses imediatos do seu partido; e o que deve fazer não é realizável. Numa palavra: vê-se forçado a representar, não o seu partido ou a sua classe, mas sim a classe chamada a dominar nesse momento. O interesse do próprio movimento obriga-o a servir uma classe com palavras, promessas e com afirmação de que os interesses daquela classe alheia são os da sua. Os que ocupam esta posição ambígua estão irremediavelmente perdidos.8

Parece evidente que a ênfase do autor se encontra na busca da autonomia de classe que, por uma série de razões, não se apresentavam. No entanto, o movimento camponês liderado por Münzer apresentava uma radicalidade que ia desde uma afirmação cristã até o ateísmo, no qual a realização do reino de Deus na terra implicaria na abolição das classes, da propriedade privada e de toda a autoridade que se separasse dos homens e mulheres reais, estabelecendo uma igualdade completa não só na Alemanha, mas em toda a “cristandade”. Isto se explica pelo fato de que, segundo o autor, o camponês acabava suportando todo o edifício social, sendo, direta ou indiretamente, explorado por todos os demais setores sociais.

A equivalência com certas expressões atuais são por demais claras. Não se trata de qual setor é mais ou menos explorado, mas qual o caráter de classe que a crítica deste setor que se levanta em luta pode apresentar. Neste ponto o texto nos traz importantes considerações sobre a relação entre a produção camponesa, a consciência que daí deriva, o papel da pequena burguesia e as consequências de uma conjuntura na qual a classe operária não se apresenta no cenário da luta de classes em condições de unificar todos os explorados na luta contra o capital.

O segundo texto, ainda no primeiro volume, é o Revolução e contra-revolução na Alemanha, também de Engels. Este trabalho foi escrito em setembro de 1852 para o New York Daily Tribune e trata dos acontecimentos que abalaram a Europa entre 1848 e 1849 e seus reflexos na Alemanha. Trata-se de uma revolução abortada pela traição da grande burguesia que, diante da radicalidade da luta, acaba se aliando aos senhores feudais. Apesar de garantir o poder feudal, a grande burguesia esperava colocar o governo sob seu controle, uma vez que o endividamento da camada nobre acabava por gerar uma dependência que permitiria que os interesses de fato garantidos fossem os da grande burguesia. No entanto, esta solução não satisfaz as demandas da pequena burguesia democrática, mais ligada à produção industrial e que exige novas relações de produção, garantias jurídicas para a propriedade privada, autonomia local e outras demandas próprias da ordem burguesa em desenvolvimento.

Também aqui a questão de fundo é o curso de uma revolução burguesa que envolve os trabalhadores e camponeses, os quais acabam por perder sua autonomia de classe. Entretanto, algumas das reflexões de Engels lançam os olhos muito mais ao futuro do que ao passado, preocupando-se muito mais em tirar ensinamentos para a futura revolução proletária. Uma das conclusões clássicas que podemos encontrar neste texto é a avaliação de Engels sobre a eficiência da luta de ruas e as barricadas, forma determinante na luta dos trabalhadores até então.

Para o autor, um dos fatores que acabou sendo decisivo para o resultado do levante de 1848 foi o fato de os revoltosos passarem para a defensiva. Diz Engels: “a defensiva é a morte de todo levante armado; está perdido antes de se ter iniciado”. Por isso aconselhava aos trabalhadores atacar de surpresa e manter a ofensiva, impedindo que o inimigo reúna forças contra os revolucionários, movidos pelo velho lema de Danton: “audácia, ainda audácia e sempre audácia”!

Recuperando a ideia central segundo a qual as revoluções não acontecem simplesmente, mas são feitas, Engels lembra que a insurreição é uma arte, e que “está submetida a certas regras práticas e o partido que a negligencia corre para sua própria ruína”. Desta maneira, conclui o autor que: “nunca se deve brincar com a insurreição se não está absolutamente decidido a arcar com todas as consequências do seu jogo”.

No segundo volume da Coletânea A Revolução antes da Revolução, reunindo textos de Marx, o primeiro deles é As lutas de classes na França de 1848 e 1850, publicado igualmente no ano de 1850. No prefácio à segunda edição desta obra, em 1895, Engels reafirma a posição de que o proletariado em luta deve combinar todas as formas de ação, as quais devem ir desde aproveitar os espaços legais até formas diretamente revolucionárias, como o levante armado, que só podem ser preparados e executados além dos limites da legalidade burguesa. A socialdemocracia alemã, ao publicar o trabalho, desfigurou a introdução realçando a defesa da ocupação dos espaços legais e subtraindo toda referência aos métodos clandestinos, tornando o texto de Engels um apelo à paz a todo custo, contrário ao uso da violência. Este reagiu, exigindo que o texto fosse publicado na íntegra, como citamos anteriormente, alegando que seria vergonhoso apresentá-lo como um “pacífico adorador da legalidade”. Tese um pouco difícil de ser comprovada para quem afirma no texto que nenhum camarada deveria abrir mão do “direito à revolução”, pois “o direito à revolução é o único ‘direito histórico’ real, o único sobre o qual repousam todos os Estados modernos”.

A direção alemã jamais chegou a publicar integralmente o texto de Engels, alegando a ameaça de uma nova lei de exceção contra os socialistas, mantendo a supressão das passagens consideradas muito ameaçadoras. O texto só foi publicado integralmente em 1952, na União Soviética.

No texto da introdução, Engels, seguindo o raciocínio que já apresentamos nas Guerras Camponesas, afirma que a característica das revoluções do século XIX é o fato de que, mesmo quando a maioria da sociedade entrava decididamente em cena, o fazia – consciente ou inconscientemente – “a serviço de uma minoria”.

Marx, em seu texto, apresenta uma criteriosa análise das lutas entre 1848 e 1849, fala de suas expectativas e das causas da derrota. É, na verdade, uma série de artigos políticos organizados sob um título único, que tem por eixo central analisar uma situação concreta, derivando as táticas adequadas à luta dos trabalhadores naquele momento. No furacão dos acontecimentos, da posição dos segmentos de classe e das classes em luta, Marx consegue vislumbrar que a luta central encontra-se na disputa em torno do Estado. Daí surgirá, pela primeira vez, o conceito de “ditadura do proletariado”, ou seja, a ideia de que todo Estado é sempre o Estado de uma classe social, a classe economicamente dominante que, graças a ele, se torna politicamente dominante.

As diferentes formas de Estado (monarquia, república, democracia, ditadura, etc) escondem uma substância comum que pode ser definida pelo caráter de classe, ou seja, pela garantia de certas relações sociais que se encontram na base do domínio de uma determinada classe. Daí a afirmação que, assim como a burguesia busca controlar o Estado na intenção de garantir seus interesses, os trabalhadores, no curso de sua luta, devem buscar consolidar-se como classe dominante, estabelecendo seu poder político. Esse argumento será desenvolvido no trabalho de Marx Guerra Civil na França, que também faz arte desta coletânea.

O que aconteceria, então, se, em sua luta, o proletariado aceitasse como limite as formas e conteúdos essenciais do Estado burguês como universalidade, ou seja, acreditasse que as formas institucionais do Estado Burguês serviriam tanto à burguesia como aos trabalhadores? Marx também parece acreditar, como Engels, que, desta forma, os líderes proletários estariam “irremediavelmente perdidos”. Diz Marx:

Vimos como, na verdade, a república de fevereiro não era senão, e não podia deixar de o ser, uma república burguesa; como, porém, o Governo Provisório, sob a pressão imediata do proletariado, fora obrigado a anunciá-la como uma república com instituições sociais; como o proletariado parisiense era ainda incapaz de ir além da república burguesa a não ser na representação e na fantasia; como ele agiu ao seu serviço em toda parte em que verdadeiramente passou à ação; como as promessas que lhe haviam sido feitas se tornaram um perigo insuportável para a nova república; como todo o processo de vida do Governo Provisório se resumiu a uma luta contínua contra as reivindicações do proletariado.9

O pano de fundo dos acontecimentos analisados por Marx deve ser inserido nos fatos que vão desde a queda de Napoleão até a Revolução de 24 de Fevereiro de 1848 que derrubou o Governo de Luís Filipe e seu ministro Guizot. O Congresso de Viena havia restabelecido o absolutismo na França em 1814, restaurando o domínio dos Bourbons com o governo de Luis XVIII e, depois, de Carlos X. Em 1830, o povo de Paris derruba Carlos X, assumindo o poder Luís Filipe, ligado à casa real dos Orléans e Bragança, mas que se sustentava no poder graças ao grande apoio do capital financeiro, daí ser conhecido como o “rei banqueiro”.

A composição do governo de Luís Filipe era ampla, envolvendo desde os reformistas do Partido do Movimento, que desejavam reformas para acalmar os operários, até o Partido da Resistência, que defendia a repressão ao movimento dos trabalhadores. Um grande banqueiro chamado Laffitte, mais próximo aos reformistas, comandou o primeiro ministério de Felipe, mas não foi capaz de segurar a imensa onda de protestos que se alastravam nas principais áreas industriais da França, sendo, portando, substituído por Guizot em 1831.

Guizot buscou unificar todas as correntes em uma espécie de governo de coalisão no qual participavam desde os defensores do absolutismo, que se chamavam de legitimistas, até socialistas como Louis Blanc, que propunha a criação de Oficinas Nacionais controladas pelos operários e financiadas pelo Estado para minimizar os efeitos da crise e do desemprego, passando por correntes burguesas republicanas, como a de Ledru-Rollin, até moderadas como a de Thiers.

Na forma de uma Monarquia Parlamentar, a exemplo do que se consolidou na Inglaterra, o governo francês era mantido por um número restrito de eleitores, uma vez que as eleições eram censitárias, isto é, o direito ao voto era definido pela riqueza declarada do cidadão, o que implicava em um eleitorado de apenas trezentas mil pessoas, excluindo a classe operária, os camponeses e as massas pobres das cidades.

A grande bandeira da oposição passa a ser a reforma eleitoral, primeiro para rever os critérios do censo, depois exigindo o voto universal. Uma das formas de financiar os grandes comícios era realizando banquetes a fim de angariar fundos para a ação política. No dia 22 de fevereiro, Guizot proibiu um destes banquetes, gerando um motim popular que levaria à derrubada de Luís Filipe dois dias depois.

Com a queda da Monarquia, é proclamada a República, sobre a qual se refere Marx no texto citado. O novo regime político estabelece o voto universal, abole a escravidão nas colônias10, cria as Oficinas Nacionais.

Em abril de 1848, é eleita uma Constituinte, amplamente dominada pelas facções burguesas, que abrem uma luta direta contra as propostas socialistas, principalmente contra as Oficinas Nacionais, acusadas de serem improdutivas e muito onerosas ao Estado. As oficinas são fechadas, o que leva a uma rebelião operária, dirigida por Auguste Blanqui, em junho de 1848 em Paris, revolta sufocada com grande repressão pelo general Cavaignac.

Marx também avalia, neste trabalho, a necessidade de uma aliança operária com os camponeses, uma vez que a divisão destes setores teria sido fundamental para a dominação da pequena burguesia e, depois, para a restauração do poder da grande burguesia. Houve um levante dos camponeses, mas apenas em dezembro de 1848, quando a rebelião operária já se encontrava sob controle de Cavaignac.

A pequena burguesia acreditava que a repressão aos operários e camponeses lhe garantiria a gratidão da grande burguesia e dos absolutistas, levando à consolidação de seu poder, mas o que se viu não foi isto. Parece que a história guarda muitos exemplos deste tipo de ilusão, o que não impede que os representantes da pequena burguesia continuem se chocando quando a grande burguesia procura desestabilizar governos que tanto a ajudaram.

Inicialmente faziam parte do projeto de Marx quatro artigos: A derrota de junho de 1848; o 13 de junho de 1849, Consequências do 13 de junho na Constituinte e A situação na Inglaterra. Na primeira edição de 1850, no entanto, Marx retira o material sobre a Inglaterra e o publica de outra forma, juntamente com Engels. Na segunda edição, o colaborador principal de Marx agrega um quarto texto que trata da abolição do sufrágio universal em 1850.

O quarto texto, presente no segundo volume da atual coletânea, é o famoso O 18 Brumário de Luís Bonaparte, escrito por Karl Marx entre dezembro de 1851 e março de 1852 e publicado pela Revista Die Revolution, de New York, no ano de 1852. Na verdade, podemos considerá-lo uma continuidade direta de seu estudo anterior, que agora se estende desde os acontecimentos de 1848 até o golpe de Luís Bonaparte em 1851. É, de fato, uma análise de conjuntura, ainda hoje estudada como modelo de exercitar esta arte em profundidade e não como costumamos ver, reduzida a comentários políticos superficiais ou crônicas dispersas dos acontecimentos políticos.

Marx elabora uma criteriosa análise dos fatos e da correlação de forças entre os diferentes atores políticos que disputavam o poder, revelando que, por trás das personificações políticas conjunturais, residem os grandes interesses de classe. No entanto, não faz isso pela simplista afirmação de conceitos retirados da análise estrutural do modo de produção capitalista e de categorias abstratas tais como burguesia e proletariado. Desenvolve-se uma rica análise das mediações, expressões políticas e caracterização de particularidades históricas, que permitem ao autor equacionar dialeticamente a difícil relação entre as dimensões estruturais, históricas e conjunturais.

O que fica evidente neste estudo é que a única maneira de compreendermos uma conjuntura é inserindo-a em seu desenvolvimento histórico, como na conclusão de Marx de que a história só surpreende aquele que de história nada entende. A dificuldade que o leitor terá pode ser a maior prova desta verdade. Uma primeira leitura fará você odiar aquele que lhe disse que este era um texto fundamental, pois você se verá soterrado por nomes, correntes políticas, acontecimentos que o autor irritantemente trata como se fosse – e, no caso da época, eram – do conhecimento de todos.

Neste caso, ainda mais que nos outros textos, é fundamental se fazer acompanhar de um bom manual de História Geral. Você verá que boa parte de sua dificuldade em entender o texto é, de fato, devido às lacunas existentes no seu conhecimento da História. Uma vez preenchidas tais lacunas, tudo fica mais fácil.

Logo após as rebeliões de 1848, houve eleições nas quais o mesmo Cavaignac se candidata, tendo por base seus inestimáveis serviços prestados à manutenção da ordem. Contra ele se candidata um obscuro e oportunista sobrinho de Napoleão Bonaparte, chamado Luís Bonaparte, que acaba vencendo as eleições.

A ascensão de Luís Bonaparte ao poder é o grande tema a ser explicado pela análise de Marx, pois, aparentemente, trata-se de fato que carece de qualquer explicação razoável. Luís Bonaparte, diante da catástrofe das revoltas de 1848, nas quais as principais classes em luta são derrotadas, apresenta-se como alternativa da Nação, acima de qualquer particularismo, manipulando tanto os sentimentos ligados ao descontentamento popular como o medo das classes dominantes diante dos levantes populares. Sua principal base de ação política seria aquilo que Marx chama de “lumpemproletariado”, literalmente “trapo” em alemão, ou seja, aqueles retalhos que sobram quando se recorta o tecido principal, no caso, inúmeros fragmentos que se desprendem da classe operária e do campesinato, produto do empobrecimento acelerado das massas urbanas e rurais e que assomam às cidades sem que consigam se inserir em nenhuma relação estabelecida de produção ou reprodução das condições sociais da vida.

O equilíbrio da luta entre a velha nobreza e as novas classes burguesas e proletárias leva a um vazio de poder que Luís Bonaparte aproveita, principalmente manipulando a imagem de seu tio e o prestígio que este tinha junto aos camponeses, pelo fato de ter realizado a reforma agrária, que criou uma numerosa classe de pequenos camponeses.

Novamente a grande questão se insere na ação humana que busca a emancipação em um momento histórico no qual as condições materiais não se apresentam. No entanto, este princípio fundamental do materialismo não pode ser visto como a rendição da ação humana a uma objetividade que faria a história no lugar dos seres humanos. É exatamente na obra O 18 Brumário que Marx construirá a frase que sintetiza brilhantemente toda a força do princípio materialista com a lógica dialética, resultando na formulação clara do que pensa o autor sobre o fazer histórico. Diz Marx logo no início do texto:

Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade, em circunstâncias escolhidas por eles próprios, mas nas circunstâncias imediatamente encontradas, dadas e transmitidas pelo passado.11

Ao mesmo tempo, estão sintetizados os dois elementos da visão marxiana: a determinação material da ação e os seres humanos como sujeitos da ação histórica. Quando os seres humanos estão agindo no terreno vivo da luta de classes, no calor das conjunturas políticas, exatamente quando ousam criar o novo é que acabam por “conjurar ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado”. Acabam, nas palavras de Marx, utilizando uma “linguagem emprestada”.

A metáfora da linguagem emprestada será recuperada logo a seguir, quando o autor compara a consciência dos novos sujeitos da história com o esforço do aprendiz que procura aprender um novo idioma e, no início, se empenha em traduzir as palavras da nova língua para aquela que ele domina. Segundo Marx, na luta política ocorre o mesmo que no aprendizado do novo idioma: apenas quando o indivíduo puder “manejá-lo sem apelar para o passado, esquecendo a própria língua no emprego da nova, terá assimilado o espírito desta última e poderá produzir livremente nela”.

Interessante é que a linguagem emprestada na análise é a de Luís Bonaparte, buscando reviver os tempos do primeiro Napoleão, mas o verdadeiro alvo do autor é a mensagem ao jovem proletariado e sua dificuldade de agir, a não ser nos limites da revolução burguesa. O espaço ocupado pelo oportunismo de Luís Bonaparte indica a ausência de uma ação política independente do proletariado que fosse capaz de representar os interesses gerais daqueles que são explorados pela ordem capitalista, logrando aglutinar em torno desta ação as massas camponesas e urbanas.

Recuperando Hegel, Marx lembrará que a história se repete, mas agrega que, na primeira vez, ela se dá como tragédia e, na segunda, como farsa. As novas repetições costumam fundir estes elementos em farsas que não deixam de ser trágicas, cada vez mais apresentando traços indisfarçáveis de estupidez.

A análise de Marx serve de base para a compreensão de inúmeros acontecimentos que se seguiram, a ponto de Engels, em seu prefácio de 1885 para a terceira edição da obra, constatar a atualidade do texto, mesmo depois de trinta e três anos de sua primeira publicação. Só nos resta afirmar que, na presente edição, cento e quarenta e cinco anos depois, o texto continua desconcertantemente atual.

O texto é atual não apenas em função da Sociedade 10 de Dezembro, que distribuía fartamente auxílio aos pobres para cooptá-los politicamente a fim de sustentar propósitos políticos contrários aos seus interesses, e da loteria que distribuía, mais que dinheiro, a ilusão da mobilidade social, mas pelo dilema da relação entre consciência e posição de classe, desde a análise dos camponeses, até a da brilhante reflexão sobre o caráter da pequena burguesia.

Para Marx, a manipulação dos camponeses como base de massas para os projetos do pequeno Napoleão, na expressão emprestada da obra de Victor Hugo sobre o tema, não pode ser explicada apenas pela malévola engenhosidade do oportunista, mas pelas determinações materiais que podem ser encontradas nas relações sociais de produção que se encontram na base da consciência camponesa.

Diz Marx:

Na medida em que milhões de famílias vivem em condições econômicas de existência que as separam pelo seu modo de viver, pelos seus interesses e pela sua cultura das outras classes e as opõem a estas de um modo hostil, aquelas formam uma classe. Na medida em que subsiste entre camponeses detentores de pequenas parcelas uma conexão apenas local e a identidade dos seus interesses não gera entre eles nenhuma comunidade, nenhuma união nacional e nenhuma organização política, não formam uma classe. São, portanto, incapazes de fazer valer o seu interesse de classe em seu próprio nome, quer por meio de um Parlamento quer por meio de uma convenção. Não podem representar-se, antes têm que ser representados.12

Muitas vezes, esta reflexão foi vista como uma espécie de preconceito de Marx contra os camponeses, principalmente pelo raciocínio que antecede esta citação e que os compara a um “saco de batatas”. Na verdade, existe aqui um raciocínio que nos remete à concepção de classes em Marx que vai muito além da caracterização específica do campesinato, mas revela um aspecto mais universal que pode ser aplicado ao próprio proletariado. Uma classe não pode ser assim considerada apenas por ser composta de pessoas iguais que atuam no mesmo espaço das relações sociais, daí a metáfora feita com as batatas em um saco.

São uma classe na medida em que partilham da mesma situação de classe, a mesma posição nas relações sociais de produção, comungam de elementos comuns quanto aos valores morais ou culturais. No entanto, somente isso não basta, porque, para Marx, o conceito de classe está em movimento e não suporta a rigidez cadavérica do conceito positivista 13. Os camponeses, neste sentido, são uma classe, mas ainda não são. Porque uma classe se define também por sua ação de classe, sua capacidade de agir como uma classe na defesa de seus interesses específicos.

O mesmo argumento será utilizado por Marx em inúmeras oportunidades ao tratar do proletariado, como nas afirmações do Manifesto Comunista sobre a formação do proletariado enquanto classe e, portanto, enquanto partido, ou na Sagrada Família, quando elabora a curiosa afirmação sobre a formação do proletariado como proletariado. No próprio O 18 Brumário podemos ver que a classe operária não foi capaz de se constituir como classe, perdendo sua autonomia de classe para os setores burgueses.

Ocorre é que Marx realmente acredita que a posição de classe dos camponeses traz, em si mesma, maiores dificuldades para que estes se apresentem como classe em si, devido ao isolamento, e, ainda de forma mais decisiva, pela natureza das relações mercantis que obrigam a divisão do trabalho entre produtores independentes de diferentes mercadorias, ao passo que a produção fabril implica em trazer esta divisão para dentro do local da produção, tornando mais provável a ação política comum. No entanto, nem por isso esta passagem é imediata ou natural entre os proletários urbanos, que podem permanecer simplesmente como indivíduos submetidos à disputa por uma vaga no mercado de trabalho. Como vemos, tem batata para todo mundo.

O que nos importa é que, uma vez não se apresentando no terreno da luta política como uma classe, ainda que, diante das relações de produção, na cultura ou nas condições de vida, o sejam, uma classe que não se representa acaba por se fazer representar por outra. Parece-me que aí está a questão fundamental, tanto para camponeses como para proletários.

A conjuntura específica estudada por Marx tem muito a nos dizer cento e quarenta e cinco anos depois. Uma vez que as classes fundamentais em luta (nobreza, burguesia e proletariado) se anulam no equilíbrio da luta, como se estudou em As Lutas de Classes na França, surge uma classe que acaba ocupando o vazio deixado por este equilíbrio. Justamente uma classe que se julga acima das classes e do antagonismo entre elas e tem a pretensão de representar a universalidade de uma sociedade tomada como abstração é a pequena burguesia.

Vejamos a sua entrada na cena histórica analisada pelo autor:

Frente à burguesia coligada, formara-se uma coligação de pequenos burgueses e operários, o chamado partido “socialdemocrata”. Os pequeno-burgueses viram-se mal recompensados depois das jornadas de junho de 1848, viram em perigo os seus interesses materiais e postas em causa pela contra-revolução as garantias democráticas que deviam assegurar-lhes a possibilidade de fazer valer esses interesses. Aproximaram-se, portanto, dos operários (…). Às reivindicações sociais do proletariado limou-se-lhes a ponta revolucionária e deu-se-lhes uma feição democrática; às exigências democráticas da pequena burguesia retirou-se a sua forma meramente política e afiou-se a sua ponta socialista. Assim nasceu a “socialdemocracia”. (…) O caráter peculiar da socialdemocracia consiste em exigir instituições democrático-republicanas, não como meio para abolir ao mesmo tempo os dois extremos, capital e trabalho assalariado, mas para atenuar o seu antagonismo e convertê-lo em harmonia. Por diferentes que possam ser as medidas propostas para alcançar esse fim, por muito que se possa revestir por representações mais ou menos revolucionárias, o conteúdo permanece o mesmo. Esse conteúdo é a transformação da sociedade por via democrática, mas uma transformação dentro do quadro da pequena burguesia.14

Portanto, como vemos, a pequena burguesia arrasta o proletariado para um campo mais que terminológico, fundamentalmente político, que é o campo dos interesses burgueses. Daí a conclusão de Marx que, independente de a burguesia controlar seu Estado diretamente, o caráter de classe do Estado burguês está garantido, ou seja, o caráter de classe do Estado não é dado pela classe ou origem de classe de quem o ocupa, mas pelos interesses gerais que acabam por prevalecer, a garantia da propriedade privada, a organização hierárquica da classe trabalhadora, a livre compra e venda da força de trabalho, a acumulação privada da mais valia.

Neste sentido, a posição pequeno-burguesa vai muito além da posição de classe pequeno-burguesa, mas se define pelo fato de que é uma posição política que não ultrapassa, na luta de classes, os limites que esta classe não ultrapassa na própria vida. Na ausência de uma proposta política proletária capaz de hegemonizar a luta tanto contra a nobreza quanto contra a burguesia, a pequena burguesia assume o papel de representante universal dos explorados, conduzindo-os para o pântano da conciliação e do amoldamento à ordem do capital.

Nada mais atual.

O último texto que fecha o segundo volume desta coletânea é A guerra civil na França, de Marx, escrito entre abril e maio de 1871 e publicado ainda no mesmo ano. Este texto trata não apenas da continuidade direta das lutas descritas nos dois primeiros trabalhos, mas avalia a mais importante luta operária do período em que Marx e Engels viveram: a Comuna de Paris.

Tanto em As Lutas de Classes na França como em O 18 Brumário, Marx só podia vislumbrar uma ação de classe que ousasse uma autonomia histórica, descrevendo muito mais uma situação na qual os trabalhadores ainda naufragavam na linguagem emprestada de seus adversários de classe. O que chamou a atenção de Marx foi a centralidade da luta pelo controle do Estado. No entanto, quando os trabalhadores podiam interferir diretamente nos acontecimentos, não conseguiam ir além de adjetivar o Estado burguês com tinturas sociais, como no citado caso da criação das Oficinas Nacionais.

Os trabalhadores ainda tiravam sua poesia do passado e o cérebro dos mortos assombrava os vivos. A Comuna de Paris é o episódio histórico em que, pela primeira vez, os trabalhadores rompem com a forma do Estado burguês e anunciam uma nova substância, ainda à procura de uma forma nova. O conteúdo finalmente foi além da frase.

Não que as condições históricas fossem substancialmente diferentes daquela que marcou os episódios anteriores, tanto que Marx considerou a luta dos trabalhadores franceses como um “assalto aos céus”, mas a ação política dos comunardos rompeu os limites do até então existente, criou um novo patamar que poderia ser utilizado como nova base objetiva para as futuras ações revolucionárias da classe, como de fato ocorreu em todas as revoluções do século XX, com especial destaque para a Revolução Soviética.

A Comuna de Paris ocorreu no contexto da guerra Franco-Prussiana (1870-1871). Luís Bonaparte, transformado em Napoleão III depois do golpe dado em dezembro de 1851, neste momento acabava de assinar a capitulação da França. No entanto, a cidade de Paris não aceita a rendição e se rebela proclamando a República. O velho republicano conservador, Thiers, assume o governo da Republica e tenta assinar um armistício com os alemães, o que faz com que os trabalhadores de Paris se rebelem mais uma vez.

Atendendo ao chamado de Auguste Blanqui, a Guarda Nacional, formada por todos os adultos da capital, marchou, no dia 31 de outubro de 1870, até a Prefeitura de Paris, prendendo as autoridades do governo. No entanto, as tropas burguesas impediram a tomada do poder, e Blanqui é preso. Garantida a República burguesa, Thiers assina a capitulação de Paris em janeiro de 1871, entregando as armas aos alemães, mas a Guarda Nacional proletária se nega a depor armas e se rebela outra vez em 18 de março de 1871.

Thiers foge para Versalhes e os trabalhadores elegem diretamente uma Assembleia que governaria Paris, a Comuna de Paris. Engels já havia antecipado este erro. Os trabalhadores, como irá concluir Marx, deveriam ter atacado Versalhes e destruído o poder burguês, mas não o fizeram.

Apesar disso, a experiência da Comuna irá ser essencial para anunciar as formas de um futuro Estado proletário. Diz Marx:

A Comuna era, essencialmente, um governo da classe operária, o produto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora, a forma política finalmente descoberta, com a qual se realiza a emancipação econômica do trabalho.15

O grande ensinamento que Marx retira da experiência da Comuna é sua teoria do Estado. Não se trata apenas de tomar o poder, mas de quebrar a antiga máquina burguesa e substituí-la por um novo tipo de Estado proletário. Concluía Marx que “a classe operária não pode limitar-se simplesmente a se apossar da máquina do Estado tal como se apresenta e servir-se dela para seus próprios fins”.

A forma finalmente encontrada do poder político próprio da Revolução proletária rompe os limites da forma republicana burguesa em vários pontos. Os trabalhadores assumem o controle das oficinas e de toda a vida na cidade abolindo a propriedade privada, os salários são todos equiparados ao salário médio de um operário, o voto se universaliza, inclusive com a participação ativa das mulheres, e é organizado por distritos, e os representantes eleitos formam a Comuna. Esta não é um órgão apenas “legislativo”, mas cada comunardo, ao discutir e deliberar sobre um problema, tem que organizar-se para resolvê-lo, superando a velha e aparente insolúvel contradição entre poderes legislativo e executivo. Os mandatos eram todos, a qualquer momento, revogáveis pelos distritos que os elegeram. Arma-se todo o povo eliminando a separação entre população e um corpo armado.

No entanto, a experiência de Estado Proletário restringe-se a Paris. Enquanto Blanqui segue preso em Versalhes, os burgueses e oficiais de Thiers seguem livres e conspirando na cidade vermelha. A pequena burguesia participa das eleições da Assembleia em 29 de março e passa a defender um acordo com Thiers. Enquanto isso, em Versalhes, suprimia-se a liberdade de imprensa, proibia-se a organização de clubes operários, e Blanqui e Flourens eram condenados à morte.

Talvez o fator decisivo para a derrota tenha sido a separação entre os operários de Paris e os camponeses. Thiers usa balões para lançar folhetos alertando os camponeses sobre os riscos do comunismo que marchará para destruir suas propriedades e famílias. Com o apoio dos camponeses e com o auxílio dos alemães que libertam soldados e permitem que a República se arme, Thiers marcha sobre Paris e a sufoca num banho de sangue. O ataque iniciou-se no dia 2 de abril, mas a cidade só foi tomada em 27 de maio de 1871. Os trabalhadores resistiram rua por rua, barricada por barricada, incendiaram a cidade, mas não se entregaram.

Os revolucionários capturados eram levados ao cemitério de Père Lachaise e sumariamente fuzilados. Foram trinta mil mortos na luta, quarenta e cinco mil prisioneiros, dos quais treze mil condenados, duzentos e setenta à morte, quatrocentos a trabalhos forçados e quatro mil deportados. A burguesia retoma o poder e as damas da sociedade vão até as cadeias ofender e cuspir nos revolucionários presos pela ousadia de criar uma sociedade nova.

A conclusão de Marx revela a maturidade do conceito da revolução proletária e da necessidade de os trabalhadores organizarem seu novo poder como um Estado que derrote seus adversários e consolide seu poder de classe. Na transição do capitalismo ao comunismo, diz Marx, ocorre um período de transição ao qual corresponde uma transição política em que o Estado não pode ser outro a não ser a “Ditadura Revolucionária do Proletariado”. Este Estado, que deve preparar o terreno para a abolição das classes e, portanto, do próprio Estado, não pode ser extinto pelo ato político da revolução, iniciando de imediato a livre associação dos trabalhadores.

Uma das consequências da Comuna e sua derrota foi a divisão na Associação Internacional dos Trabalhadores entre marxistas e anarquistas, exatamente pelas divergências em relação à temática do Estado.

Todas as experiências descritas nos textos aqui apresentados influenciaram decisivamente as revoluções do século XX e abriram o caminho para que os trabalhadores construíssem sua autonomia histórica e, mais que tirar a poesia do futuro, começassem a escrevê-lo. Os trabalhadores, como afirmava Marx em seu trabalho sobre a Comuna, “não têm nenhuma utopia já pronta para introduzir por decreto”, eles não têm “que realizar nenhum ideal, mas simplesmente libertar os elementos da nova sociedade que a velha sociedade burguesa agonizante traz em seu seio”.

As revoluções do século XIX preparam as revoluções do século XX. O século XXI amanhece, e o sol que desponta no horizonte avermelha o planeta, iluminando o poema do futuro.

1 Prefácio ao livro A Revolução antes da Revolução: as revoluções do século XIX, da Coleção “Assim Lutam os Povos” da Editora Expressão Popular.

2 Coordenador da coleção “Assim Lutam os Povos”, professor de Teoria Social na Faculdade de Serviços Sociais da UFRJ e membro do Comitê Central do PCB.

3 ENGELS, F. – As guerras camponesas na Alemanha, em A Revolução antes da Revolução. Volume I, São Paulo, Expressão Popular, 2008, p. 144.

4 Carta de Engels a Kautsky, de 1º de abril de 1895.

5 Esses elementos podem ser vistos na orientação que Marx e Engels, como dirigentes da Liga dos Comunistas, deram aos operários alemães na avaliação das revoltas de 1848 e 1849, no texto Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas.

6 MARX, K. 18 Brumário de Luís Bonaparte em A Revolução antes da Revolução. Volume II, São Paulo, Expressão Popular, 2008, p. 212.

7 Apesar de ser utilizado o termo Alemanha, não havia ainda se formado o Estado Nacional alemão, o que ocorreria apenas em 1870-1871. Na época, ainda sob a forma do Império Prussiano, tratava-se muito mais de uma referência à cultura germânica, que buscava se afirmar como parte do movimento que levaria, duas décadas depois, à formação da Alemanha.

8 ENGELS, F. – As guerras camponesas na Alemanha, em A Revolução antes da Revolução. Volume I, São Paulo, Expressão Popular, 2008, p. 144.

9 MARX, K. As Lutas de Classes na França em A Revolução antes da Revolução. Volume II, São Paulo, Expressão Popular, 2008, p. 90.

10 Apesar de a Revolução Francesa ter ocorrido em 1789 e a Declaração dos Direitos Universais do Homem e do Cidadão terem sido promulgadas depois como Constituição da França, a escravidão não havia sido abolida nas colônias, assim como se mantinha a proibição de associação dos trabalhadores para defender seus salários e de participação política das mulheres. No ato da aprovação da Declaração dos Direitos do Homem, uma mulher propôs que se apresentasse uma declaração de direitos da mulher, o que, além de não ocorrer, levou à expulsão e prisão daquela que havia apresentado a proposta.

11 MARX, K. O 18 Brumário de Luís Bonaparte em A Revolução antes da Revolução. Volume II, São Paulo, Expressão Popular, 2008, p. 207.

12 MARX, K. O 18 Brumário de Luís Bonaparte, p. 207.

13 Ver, a respeito, “O conceito e o não conceito de classes em Marx” em IASI, M. – Ensaios sobre consciência e emancipação. São Paulo, Expressão Popular, 2007, pp. 101- 121.

14 MARX, K. O 18 Brumário de Luís Bonaparte, p. 245.

15 MARX. K. – A guerra civil na França, p. 407.