Por Gabriel Landi Fazzio, imagem via AsymptoticWay
A prisão de Antonio Gramsci, em 8 de novembro de 1926, marca também o auge da repressão fascista, após o terceiro atentado contra Mussolini. O comunista foi sentenciado a cinco anos de confinamento e, no ano seguinte, a 20 anos de prisão em Turi. Em 1934, já bastante doente, foi libertado condicionalmente para tratar-se. Morreu em Roma, três anos depois, aos 46 anos. Em seu julgamento, o promotor teria afirmado que “é preciso impedir este cérebro de pensar por vinte anos”. Na verdade, só o que o fascismo pôde neste momento foi impedir Gramsci de participar ativamente da resistência. Então, por onze anos, Gramsci seguiu pensando, e escreveu os milhares de rascunhos que constituem seus chamados “Caderno do Cárcere”. Ao longo de todo esse tempo, vítima da tortura e da degradação da prisão, foi morrendo aos poucos – e finalmente foi impedido de desenvolver e defender suas ideias, falecendo de hemorragia cerebral.
A despeito de ter destroçado fisicamente Gramsci, os fascistas não puderam impedir que suas ideias se difundissem, e se tornassem força física novamente na mão de centenas de pessoas. Mesmo no senso comum do socialismo brasileiro, poucos pensadores marxistas estão tão presentes como o comunista italiano (esta difusão, que salta aos olhos, é inclusive objeto de uma importante obra do companheiro Lincoln Secco). Mas não é de se espantar que, diante de tão ampla difusão, o nome de Gramsci seja mais conhecido que a profundidade de suas ideias. Da mesma forma, a escolha do autor como inimigo maior da cruzada de muitos ideólogos reacionários não é lá grande novidade.
No Brasil, o ataque teórico a Gramsci o acusa de ser o gênio por trás do que os anticomunistas chamam de “marxismo cultural”: segundo um dos inquisidores, Gramsci representaria uma ruptura com o leninismo em direção ao pensamento da Escola de Frankfurt. Essa guinada seria resultado de uma desilusão com o proletariado, que teria levado a uma reorientação estratégica: “em vez de transformar a condição social para mudar as mentalidades, iria mudar as mentalidades para transformar a condição social. […] Gramsci descobriu a “revolução cultural”, que […] faria dos intelectuais, em vez dos proletários, a classe revolucionária”.
Continuando em sua pregação anti-sistêmica reacionária, concluem que todas as universidades, meios editoriais e de comunicação, em suma, a cultura ocidental está, desde tal giro estratégico, infestada pelo marxismo cultural. O que espanta aqui não é tanto a má-fé que escorre com a baba dessas bestas, mas a impressão de que boa parte de tais bobagens poderiam muito bem vir da boca de um militante de esquerda!
Um exemplo que seria cômico pelo rechaço que encarou, se não fosse trágico pelo eco que segue encontrando, é o texto que acusa as feministas e lgbts “radicais” de não terem entendido Gramsci. Seriam totalitárias suas pretensões de “impor, através do estado, a moral” – e o exemplo criticado são as políticas penais e educacionais anti-homofobia. Então, o autor nos “explica” como pensava Gramsci:
“Caberia então às classes subalternas se organizarem para conquistar uma hegemonia laica e marxista ocupando as mesmas instituições [da classe dominante]. Notem, em todo o momento Gramsci fala em hegemonia, não em imposição.”
É, no fundo, o mesmo tipo de raciocínio de quem acha que, para disputar ideias em meio a um senso comum conservador, é preciso aprender a conversar com o fascista [1]. Será que essa compreensão (que “pacificamente” recua frente qualquer violência e que parece propor uma ação comunicativa em favor de um pacífico consenso geral) acerta ao atribuir ao conceito gramsciano de hegemonia sua legitimidade?
Gramsci como leninista
Talvez o equívoco mais comum seja atribuir a Gramsci a criação do conceito de hegemonia. Na verdade, o termo era utilizado desde a antiguidade grega para descrever a influência e o domínio de uma ou mais cidades-estados por determinada “potência” regional. Por outro lado, caberia aos marxistas russos, como Martov, Plekhanov e Lenin, iniciar a utilizar a noção de hegemonia para refletir sobre o papel dirigente do proletariado na aliança com o campesinato, a fim de estabelecer a ditadura do proletariado.
O próprio Gramsci não permite dúvidas ao atribuir a Vladimir Ilitch Ulianov, Lenin, a originalidade na introdução do conceito de hegemonia no marxismo:
“Disto decorre que o princípio teórico-prático da hegemonia possui também um alcance gnosiológico; e, portanto, é nesse campo que se deve buscar a contribuição teórica máxima de Ilitch à filosofia da práxis [como Gramsci se refere ao marxismo, a fim de escapar à censura de seus carcereiros] [2]. Ilitch teria feito progredir efetivamente a filosofia como filosofia na medida em que fez progredir a doutrina e a prática política. A realização de um aparelho hegemônico, enquanto cria um novo terreno ideológico, determina uma reforma das consciências e dos métodos de conhecimento, é um fato de conhecimento, um fato filosófico.
[…] Em outro local, assinalei a importância filosófica do conceito e da realidade da hegemonia, devido a Ilitch. A hegemonia realizada significa a crítica real de uma filosofia, sua real dialética.” [Livro 1 dos “Cadernos do Cárcere”].
Não há fundamento, portanto, no discurso dos “democratas ocidentais” que, ao lado dos reacionários, apresentam a formulação de Gramsci sobre “hegemonia” como uma ruptura (uma “modernização”) do marxismo, afastado do “radicalismo impositivo” do leninismo. Chris Harman nota, a esses respeito, que a raiz da distorção reformista do pensamento gramsciano estaria atribuir ao bolchevique sardo a ideia de que:
“o poder da classe dominante no Ocidente se assenta, principalmente, não no controle físico através do aparelho policial-militar, e sim na dominação ideológica exercida através de uma rede de instituições voluntárias que se estendem através da vida cotidiana (“sociedade civil”): os partidos políticos, os sindicatos, as igrejas, os meios de comunicação. O aparelho repressivo do Estado é apenas uma dentre as muitas defesas da sociedade capitalista. Depreende-se disto que a luta chave para os revolucionários não é um ataque direto contra o poder estatal, e sim uma luta pelo domínio ideológico, por aquilo que Gramsci chama de “hegemonia”. A hegemonia se conquista através de um processo prolongado por muitos anos, e exige paciência e sacrifícios ilimitados por parte da classe operária. […] E enquanto não haja realizado esta tarefa, ou seja, enquanto não tenha se tornado classe “hegemônica“, as tentativas de tomar o poder estatal não acabarão senão em derrota.“
Esse tipo de entendimento, evidentemente, joga a revolução para um futuro distante, ao qual se precederia um prolongado processo de convencimento. Assim, não é de espantar que esse tipo de perspectiva “revolucionária” nem tenha dirigido qualquer processo de transformação radical da sociedade desde seu surgimento nas teorias do PCI pós-Gramsci; nem bem tenha conseguido convencer ninguém de qualquer coisa – senão seus próprios militantes da “necessidade” de baixar, uma a uma, todas as suas bandeiras mais radicais e pactuar compromissos com os liberais e conservadores, conforme a conveniência e o senso de oportunidade. Talvez seja essa a maior característica do oportunismo: mais do que o proveito pessoal obtido por cada um de seus dirigentes em tais políticas, a resignação ao limite das oportunidades do presente. Fala-se em correção de forças para justificar os limites de uma ação política – mas não se leva em conta que só pela ação política é possível mover os limites de uma dada correlação de forças.
Na verdade, é um erro temerário, na teoria e na prática, entender a luta pela hegemonia como o avesso de uma suposta “imposição totalitária”, ou seja, a renúncia da violência revolucionária, da força, em favor apenas da “disputa de ideias”. Assim, separa-se mecanicamente duas tarefas do partido revolucionário, da mesma forma que artificialmente separa-se as reflexões dos “Cadernos do Cárcere” do pensamento e da prática pregressa de Gramsci, seja nos seus negligenciados escritos de juventude [3], ou mesmo nas Teses de Lyon do PCI e em seu texto inconcluso sobre a “questão meridional”, ambos do mesmo ano de sua detenção, e nos quais suas ideias sobre hegemonia e guerra de posições se expõe já com alguma centralidade.
Disputa de hegemonia ou adesismo ao Estado?
Não é possível, em poucas linhas, uma profunda reflexão sobre os conceitos de hegemonia, Estado, partido e estratégia em Gramsci. Buscando delimitar o objeto da presente exposição, parece ser indispensável repelir a concepção de Gramsci enquanto um culturalista, um defensor do reformismo democrático, crente numa suposta primazia do convencimento ideológico sobre a força física. São tais noções que impregnam, à direita e à esquerda, as falas sobre “em vez de transformar a condição social para mudar as mentalidades, mudar as mentalidades para transformar a condição social” [4], ou as que advertem que “caberia então às classes subalternas se organizarem para conquistar uma hegemonia laica e marxista ocupando as mesmas instituições [da classe dominante]. Gramsci fala em hegemonia, não em imposição.” Cabe demonstrar o equívoco de tais concepções [5], bem como recobrar a legitimidade de Gramsci como o defensor convicto da estratégia da tomada revolucionária do poder político.
“Para a filosofia da práxis, as ideologias não são de modo algum arbitrárias; são fatos históricos reais, que devem ser combatidos e revelados em sua natureza de instrumentos de domínio, não por razões de moralidade, etc., mas precisamente por razões de luta política: para tornar os governados intelectualmente independentes dos governantes, para destruir uma hegemonia e criar uma outra, como momento necessário da subversão da práxis. Ao que parece, Croce se aproxima mais da interpretação materialista vulgar do que a filosofia da práxis. […] A filosofia da práxis, ao contrário, não tende a resolver pacificamente as contradições existentes na história e na sociedade, ou, melhor, ela e a própria teoria de tais contradições; não é o instrumento de governo de grupos dominantes para obter o consentimento e exercer a hegemonia sobre as classes subalternas; é a expressão destas classes subalternas, que querem educar a si mesmas na arte de governo e que têm interesse em conhecer todas as verdades, inclusive as desagradáveis.” [Livro 1 dos “Cadernos do Cárcere”].
Ou seja: quem não entendeu Gramsci parece ter sido o colega que chama as classes subalternas a “conquistar a hegemonia ocupando as mesmas instituições [da classe dominante].” A proposta aqui parece cheia de ilusões sobre uma suposta neutralidade instrumental do Estado, tudo restando definido só pela “hegemonia” – algo que não tem qualquer semelhança com a compreensão de que é necessário “destruir uma hegemonia e criar uma outra”. Os reformistas e conciliadores que se aventuram por esse caminho parecem dizer: “sim, reconhecemos que o Estado burguês é um tanque de guerra contra as massas oprimidas; mas só porque quem o dirige (“hegemoniza”) é a burguesia! Estivéssemos nós à frente da direção, araríamos a terra e semearíamos um mundo novo com esse mesmo tanque de guerra”!. Gramsci nos adverte a não enfrentar apenas o aparato repressivo estatal, mas mesmo a totalidade da hegemonia burguesa. Isso não é um convite a deixar a luta pelo poder para depois de resolvida a luta pelo “consenso”. Inclusive, a posição de Gramsci sobre a opinião pública chama a atenção para o quanto ela envolve de imposição:
“O que se chama “opinião pública” está estreitamente vinculado com a hegemonia política, ou seja, é o ponto de contrato entre a “sociedade civil” e a “sociedade política”, entre o consenso e a força”. [Livro 3 dos “Cadernos do Cárcere”].
Para quem já delirou até aqui, não surpreende que se iluda em estar embasado em Gramsci. Aparentemente, tal ilusão teria algo a ver com a confusão entre guerra de posições e ocupação indiscriminada de posições no interior do Estado.
Guerra de posições ou ocupação de espaços?
Quando se perde de vista que Gramsci fala em “derrubar uma hegemonia e criar outra”, seu pensamento facilmente é invocado para justificar a “disputa de hegemonia” – que daqui em diante se confunde com todo tipo de compromisso para “influenciar” (“hegemonizar”) instituições sociais e estatais. Talvez seja preciso insistir que o italiano, como leninista, condenava a recusa por princípio da disputa eleitoral. Mas, nas masmorras do fascismo, Gramsci esteve muito distante de vislumbrar a chegada ao poder pacífica e eleitoral (“democrática”) de partidos populares.
Parece, por isso, haver bastante confusão no que significaria a distinção entre “ocidental e oriental” em Gramsci. Muito dessa confusão se centra no que signifique a “guerra de posições”. Como aponta Harman, Gramsci faz nos Cadernos do Cárcere uma distinção entre dois tipos de guerra:
“1. A guerra de manobra ou de movimento, que implica o movimento rápido por parte dos exércitos inimigos, com repentinos avanços e retrocessos, em que cada um procura adentrar o flanco do outro exército, e cercar suas cidades;
2. A guerra de posição, uma luta prolongada em que os dois exércitos em batalha chegam em um impasse, cada um quase incapaz de avançar, como nas guerras de trincheira de 1914-1918.”
“Os técnicos militares [consideram] que nas guerras entre os Estados mais adiantados industrialmente e em civilização, a guerra de movimento tem que se considerar reduzida já a uma função tática mais que estratégica. […] “A mesma redução há que praticar na arte e na ciência da política, pelo menos pelo que faz aos Estados mais adiantados, nos quais a “sociedade civil” tornou-se uma estrutura muito complexa e resistente aos “ataques” catastróficos do elemento econômico imediato (crises, depressões etc.)”.
No entanto, não é por falta de explicações de Gramsci que os reformistas distorcem o significado dessa guerra de posições:
“A guerra de posições, em política, é o conceito de hegemonia, que só pode nascer depois do advento de certas premissas, quais sejam, as grandes organizações populares de tipo moderno, que representam as “trincheiras” e as fortificações permanentes da guerra de posições. […]
Já assinalei em outra ocasião que em uma determinada sociedade ninguém está desorganizado e sem partido, sempre que se entenda organização e partido em sentido amplo e não formal. Nesta multiplicidade de sociedades particulares […] uma ou mais delas prevalecem relativa ou absolutamente, constituindo o aparato hegemônico de um grupo social sobre o resto da população (ou sociedade civil), base do Estado entendido estritamente como aparato governativo-coercitivo.
Tática das grandes massas e tática imediata de pequenos grupos. Entra na discussão sobre a guerra de posições e a de movimentos […]. É também, (pode dizer-se) o ponto de conexão entre a estratégia e a tática, tanto em política como na arte militar. Os indivíduos isolados (inclusive como componentes de vastas massas) tendem a conceber a guerra instintivamente como “guerra de guerrilhas” […] Na política o erro se produz por uma inexata compreensão do que é o Estado (no significado integral: ditadura + hegemonia).” [Livro 3 dos “Cadernos do Cárcere”].
É inexata, portanto (para dizer o mínimo), a compreensão de que “Gramsci fala em hegemonia, não em imposição” – não é uma compreensão integral. Mas mais inexata ainda é a compreensão que busca nos órgãos do Estado, e não nas grandes organizações populares, as trincheiras da guerra de posições. Ao contrário disso, Gramsci parece estar em consonância com a tese leninista de que a ditadura do proletariado seria, nos termos do Manifesto Comunista, “a conquista da democracia pela luta”. Sobra pouco espaço, assim, para o idealismo que, flertando com o jusnaturalismo, busca vincular Gramsci a um suposto “valor universal” da democracia. Na verdade, o próprio Gramsci chegou a criticar o idealismo tão comum no trato da questão da democracia:
“Entre tantos significados de democracia, o mais realista e concreto me parece que se pode extrair em conexão com o conceito de hegemonia. No sistema hegemônico, existe democracia entre o grupo dirigente e os grupos dirigidos, na medida em que [o desenvolvimento da economia e, por tanto] a legislação [que expressa tal desenvolvimento] favorece a passagem [molecular] dos grupos dirigidos ao grupo dirigente. No Império Romano existia uma democracia imperial-territorial na concessão da cidadania aos povos conquistados, etc. Não podia existir democracia no feudalismo pela constituição de grupos fechados, etc.” [Livro 3 dos “Cadernos do Cárcere”].
Athos Lisa, companheiro de Gramsci na prisão de Turi, relata em 1933 algumas das discussões na prisão. Seu relato reitera sempre que pode estar sendo inexato nos conceitos, mas afirma que:
“Com respeito ao “problema militar e o partido”, estabelecia os seguintes conceitos: a conquista violenta do poder exige do partido do proletariado a criação de uma organização de tipo militar que, apesar de sua forma molecular, se difunda em todas as ramificações da organização estatal burguesa e seja capaz de torná-la vulnerável de acertá-la com golpes fortes no momento decisivo da luta. […]
O partido tem como objetivo a conquista violenta do poder, a ditadura do proletariado, mas deve realizá-lo usando a tática que melhor corresponda a uma determinada situação histórica e na realização das forças de classe existentes nos diversos momentos de luta.
Da aptidão do partido para manobrar nestas fases de luta […] dependerão as possibilidades de superar as alianças intermediárias que assinalaram as etapas do desbloqueio dos estratos sociais a conquistar e à modificação das relações de forças”.
Provavelmente é a esse relato que Harman se refere quando afirmar:
“Gramsci nunca sugere nos Cadernos do Cárcere que a luta pela hegemonia possa resolver, por si só, o problema do poder estatal. Inclusive em um período no qual a “guerra de posição” cumpre um papel dominante, Gramsci fala de um “elemento “parcial” de movimento”, e diz que a “guerra de movimento” cumpre “mais uma função tática que uma função estratégica”.
Em outras palavras: na maior parte do tempo, os revolucionários se ocupam da luta ideológica, usando a tática da frente única em lutas parciais para tomar a direção das mãos dos reformistas. Ainda há momentos periódicos de violenta confrontação, nos quais um dos lados tenta romper as trincheiras do outro por meio de um ataque frontal. A insurreição armada seguia sendo, para Gramsci, como deixou claro nas conversas que teve na prisão, “o momento decisivo da luta”.”
Essa discussão sobre a guerra de posições, no fim das contas, remonta pelo menos o fim do século XIX, como apontado em outra ocasião. Engels afirmava, em uma introdução à obra de Marx “Luta de Classes na França”:
“Quer isto dizer que no futuro a luta de ruas deixará de ter importância? De modo nenhum. Significa apenas que desde 1848 as condições se tornaram muito mais desfavoráveis para os combatentes civis, muito mais favoráveis para a tropa. Por conseguinte, uma futura luta de ruas só poderá triunfar se esta situação desvantajosa for compensada por outros fatores. Portanto, ocorrerá menos no princípio de uma grande revolução do que no decurso da mesma e terá que ser levada a cabo com maiores forças. Estas, porém, hão de preferir a luta aberta à táctica passiva da barricada como aconteceu em toda a grande Revolução Francesa.”
Enquanto, de suas “posições”, os gramscianos vulgares buscam separar a arma da crítica da crítica das armas, chama a atenção que o Sr Olavo de Carvalho atribua a Gramsci, excentricamente, a autoria pela concepção de “revolução cultural”, tradicionalmente associada ao maoismo. Às vezes chega a ser espantoso como suas cretinices encontrariam eco, descontextualizadas, em discurso de muitos reformistas. Não é o caso aqui.
O “marxismo ocidental” (como aponta Domenico Losurdo, em seu “Luta de Classes”) do senso comum militante ignora que, nos Cadernos, muito do que Gramsci questiona sobre a hegemonia se liga às suas reflexões sobre o papel do Partido Comunista na aliança entre os proletários e os camponeses após a chegada dos bolcheviques ao poder na oriental e “gelatinosa” Rússia – ou seja, na construção de um aparelho estatal proletário que detivesse a hegemonia sobre as demais classes. Prefere não perceber que se, por um lado, a última metade do século passado assistiu a um relativo compromisso entre o proletariado dos países centrais e seus respectivos governos burgueses, o “oriente” foi o palco de centenas de revoluções, de todos os tipos e resultados. Assim, embasbacados, devem ver a afirmação do Sr Olavo de Carvalho como apenas uma bizarrice. E provavelmente é mesmo. Mas, se formos verdadeiramente consequentes com Gramsci, talvez aqui o situássemos melhor do que ao lado da política parlamentar: é certo que as questões da hegemonia do Partido Comunista na China camponesa intrigariam muito mais o italiano do que toda a fraseologia sobre como é preciso abrir mão de afirmar a necessidade da revolução (mesmo em discursos que dizem reconhecer tal necessidade!) em nome do convencimento e da “hegemonia”.
Infelizmente para os reformistas, não há em nenhum lugar dos Cadernos uma receita para como equacionar essa contradição: submergir no estado e em sua hegemonia, e esperar movê-la de dentro. No fim, o que resta é o desespero, quando é preciso manobrar para fora de suas “posições”, diante dos avanços da reação. Por isso os conciliadores, mesmo os mais bem intencionados, acabam por ser oportunistas: esperam uma oportunidade fantástica, enquanto a direita lhes impõe sua vontade nas oportunidades que cria. Como Gramsci diria, a postura reformista diante da violência fascista lembra a do castor que “seguido pelos caçadores que querem lhe arrancar os testículos dos quais se extraem remédios, para salvar sua vida, ele mesmo os arranca”.
gramsci fim
[1] Sobre o tema, melhor seria concordar com a máxima de que “com o fascismo não se dialoga nem se negocia: se esmaga, ou nos esmaga”.
[2] Como bem lembrar Chris Harman: “A primeira e mais óbvia limitação era a de que o Estado fascista lhe vigiava noite e dia, e lia cada palavra que escrevia. Para evitar a censura da prisão tinha que ser vago quando se referia a alguns dos mais relevantes conceitos do marxismo. Tinha que usar uma linguagem ambígua esopiana que ocultava seus reais pensamentos, não somente de seus carcereiros, mas também frequentemente de seus leitores marxistas e, às vezes, suspeita-se, de si mesmo.
Para tomar um ponto decisivo: Gramsci frequentemente usa a luta da burguesia pelo poder contra o feudalismo, como uma metáfora para se referir à luta dos trabalhadores pelo poder e contra o capitalismo. Contudo, a comparação é perigosamente enganosa. Uma vez que as relações de produção capitalistas têm como ponto de partida a produção de mercadorias – a produção de bens para o mercado – que pode se desenvolver dentro da sociedade feudal, a burguesia pode utilizar seu crescente domínio econômico para construir sua posição ideológica dentro da estrutura do feudalismo, antes de tomar o poder. Por outro lado, a classe trabalhadora pode chegar a ser economicamente dominante somente através do controle coletivo dos meios de produção, o que requer a tomada, por meio das armas, do poder político. Somente então os trabalhadores controlarão a imprensa, as universidades etc., enquanto que os capitalistas foram capazes de comprá-los muito antes de chegarem a ser politicamente dominantes. Gramsci tinha, necessariamente, que se mostrar ambíguo neste ponto. Mas, hoje essa ambiguidade oferece uma desculpa para supostos intelectuais que pretendem praticar a luta de classes através da uma “prática teórica”, “uma luta pela hegemonia intelectual”, quando de fato, não fazem mais que avançar em suas próprias carreiras acadêmicas.
Além disso, Gramsci não podia escrever abertamente sobre a insurreição armada. Esta lacuna nos Cadernos do Cárcere deu a seus supostos seguidores a possibilidade de ignorar a dura realidade do poder estatal que mantinha Gramsci sob suas garras.”
[3] Vide Vol I (http://migre.me/s20jj), Vol II, (http://migre.me/s20iR), Vol III (http://migre.me/s20jM) e Vol IV (http://migre.me/s20k2).
[4] Apenas de má-fé se poderia situar Gramsci tão longe do terreno do marxismo! “Se é verdade que nenhum tipo de Estado pode deixar de atravessar uma fase de primitivismo econômico-corporativa, daí se deduz que o conteúdo da hegemonia política o novo grupo social que fundou o novo tipo de Estado deve ser predominantemente de ordem econômica: se trata de reorganizar a estrutura e as relações reais entre os homens e o mundo econômico ou da produção. Os elementos de superestruturas não podem ser senão escassos e seu caráter de previsão e de luta, mas com elementos “de plano”, todavia escasso; o plano cultura será, sobretudo, negativo, de crítica do passado.[…] Isso é precisamente o que não e verificar no período das Comunas; inclusive a cultura, que permanece como função da Igreja, é precisa de caráter antieconómico (da economia capitalista nascente), não está orientada a dar a hegemonia à nova classe, senão inclusive impedir que esta a conquista; o Humanismo e o Renascimento, pelo mesmo, são reacionários, porque marcam a derrota da nova classe, a negação do mundo econômico que lhe é próprio, etc” [Livro 3 dos “Cadernos do Cárcere”].
[5] Valeria lembrar também que mesmo a ideia de contra-hegemonia é erroneamente atribuída a Gramsci: “A partir do aparecimento da obra de Raymond Williams, Marxism and Literature (1977), entra em circulação, na literatura sobre o pensamento de Gramsci, o conceito de “contra-hegemonia”. Para Williams, o conceito de hegemonia era insuficiente para compreender a complexidade da hegemonia. Entendendo que a hegemonia «não existe apenas passivamente como forma de dominação», mas encontra «resistências continuadas», considerou necessário acrescentar o conceito de «contrahegemonia» e de «hegemonia alternativa» (WILLIAMS, 1977, p. 116)
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