EMPRESAS JUNIORES COMO APARELHOS DE HEGEMONIA DO CAPITAL: Discurso e disputa no espaço universitário

Por: Ghabriel Ibrahim, militante da UJC

Muito embora a posição contrária de nossa juventude frente às empresas juniores esteja colocada de modo explícito em nossas resoluções congressuais há alguns ciclos, a experiência cotidiana em mais de um núcleo universitário expõe que ainda há certa dificuldade na compreensão dos motivos pelos quais nos opomos a essas instituições. A resposta comum e apressada dá conta de denunciar as EJs como “ingerência privada” na educação pública, o que não deixa de ser verdade, mas também o é o fato de que são instrumentos criados pelos alunos sem possuir fins lucrativos. A “ingerência” é, portanto, muito mais sutil que a que se nota em outros mecanismos que podem ser acusados do mesmo mal que visam, de modo mais explícito, a privatização das IEs. No caso das Empresas Juniores, o fundamental é desvelar seu caráter instrumental na disputa ideológica – o que, também argumentarei, não se trata de questão menor.

O PCB compreende, a partir de acúmulo gerado pela larga tradição comunista e progressista de modo geral de nosso país, que o caráter da Revolução Brasileira é socialista. Isso se deve ao fato de compreender que as condições objetivas para uma revolução desse tipo estão postas: a predominância de relações capitalistas de produção, do assalariamento, as formas jurídicas que guardam relação dialética com a produção, tudo isso trata-se de condições objetivas. De modo sintético, o camarada Edmilson Costa (2013) aponta que “as condições objetivas são dadas pelo desenvolvimento das forças produtivas e da sociedade, portanto independem da vontade das pessoas, das organizações políticas e sociais.” Assim, o fundamental é avançar nas condições subjetivas para construir um processo revolucionário.

As condições subjetivas são intimamente relacionadas à consciência do povo. São afetadas pelo trabalho político cotidiano e dizem respeito à forma como cada indivíduo se enxerga dentro de sua classe, como enxerga sua classe, como enxerga sua relação com outros indivíduos de mesma ou outra classe… Enfim, historicamente os partidos de vanguarda tiveram como objetivo “elevar a consciência” das classes entendidas como revolucionárias com o intuito de, precisamente, conquistar as condições subjetivas necessárias para promover uma revolução.

A tal “consciência de classe” não se conquista de forma espontânea. Novamente, cabe lembrar do texto já citado do camarada Costa (2013):

Como dizia Lenin, a consciência do proletariado não é produto mecânico de sua condição de classe, pois na sociedade burguesa os trabalhadores são influenciados pela cultura dominante que, com seus meios de comunicação e seu aparato ideológico, diariamente procura manipular as informações, o ensino e a cultura no sentido de manutenção da ordem burguesa. Nessa conjuntura, o proletariado é influenciado pelos valores da sociedade capitalista. Lenin explica que a supremacia da sociedade burguesa no capitalismo se consolida porque a ideologia burguesa é muito mais antiga que a ideologia proletária, e, principalmente, porque possui meios de difusão incomparáveis maior e mais numeroso que a do proletariado.

De forma espontânea é possível que o trabalhador lute por melhores condições de trabalho, que desenvolva reivindicações específicas a partir de sua experiência cotidiana, e mesmo que entenda ser relevante se organizar em sindicatos. Mas a percepção de que integra uma classe revolucionária a cumprir um papel histórico de emancipação, de pôr fim à exploração do homem pelo homem, esta não vem senão a partir de um esforço interno que pode (e deve!) ser promovido por um partido de vanguarda, rompendo com o economicismo espontaneísta.

Os aparelhos ideológicos burgueses, portanto, são construídos e mantidos com o intuito de perpetuar a dominação de classe e impedir os avanços subjetivos necessários para a construção de uma revolução socialista. De modo geral, esses aparelhos atuam desdobrando, justificando e naturalizando certos efeitos subjetivos que o próprio modo de produção já impõe. Entre os mais relevantes no momento, destaco aqueles apontados por Marx em seu “Sobre a questão judaica”: ao criticar os recém surgidos “direitos do homem”, Marx aponta que a supervalorização da liberdade individual no capitalismo “faz com que cada homem veja no outro homem não a realização, mas, ao contrário, a restrição de sua liberdade”. Falando sobre a “igualdade”, destaca que se trata da igualdade dessa liberdade, isto é, a uniformização de todos os homens como “mônadas” independentes e rivais umas das outras. Pois bem. Retornemos em momento mais oportuno à discussão sobre ideologia: passemos a uma breve análise do projeto Empresa Júnior.

As empresas juniores surgem na França no ano de 1967 com o objetivo de oferecer aos estudantes melhor formação através de aprendizados práticos. Podem ser caracterizadas como associações sem fins lucrativos construídas pela iniciativa dos próprios estudantes. Já aí, porém, é relevante fazer uma ressalva: segundo Lopes, Lopes e Lima (2007, p.35) ao analisar as EJs em cursos de administração, “em muitos casos o surgimento da EJ não foi um processo espontâneo nascido da iniciativa dos estudantes, mas, ao contrário, uma medida que decorreu do interesse das IES que perceberam o alto valor atribuído, pelas instâncias oficiais, à existência dessas estruturas”. Normalmente, são organizadas através das seguintes instâncias: assembleia geral, conselho administrativo, diretoria executiva, conselho consultivo e conselho fiscal. Para além do fato de que, como já mencionado, não é incomum que não sejam fruto do desejo espontâneo dos estudantes, há uma questão bastante relevante no que diz respeito à organização dessas instituições: elas estão inseridas em uma organização nacional chamada Confederação Brasileira de Empresas Juniores (BrasilJunior) que se desdobra em órgãos regionais. Ou seja, há maior centralização política do que pode supor um olhar descuidado.

O site da BrasilJunior é claro em seus objetivos: “formar, por meio da vivência empresarial, lideranças comprometidas e capazes de transformar o Brasil em um país empreendedor”. Essa é, segundo seu site oficial, “a marca que querem deixar no mundo”. Ao longo de sua página principal, mais uma série de referências ao fazer “empreendedor”, grande falta em nosso país, podemos supor – muito embora já em 2001 fôssemos, de acordo com a própria BrasilJunior, o país com o maior número de EJs no mundo, com mais de 600 distribuídas por 14 estados. Hoje, suas mais de 1400 EJs filiadas contam com o apoio explícito, verificável ao fim da página principal, de empresas como Ambev, BTG e Americanas – próximas, para dizer o mínimo, de um grande patrono da privatização e da precarização do Ensino Público, José Paulo Lehman, recém envolvido em escândalo bilionário – além de multinacionais como Nestlé e Pirelli. A estes interessam o projeto “Brasil empreendedor”, certamente discutido à exaustão em seu último Congresso Nacional, o 28º Encontro Nacional de Empresas Juniores, em 2021. Lehman, através de sua Fundação, formou figuras políticas que constituem grupo relevante na Câmara, atuando com força em assuntos de seu interesse. Na recente discussão acerca do Fundeb, das cinco emendas que o relatório da PEC 15/2015 que altera o FUNDEB recebeu em sua reta final, quatro foram propostas por deputados formados pela Fundação Lemann e com base de financiamento de campanha no empresariado. De fato, eles compõem a Bancada da Lemann. As emendas foram apresentadas por Tiago Mitraud, Tabata Amaral e Felipe Rigoni

Mas a BrasilJunior também possui o que chama de “produtos”. Logo deve chamar a atenção da juventude universitária um denominado “Universidades Empreendedoras”. Trata-se de ranking elaborado pela confederação com “patrocínio estratégico essencial do Bradesco” com a intenção de medir a “cultura empreendedora, a inovação e a extensão das instituições de ensino superior do Brasil”, além de um ponto curiosamente associado a esses outros: a atração de capital financeiro.

O ranking não se trata de obra menor: foi lançado oficialmente em 8 de dezembro na Câmara dos Deputados, em Brasília. Evidencia a movimentação política da confederação em conluio com o grande capital e seus avanços programáticos sobre a coisa pública. O MEJ, afinal, se reivindica como apartidário, mas com “consciência do papel no diálogo por um país melhor e que para transformá-lo se faz importante a discussão política”. Por isso a Brasil Junior atua com o Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif) para “expandir o conceito de sucesso do Ranking das Universidades Empreendedoras”.

Analisemos brevemente alguns dos indicadores relevantes para o ranking, disponível no site da iniciativa.

Em primeiro lugar, a Cultura Empreendedora: esta é medida através da análise de “postura empreendedora” tanto entre os discentes quanto entre os docentes, além de uma avaliação da grade curricular. Os objetivos políticos se conquistam, fica claro, através também do controle pedagógico. Também interessante é o indicador chamado de “Capital Financeiro”: é explícita a importância dada no projeto para um “Brasil empreendedor” à presença de Fundos Patrimoniais na universidade. Já tratei brevemente do que são esses fundos e de seu perigo para a autonomia universitária em outro texto; basta apontar que integram o projeto do órgão nacional responsável pela “qualidade” das EJs.

A nível estadual, o Rio de Janeiro conta com a RioJunior, ligada a BrasilJunior, que tem entre seus produtos o “Papo Empreendedor”, primeiro contato da RioJunior com alguma EJ. Conta também, para que se evidencie novamente a importância dada à questão, com uma Diretora de Formação Empreendedora. Não há propriamente nenhum membro destacado de modo aberto à dimensão pedagógica de forma ampla: a grande formação adquirida parece ser esta introjeção da perspectiva do empreendedorismo. Em material oficial elaborado por seu então presidente, consta que o principal produto da RioJunior é “o empreendedor comprometido e capaz de transformar o país”. Por isso, cada EJ deve “promover a internalização da cultura empreendedora por seus membros”.

O destaque dado neste texto para o projeto empreendedor que parece assumir função central nas EJs se dá também por conta da relevância já apontada para a disputa ideológica. No trabalho corriqueiro de um partido de vanguarda de trazer as massas da luta particular de seu cotidiano para a luta geral pela emancipação humana, essa é das disputas mais encarniçadas. Nosso trabalho se expande e já possui relevância nacional no âmbito universitário, no que sua crescente qualificação não deve atingir barreiras, e para tanto é necessário que avancemos no acúmulo acerca da própria ideia de ideologia.

A obra marxista mais famosa sobre ideologia é a Ideologia alemã, série de escritos de Marx produzidos em cerca de 1846-1847, mas que teve sua primeira publicação somente em 1950. Certa tradição marxista tende a reduzir ideologia a “falsa consciência”, a um mero falseamento do real que impede o desvelamento da opressão. Reduzir ideologia a essa dimensão nos colocaria em uma posição cômoda de não pensar no PORQUÊ essa “falsa consciência” atinge tanta influência entre as massas. Por óbvio, os aparelhos de difusão ideológica cumprem seu papel, assim como a própria forma de viver e sobreviver, mas uma série de outros autores tentou complexificar de modo interessante essa categoria.

Entre os vários meios de difusão da ideologia, nenhum prescinde de uma linguagem. Nesse sentido, estudiosos nos mais diversos campos já apontaram que toda linguagem possui uma dimensão ideológica. Rompendo com o paradigma que entendia a linguagem como neutra, Bakhtin, linguista russo, notou que toda língua possui dimensão simultaneamente formal, subjetiva e social.  Helena Brandão, estudiosa de Bakhtin, afirma que

“a linguagem enquanto discurso não constitui um universo de signos que serve apenas como instrumento de comunicação ou suporte de pensamento; a linguagem enquanto discurso é interação, e um modo de produção social; ela não é neutra, inocente e nem natural, por isso o lugar privilegiado da manifestação da ideologia” (BRANDÃO, 2004).

Já segundo Misoczky, Fernandes e Bucco (apud COSTA, 2010), deve-se ressaltar que

em vez de tratar a ideologia como falsa consciência ou como sistema coerente de crenças, Bakhtin e os autores de seu Círculo consideravam ideologia como o meio simbólico essencial através do qual as relações sociais são constituídas. (…) As ideologias são materiais, não somente porque todas as formas possíveis da ação humana incluem algum tipo de símbolo semiótico – palavras, gestos, expressões, vestimentas, etc… – mas porque tais signos produzem efeitos reais nas relações sociais.

Em outras palavras, partindo de uma perspectiva histórico-discursiva, a ideologia corresponde à hegemonia do sentido. Trata-se, hoje, da Globalização da ordem do discurso neoliberal.

É a partir disso que chegamos à palavra da ordem: empreendedorismo. Como campo de estudo, surge em Harvard, em 1947, como um desdobramento de estudos acerca da história dos negócios, focando em empresas isoladas. Somente a partir de 1970, porém, começa a haver maior interesse pelo tema (KATZ apud COSTA, 2010). Sua expansão real se dá apenas em 1980, não coincidentemente período em que a própria ideia de neoliberalismo passa a integrar de forma mais corrente os vários discursos econômicos, sobretudo por conta de Pinochet e Thatcher. Até 1975, só havia um periódico – Journal of Small Business Management – que representava espaço para publicação sobre empreendedorismo. Nos últimos anos, o número de faculdades que oferecem cursos de empreendedorismo nos EUA é da casa de milhares.

No Brasil, a oferta de cursos de empreendedorismo data de 1990. A categoria incorpora-se às grades curriculares das IES por meio da Resolução CNE/CES 4 de 13/07/2005, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Administração. Lê-se que o perfil esperado de um administrador é voltado para “capacidade empreendedora e crítica”. Não é necessário ser marxista para saber, como Foucault, que “todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo”. Hoje – ou melhor, já há quase vinte anos -, entende-se que é fundamental que o Administrador formado assuma “postura empreendedora”.

Em estudo fundamental para este artigo, a tese da professora Alessandra de Mello Costa recupera algumas tentativas de definir o “empreendedor”, tanto a nível internacional como nacionalmente. Foquemos nestas últimas por serem mais relevantes à nossa atuação. Após apontar três abordagens mais comuns para discutir a categoria de empreendedorismo (uma mais comportamental, outra derivada da literatura gerencial e uma terceira mais propriamente econômica), Costa nota que os empreendedores “são concebidos de forma semelhante como indivíduos que impulsionam a máquina capitalista ao prover novos bens de consumo, além de métodos inovadores de produção e transporte, com a inequívoca função social de identificar oportunidades e convertê-las em valores econômicos” (COSTA, 2010). Em artigo de 2008, a professora ressalta a coerência entre essa compreensão e a hegemonia discursiva neoliberal, em que uma figura idealizada do executivo de sucesso passa a ser exemplo de conduta para toda a sociedade a fim de disseminar “investimento constante e exclusivo da vontade na produção de riqueza abstrata” (grifos nossos), o que “prolonga e intensifica a obrigação do homem moderno de dedicar sua vida ao ganho” (BARROS, COSTA & MARTINS, 2008)

Politicamente, interessa em particular uma definição dada em 2006 pela Associação Nacional de Entidades Promotoras de Empreendimentos Inovadores: segundo esta associação, o empreendedor é nada menos que “solução macroeconômica do problema do desemprego tecnológico generalizado”. O desemprego, portanto, passa a ser despolitizado, fruto inescapável do avanço tecnológico, e sua solução é individual: inovar, empreender, competir; enfim, passa pela vontade de cada indivíduo. Por óbvio, tendo em vista que a China é hoje vanguarda tecnológica e lá o desemprego não é sequer uma questão, esse ponto de vista se evidencia como pura propaganda liberal. A crítica de Saraiva (2011) vai nesse sentido: o pesquisador afirma que

ter uma formação empreendedora significa consentir, do ponto de vista profissional, às iniciativas empresariais pró-flexibilização do trabalho, já que passa a ser responsabilidade dos indivíduos “empreender” suas carreiras e oportunidades profissionais. À medida que considera como individuais as questões profissionais, que passam a ser definidas de acordo com a capacidade de competição (e vitória) dos indivíduos, esta visão enfraquece o coletivo e instala uma lógica darwiniana de todos contra todos, em que só se beneficiam as empresas, em detrimento da sociedade. (SARAIVA, 2011)

Como é possível conciliar uma defesa do fim da exploração do homem pelo homem com a defesa do projeto “Brasil Empreendedor”? Como é possível entender o trabalho como categoria eminentemente social e demandar independência econômica em nosso país de capitalismo dependente e ao mesmo tempo defender a compreensão de que o emprego, o desemprego e a inovação não são questões primordialmente políticas, mas sim individuais? A ideologia do empreendedorismo não é contrária somente ao marxismo: o é a qualquer linha política que entenda que para avançarmos enquanto nação não podemos ser coniventes com a cantilena neoliberal. Enquanto militantes por uma Universidade Popular, não é possível prescindir dessa denúncia.

Mas se os estudantes se interessam pelas EJs, e esse interesse parece ser crescente, o discurso ideológico deve estar mobilizando interesses reais. Para além das demandas econômicas como maior facilidade de conseguir um emprego após formado, o estudante sente falta de trabalhos mais práticos em sua formação. A educação pela prática também possui um histórico contraditório, decorrente dos descaminhos da história e da relação comum entre formação e trabalho. Saviani aponta como marco para seu desenvolvimento a abolição da escravidão, a partir da qual surge maior demanda por formação de mão de obra, e tem marco relevante nas Reformas Capanema que visaram capacitar um contingente para servir de mão de obra barata. A partir dessas reformas surge a divisão entre educação regular e cursos profissionalizantes e técnicos, reforçando a divisão social do trabalho.

Para uma crítica consequente das empresas juniores, a categoria “trabalho” é fundamental. Se pensamos que o papel da educação é a formação humana, logo temos que nos confrontar com uma pergunta: o que define a existência humana? Do ponto de vista marxista, o trabalho é intrínseco à experiência humana na medida em que “não é outra coisa senão agir sobre a natureza e transformá-la” (SAVIANI, 2003), e o ser humano tem como particularidade o fato de precisar continuamente produzir sua própria existência a partir do trabalho, de uma ação transformadora guiada por objetivos. Em outras palavras, “os animais têm sua existência garantida pela natureza e, por consequência, eles se adaptam à natureza. O homem tem de fazer o contrário: ele se constitui no momento em que necessita adaptar a natureza a si, não sendo mais suficiente adaptar-se à natureza” (SAVIANI, 2003). 

A crítica à forma alienada de trabalho que é hegemônica na sociedade capitalista já preencheu milhares de páginas de teóricos marxistas. Resta num texto como esse ressaltar, a partir da compreensão latu de trabalho, sua relação com a própria constituição da humanidade e com a pedagogia em termos históricos, refletindo, por sua vez, as contradições presentes nessa relação. A divisão entre educação regular e educação profissional, por exemplo, tipicamente burguesa, pressupõe a fragmentação do trabalho em especialidades autônomas mais demandadas em dado momento histórico e reforça, já na distribuição dos currículos, a divisão entre os que pensam o processo produtivo e os que o executam. Mas como ressalta Saviani, “a separação dessas funções é um produto histórico-social e não é absoluta, mas relativa” (2003). Cabe aos marxistas, a partir de uma crítica à forma particular com que se expressam as relações de trabalho no capitalismo, propor, a nível educacional, uma articulação maior entre ensino e trabalho, suprimindo a divisão artificial entre trabalho manual e trabalho intelectual, tensionando as contradições impostas pelo Capital no ensino.

É nesse sentido que certa identificação do alunado com parte do projeto das EJs é legítima: os estudantes querem aprendizagem na prática, não se satisfazem com a pura teoria, além de quererem remuneração para permanência estudantil, oportunidades profissionais e networking. Mas nas EJs se oferecem, como nota Doval (2012), oportunidades que aproveitam para inculcar nos indivíduos, num espaço de formação superior, “toda sorte de modelos de gestão e teorias organizacionais que possam reforçar de forma científica aquilo que já está apreendido a partir de conteúdos ditos e dos não ditos do seu dia a dia”. Conclui o pesquisador:

Desta forma, a participação dos estudantes de cursos de gestão em atividades como uma empresa júnior ou o intercâmbio internacional contribuem sobremaneira para o que Althusser (1980) aponta como a materialização da ideologia dominante por meio dos aparelhos ideológicos do Estado, dentre os quais a Escola é o mais importante, especialmente porque se constitui na forma mais acabada de reprodução das relações capitalistas. Para isto, ao assumir a responsabilidade de formação dos indivíduos de todas as classes sociais, lhes ‘ensina’ saberes práticos da ideologia dominante.

Se essas demandas legítimas geram identificação com o projeto das EJs, a disputa deve ser precisamente por serem sanadas sem que dependam dele. O reconhecimento do pesquisador como trabalhador, com todos os direitos que isso traz, permanência estudantil de qualidade e a luta por sofisticação produtiva e pleno emprego são as pautas que ajudam no enfrentamento do projeto “Brasil Empreendedor” e sua política econômica do “se vira”. Sobretudo essas últimas duas pautas, porém, parecem afastadas da realidade do estudante, também envolvido numa cultura em que cada trabalhador se vê isolado em seu ofício. Nesse sentido, é interessante resgatar experiências concretas de caráter popular que suplantam o projeto das EJs e que engajam os estudantes em construção coletiva para além dos muros das universidades – sem que sejam, ainda, projetos de extensão que, por mais valiosos que sejam, se inserem no contexto burocrático de universidades que não são ainda tudo o que sonhamos.

Um exemplo fundamental presente no Brasil são os EMAUs, Escritórios Modelos de Arquitetura e Urbanismo. São baseados em experiências de cooperativas uruguaias de construção civil (marxistas e anarquistas), e funcionam através de gestão estudantil sem fins lucrativos, com vistas à uma formação multidisciplinar e com fins sociais. Diferente das EJs, o órgão que apresenta diretrizes para cada Escritório Modelo é a Federação Nacional de Estudantes de Arquitetura e Urbanismo no Brasil. Há aí experiência legítima de educação pela prática auto-organizada e socialmente referenciada.

Também é válida a lembrança do Instituto Universitario de Madres de Plaza de Mayo pelo que nos traz de positivo e de negativo. Seu projeto data de 1999 a partir da compreensão por parte da Asociación Madres de Plaza de Mayo de que era necessária a criação de uma Universidad Popular. Desde o ano seguinte se encontra em funcionamento ministrando cursos, e hoje já garante formações em advocacia e algumas licenciaturas com o reconhecimento por parte do governo argentino. As críticas de Néstor Kohan, grande educador popular que integrou os quadros docentes da universidade, no sentido de que havia ingerência pedagógica de forças antirrevolucionárias e de que o projeto político de ruptura foi substituído pela defesa do kirchnerismo nos mostram a importância de não nos furtarmos da ousadia para disputar ideologicamente mesmo espaços que parecem amistosos. A justa crítica não apaga o fato de que em nosso vizinho latino-americano um movimento social orgânico fundou um instituto universitário que exerce relevante papel formativo.

É, portanto, no sentido de reforçar a importância da construção de condições subjetivas para a revolução brasileira em cada espaço de atuação que concluo este texto que, espero, contribua para as disputas em ambiente de IESs. As Empresas Juniores não se tratam de projeto de extensão comum e desinteressado, e é fundamental que todas as forças políticas anticapitalistas se apropriem desse debate para formular a construção em todos os âmbitos de uma verdadeira Universidade Popular.

REFERÊNCIAS

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