Clóvis Moura: uma biografia

Entrevista online com Soraya Moura | Por Jeferson Garcia – 29 de outubro de 2021.

Jeferson Garcia: Boa tarde, Soraya. Desde já agradeço por esta conversa. Para começar, quem é Soraya Moura?

Soraya Moura: Sou filha única, casada, tenho uma filha. Sou historiadora, me formei na USP em 1983. Atualmente, trabalho com organização de acervos históricos e pesquisa. Tenho uma micro empresa, Armazém de História. 

Jeferson Garcia: Quem foi Clóvis Steiger de Assis Moura?

Soraya Moura: Clóvis Steiger de Assis Moura foi um intelectual comunista que dedicou sua vida ao conhecimento e ao debate. Nasceu em Amarante, no interior do Piauí. Cresceu entre Amarante, Natal (RN),  Juazeiro e Salvador. Filho de mãe de origem germânica e pai mestiço.  Com uma grande sensibilidade era múltiplo em seus interesses; além da atividade de pesquisador e sociólogo, jornalista e de sua militância política, gostava de desenhar (no que era muito bom, nas primeiras páginas dos meus cadernos do primário ele sempre fazia um desenho de abertura: no de Ciências, ele desenhou um microscópio, no de História uma caravela, entre outros), escrever poesias e peças teatrais. Tinha uma “voracidade” pelo conhecimento em suas diversas áreas.

Jeferson Garcia: Como é para você ser “guardiã” das memórias de seu pai e estar rotineiramente sendo convidada a apresentar a história dele?

Soraya Moura: É muito gratificante sentir que ele chegou onde sempre quis estar. Sua preocupação nunca foi galgar postos acadêmicos. Dizia que o conhecimento, se não servisse para mudar a vida das pessoas, transformar e libertar, não servia para nada. Sinto que é uma forma de realizar seu desejo. Me sinto muito feliz em ver seu pensamento entre jovens que querem mudar e transformar nossa sociedade tão desigual, sua obra chegou onde ele sempre quis que estivesse.

Jeferson Garcia: Como foi a infância em relação ao trabalho e as tarefas políticas de seu pai?

Soraya Moura:  Minha infância foi diferente da infância dos meus amigos. Em primeiro lugar, nenhum colega de escola sabia, na época, o que fazia um sociólogo e nem sabiam o que era  uma ditadura, muito menos que vivíamos em uma. Desde muito cedo, eu sabia que meu pai fazia um trabalho “proibido”. Essas questões sempre foram faladas abertamente em casa. Não sei em que idade comecei a ter consciência política, quando olho para minha infância parece que sempre tive. Achava “heróico” meu núcleo familiar. Havia um certo medo, mas a sensação de “heroísmo” era maior.

Jeferson Garcia: Em um evento, você narra que, certa vez, você quase foi para a escola com um broche de Lênin. Como foi? Que ano isso ocorreu? Você se lembra de outras situações parecidas?

Soraya Moura: Eu estudava em uma escola classe média típica dos anos 60. Os alunos contavam vantagens sobre os bens materiais dos pais, carros, sítios etc… Eu pensei, não tenho nada disso para me gabar, mas,… “meu pai tem um broche que dá cadeia”… Lembro que todos pararam e me olharam sem acreditar… Causei espanto! No dia seguinte, peguei o broche que meu pai havia recebido de uma delegação soviética quando da sua visita ao Brasil. Meu pai  sempre lembrava rindo que eu passei pela sala, com sainha rodada, lancheira e o broche do Lenin na lapela. Ele me segurou e me explicou o que aquilo poderia causar. Isso foi em 1964 ou início de 1965.

O Pedro Pomar frequentava muito a minha casa, eu o conhecia como “Tio Mário”, só soube da sua real identidade quando ele foi assassinado. Ele sempre trazia presentes, bonecas soviéticas, lembrancinhas etc. Era meu “tio” querido. Um certo dia, aproveitando o meu entusiasmo “heróico” ele pediu que eu fosse até a rua e olhasse se havia alguma coisa suspeita (eu já sabia que ele era perseguido). Fui até a rua, olhei e com 9 anos o que eu poderia achar suspeito? Meu pai ficou muito bravo com ele pela responsabilidade que colocou nas minhas costas. Imaginem se ele fosse capturado na minha frente, como eu lidaria com essa culpa. Ah, mas eu me senti a verdadeira Passionária!!

Jeferson Garcia: Quais são as memórias que você guarda da sua relação com seu pai?

Soraya Moura: Apesar de todas as suas atividades, ele sempre foi muito presente. Gostávamos de fazer rádio novela, com um pequeno gravador fazíamos a narração e os efeitos especiais de alguma história. Íamos muito ao teatro infantil e aos cinemas.

Ele gostava muito de conversar, contar histórias de sua infância e juventude. Era um ótimo contador de histórias. Seu escritório de trabalho (que ele chamava de gabinete) ficava na edícula do sobrado onde morávamos. Era muito comum receber amigos, companheiros, estudantes e passar horas conversando. Até o padre da paróquia do bairro frequentava seu “gabinete”. Quando entrei na Faculdade, gostava muito de conversar com meus amigos tomando um aperitivo, seu “gabinete” estava sempre recebendo. Uma das características marcantes do meu pai era sua generosidade intelectual, seu prazer em conversar com jovens, dividir seu conhecimento, sem ter uma  postura de “mestre”, de dono do saber.

Jeferson Garcia: Sobre o desenvolvimento teórico e político dele. Como foi a formação de seu pai? Ele era autodidata, certo?

Soraya Moura: Certo. Meu pai era autodidata e tinha muito orgulho disso. Acho que sua última formação em instituição escolar foi no Rio Grande do Norte, no Colégio dos Irmãos Maristas, um colégio católico de classe média, em Natal. Ele contava que, lá, apesar de estar quase sempre de castigo por conta de sua rebeldia contra a  rígida disciplina dos padres, formou um grupo de jovens ansiosos por leituras de clássicos, encomendavam livros do Rio de Janeiro e esperavam ansiosamente a chegada. Lá, participou do Grêmio Estudantil e criou um jornal Aos 14 anos de idade, escreveu o seu primeiro artigo sobre o movimento da Inconfidência Mineira. Acredito que a semente se sua trajetória está lá.

Na década de 80, recebeu o título de Doutor Notorio Saber da Universidade de São Paulo devido ao reconhecimento de sua obra.

Jeferson Garcia: O sustento da família vinha do trabalho de Clóvis Moura como jornalista?

Soraya Moura: Em parte de seu trabalho como jornalista, minha mãe trabalhava, era funcionária pública e garantia o sustento da família nos períodos de instabilidade econômica.

Jeferson Garcia: Em que período da vida a questão negra se tornou uma prioridade dos debates e pesquisas do seu pai? Ele participou, na juventude, de estudos coletivos sobre o racismo no Brasil?

Soraya Moura: Acredito que foi durante a sua estada em Salvador  e, posteriormente, Juazeiro, e  o contado com intelectuais que procuravam pesquisar e estudar a questão do negro no Brasil, na década de 40. A partir daí passou a se corresponder com vários intelectuais que estudavam a questão do negro no Brasil.

Jeferson Garcia: Seu pai foi um intelectual marxista. Em seus estudos ele deixa nítida a preocupação em fazer uma análise do problema do negro brasileiro a partir da dialética marxista. Quando ocorreu o encontro de Clóvis Moura com o comunismo?

Soraya Moura: Em Salvador, se aproximou de intelectuais que formavam a chamada Academia dos Rebeldes e   muitos deles já eram ligados ao Partido Comunista. O grupo debatia e publicava textos de seus membros: Jorge Amado, Edison Carneiro, João Cordeiro, entre outros.

No começo dos anos 1950, já morando em São Paulo, integrou a Frente Cultural do PCB, que reunia Caio Prado Júnior, Villanova Artigas, Artur Neves, entre outros. Participava ativamente da Revista Fundamentos e da Revista Brasiliense  com artigos e membro do conselho Editorial, em alguns períodos.

Jeferson Garcia: Aliás, qual o marxismo de Clóvis Moura? Quais obras e pensadores mais influenciaram o seu pensamento em relação ao materialismo histórico?

Soraya Moura: Em uma entrevista ele destacou que sua influência teórica foi marcada por marxistas ingleses e sociólogos radicais americanos, como Charles Wright Mills, destacou dois livros importantes que foram “substantivos na cristalização do seu pensamento”: O Anti-Duhring, de Engels e O Capital, de Marx.

Jeferson Garcia: De acordo com algumas pesquisas, a aproximação de seu pai com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) ocorreu por volta de 1942 e a militância se deu até os anos 1960. É isso mesmo?

Soraya Moura: Sim. Ele sempre contava que uma das razões de ter se afastado da militância  dentro de  partidos políticos  foi o fato de colocar em primeiro lugar a sua posição de “livre pensador”. Sentia que dentro dos partidos seu pensamento era congelado. Lembrava que sua militância foi marcada por vários “castigos” disciplinares, lembrava do “Curso Stalin” realizado em um sítio onde os militantes “rebeldes” ficavam isolados reciclando suas ações e disciplina dentro do Partido. Lembrava rindo  que “vivia fazendo o curso Stalin”. Sua personalidade inquieta, rebelde e intransigente com certos comportamentos fazia com que não fosse “um homem de Partido”.

Jeferson Garcia: Durante o período de partido, sabemos da relação de seu pai com teóricos militantes como Caio Prado Júnior, Valter Pomar, etc. Quais eram as principais referências teóricas e políticas de Clóvis Moura?

Soraya Moura: Posso dizer que Caio Prado Júnior foi uma referência teórica, apesar de suas críticas posteriores, por ser um dos primeiros a propor uma análise marxista da realidade brasileira. Quanto a Valter Pomar, não imagino como uma referência teórica.

Jeferson Garcia: É conhecida a história de que Caio Prado Júnior havia indicado a seu pai que não estudasse os temas que resultaram em “Rebeliões da Senzala”. Diversos são os estudos, hoje, que fazem a autocrítica de certas posturas de marxistas sobre a questão racial brasileira. Como seu pai lidou com esse problema?

Soraya Moura: Essa passagem com Caio Prado Júnior é uma questão controversa. Nas cartas que trocaram nos anos 40, 50, fica claro que Caio Prado não desencoraja o estudo do assunto, mas como meu pai residia em Juazeiro, após sua saída de Salvador,  a dificuldade que seria a pesquisa e leitura de bibliografia referente ao tema, em Juazeiro, tão longe dos centros intelectuais fez com que Caio Prado o alertasse sobre a dificuldade da pesquisa sobre o tema.

Jeferson Garcia: Ainda hoje, pouco aparece o pensamento de seu pai nos estudos e coletâneas acerca da realidade brasileira, sobre as interpretações do Brasil. Por que isso ocorre?

Soraya Moura: Acredito que seu distanciamento dos meios acadêmicos se deu pelo fato de ser um comunista “raiz” como diriam hoje e um autodidata.  Sua postura assumidamente comunista assustava os meios acadêmicos dos anos 60 e 70. Fazia críticas ao diletantismo acadêmico, a certas abordagens sociológicas distantes da realidade. Era um homem da práxis.

Jeferson Garcia: Ainda pensando nas referências teóricas de seu pai. Você se lembra, ao menos um pouco, da configuração da biblioteca dele? principais autores que ele lia, poetas, tipo de literatura que gostava, etc? Se você fosse descrever os livros que tinham ali, quais você se lembra?

Soraya Moura: Sua biblioteca era muito variada. Lembro de uma das visitas dos agentes do DOPS lá em casa quando foram vasculhar sua biblioteca ele disse “Eu sou um livre pensador, aqui você vai encontrar  desde a Bíblia até Karl Marx”. E era verdade, além dos clássicos que trazia desde sua juventude, Voltaire e todos os iluministas,  Dostoievski, romances da  famosa coleção de romances soviéticos ( não me recordo o nome) que publicava romances como “Assim foi Temperado  o Aço”, “Spartacus”, “O homem que saiu do Frio” entre outros.  Jack London também tinha um lugar especial em sua biblioteca. Poetas: Castro Alves, Vinicius de Moraes, romances de Jorge Amado.

 Grande parte de sua biblioteca era dedicada ao estudo da sociedade brasileira, à questão racial, desde Silvio Romero, Joaquim Nabuco, Oliveira Vianna, Lima Barreto, Edson Carneiro, Florestan Fernandes, Octavio Ianni, Caio Prado Júnior, Nelson Werneck Sodré , entre outros. Muitos volumes sobre Sociologia e Filosofia, Hegel, Karl Marx, Friedrich Engels,  Antonio Gramsci, Henri Lefebvre, Max Weber . Obras de Lenin, Stalin, Fidel Castro.

Jeferson Garcia: Em um debate na internet, você comenta que a biblioteca dele está na Fundação Palmares e que possivelmente se encontra na lista dos livros que a Fundação pensa em se desfazer. Você poderia nos contar mais sobre isso?

Soraya Moura: Em 2001, 2002. Meu pai vendeu sua biblioteca para a Fundação Palmares, tinha como objetivo, uma vez que  sua segunda esposa estava se aposentando, morar em Salvador.  Quando surgiu na imprensa a notícia da intenção da Palmares e  a divulgação de alguns títulos reconheci alguns livros que faziam parte da biblioteca do meu pai, em uma dessas matérias havia a contra capa de um desses livros com a assinatura do meu pai, mania que ele carregou por toda a vida, assinar a contra capa dos livros. Reconheci livros, com sua assinatura, principalmente, ligados ao marxismo.

Jeferson Garcia: Como era o ambiente de sua casa em relação à convivência com os camaradas de partido de seu pai? Muitos comunistas passavam por ali? Quem eram eles?

Soraya Moura: Era uma relação tranquila, fazia parte do cotidiano. Passaram por lá entre vários comunistas: o Carlos Marighela, Arruda Câmara, José Carlos Ruy, o Pedro Pomar. O Pomar era uma presença  mais frequente, durante alguns períodos em que a repressão endurecia, sua esposa Carolina ficava hospedada em casa.

Jeferson Garcia: Seu pai rompeu com o Partido nos anos 1960, mas não rompe com o marxismo. Como você vê esse processo?

Soraya Moura: Acredito que seu rompimento com o Partido não tenha se dado por questões relativas ao marxismo, pelo contrário, sua crítica, muitas vezes apontava a falta de uma análise dialética marxista nas ações do partido.

Jeferson Garcia: Soraya, obrigado pelo seu tempo. Que a memória de Clóvis Moura contribua cada vez mais com a luta contra o racismo e o capitalismo, pela emancipação humana.

Soraya Moura é historiadora formada pela USP e filha de Clóvis Moura.

Jeferson Garcia é militante do Coletivo Negro Minervino de Oliveira – núcleo Maringá – e do Partido comunista Brasileiro (PCB)