Entrevista com Jesus Brigos, do Instituto de Filosofia de Cuba
Nos dias 27 a 29 de março de 2015, aconteceu o V Seminário da Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde, no Rio de Janeiro. Um dos convidados internacionais foi o pesquisador cubano Jesus Pastor Garcia Brigos, do Instituto de Filosofia de Cuba. Entrevistado por Wladimir Nunes Pinheiro, do Comitê Central do PCB, entre outros assuntos, falou sobre o sistema político cubano.
Qual sua avaliação da iniciativa da Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde com relação à internacionalização da luta pela saúde?
Em primeiro lugar me parece que é de suma importância as contribuições que trago ao trabalho que a Frente Nacional está fazendo, não considerando a saúde como um problema médico, como um problema de curar doenças, e sim considerar a saúde como um problema social, como uma responsabilidade da sociedade, uma situação relacionada com desenvolvimento que tenha a sociedade em um momento determinado. Esse é o primeiro ponto que me parece importante: não se trata de pensar reinvindicações para o financiamento da saúde, para que o Estado garanta saúde, e sim mudar a situação social que permita que as pessoas vivam diferentes e, portanto, mudem sua situação de saúde. O segundo é que estou vendo que as discussões que trago, de que a saúde é um fenômeno social, está contribuindo para que este espaço se converta em um espaço articulador, um espaço aglutinador, de todas as forças que se opõem ao sistema capitalista. Isso é muito importante, porque irá resolver, eu diria, a questão da saúde social; refiro-me à questão das possibilidades de termos uma sociedade mais justa, permanentemente progressista, uma sociedade emancipadora, que avance no sentido de sua emancipação. Isto me parece que já se vem discutindo e justamente deve ter alcance internacional, mas que tenha peso também essa articulação nacional. E, a partir daí, mudar, trabalhar para mudar em todo o país, porque os mesmos problemas que tem o Brasil são os problemas que tem o mundo do trabalho, hoje, em qualquer lugar do mundo, em qualquer recanto.
E o que pode nos dizer sobre os limites que o capital impõe ao exercício do pleno direito ao acesso à saúde?
Os limites que o capital impõe são limites ao desenvolvimento do indivíduo humano, do indivíduo socializado. Esses são os limites que se impõem à saúde, porque a saúde não é a ausência de doença, a saúde é o pleno desenvolvimento do indivíduo humano. O capital não impõe limite à saúde, impõe limites ao desenvolvimento humano. Isto me parece que vocês estão defendendo, e isso me parece muito importante registrar e destacar a forma como isso está sendo feito, por que essa luta pela saúde, com essa visão da saúde, se converte em uma verdadeira forma de luta social.
E qual a perspectiva dos trabalhadores para a superação dessa crise?
Eu diria que a perspectiva dos trabalhadores depende de que os trabalhadores ganhem consciência: primeiro, de que devem ser mudadas as condições sociais; e segundo de que está nas mãos dos trabalhadores essa mudança, porque o capital não pode existir sem o trabalhador. Nós, sim, podemos existir sem o capital, destruindo o capital e criando uma forma de controle da sociedade feita por nós, uma forma de que o controle produtivo, o poder de mudança, a possibilidade de desenvolvimento de homens e mulheres dependem e estejam em nossas mãos. O capital é uma forma de controle da reprodução social, desde a produção social até as formas ideológicas, desde a produção material até a forma ideológica, a forma de conceber a arte, de conceber a recreação. Isso é parte do capital, faz parte do capital. Então a perspectiva depende, primeiro, de que possamos entender que tem de se mudar a forma atual de reprodução e, segundo, que está em nossas mãos fazer. A mudança, eu repito, é da forma de organizar a atividade econômica, da forma de reproduzir a vida material; até da família, da forma em que se dá a relação entre homem e mulher, homem, mulher e filhos no seio familiar; até as formas de fazer artes, a forma de interação entre as pessoas em suas vidas cotidianas e nas horas livres; a própria concepção do tempo livre; a própria concepção da riqueza; que não pensemos mais em distribuir as riquezas, mas que pensemos em uma forma de riqueza diferente, que a riqueza sejam os indivíduos se desenvolvendo, ampliando suas potencialidades e construindo a realidade. E para isso precisamos romper com o capitalismo, romper com esse sistema econômico, romper com as relações de assalariamento. É preciso mudar a estrutura social, desde os mecanismos produtivos até os mecanismos ideológicos, os meios de comunicação, as formas de ensino. Ao lado da saúde. E saúde tem a ver com a atividade na escola. Os professores e governos no mundo todo estão constantemente insistindo que as crianças se alimentem adequadamente, e os pais, muitas vezes, pela pressa, pela agitação em que vivem no capitalismo, mandam as crianças para a escola com dinheiro para que comprem comida pronta, ao invés de preparar as crianças para que levem na merenda uma fruta, um alimento saudável. Isso é romper com essa situação; isso é conseguir romper com o capital. Isso é conquistar uma saúde social, uma sociedade diferente.
E sobre como se deu esse processo em Cuba, poderia comentar um pouco?
Esse processo em Cuba começou com um processo de luta armada, começou com a vitória armada que mudou o poder de controle da vida em sociedade e a partir daí começamos a mudar, criando novas estruturas de governo, novos mecanismos de participação estatal na forma de governo, criando novas formas de nos organizarmos em sociedade, novas formas de organizações sociais que não existiam, organização de mulheres, por exemplo, que em Cuba se criou imediatamente. Mas uma organização de mulheres cujo papel teve de ir mudando também, porque nos primeiros anos as mulheres eram muito discriminadas e hoje as mulheres não são mais discriminadas e ocupam o lugar que devem ocupar na sociedade. Então, esta luta pelas condições das mulheres, essa luta é de todos na sociedade, não só das mulheres, mas as mulheres são as principais envolvidas, gerando estratégias, formas de como fazer estas lutas. Assim existem muitas em Cuba, especialmente, com a criação de novos mecanismos de governo estatal, com a criação de um sistema de organização de camponeses, de estudantes, de mulheres, de trabalhadores. A organizações de trabalhadores, que antes não existiam em Cuba, se ampliaram, se fortaleceram, mudaram; porque assumem um papel diferente, porque já não é seu papel lutar contra um dono, já que agora o dono é você; agora o papel é lutar por um trabalhador diferente, por um trabalhador que não trabalhe para ganhar um salário somente, ou que haja falta de um salário que lhe permita comprar um produto; agora a luta é por um trabalhador que trabalhe sentindo-se bem no trabalho, que trabalhe por uma necessidade interna dele de se realizar, de desenvolver realmente suas possibilidades, esse é o papel do sindicato em Cuba. Importante para Cuba é que essa mudança acompanhe as mudanças que vêm acontecendo no mundo. Cuba está em 2015, não está em 1959, quando éramos uma população com quase um milhão de analfabetos numa população de cinco milhões habitantes. Hoje Cuba tem uma população com praticamente todo mundo com nível de ensino médio, muitos com nível universitário. E uma população com muita experiência política, de lutas políticas; então, hoje, os mecanismos de participação têm que fazer frente às novas realidades que a revolução criou. E, dentro disso, mudando a forma de vida, mudou também a saúde. Já como atividade especializada, a saúde em Cuba é sistema de saúde institucionalizado; não é um sistema de saúde para curar; é um sistema de saúde para educar a forma de vida. É um sistema de saúde para curar também, mas mais voltado para prevenir doenças, para promover novos hábitos de vida, para promover nova cultura reprodutiva na família, por exemplo. Para que as mulheres não comecem a engravidar aos 12, 13 anos; isso acontece não porque queiram, mas pelas condições sociais em que podem se encontrar; por isso a saúde em Cuba se preocupa com essa questão. E integra toda as entidades em toda a sua organização: por exemplo, nos bairros existe o médico de família; o médico da família trabalha em conjunto com o Comitê de Defesa da Revolução e com a Federação das Mulheres Cubanas. Com sua especialidade em saúde, através dessas organizações, atue para que não haja hábitos de alcoolismo na família, que não haja hábito de fumar, promove relações sexuais protegidas. Com a participação dessas organizações, isso é desenvolvido e se dá de forma harmônica entre todos os elementos, envolvendo, então, todos os elementos da vida social que possam vir a intervir sobre o processo de adoecimento. E essa questão de termos mais saúde, em Cuba, para se chegar a isso, também tivemos que passar por muitas mudanças; para se conseguir isso estamos fazendo mudanças constantemente. Hoje em dia isso se estrutura a partir do médico de família, que fica mais próximo da população; as policlínicas, com atividades um pouco mais especializadas; os hospitais, com um grau maior de especializações; os Institutos Médicos, muito especializados, de Cardiologia, Instituto de Oncologia, assim como todas as outras especialidades médicas; tudo isso vinculado ao Centro de Investigação e ao sistema de ensino médico. No sistema de ensino médico em Cuba, por exemplo, nosso médico não se prepara só em aula. Nosso profissional de saúde, desde que ingressa na faculdade, está em aula e está trabalhando com a população, com médicos mais experientes, para desenvolver o contato com a pessoa, com o indivíduo, que é o objeto essencial do médico, o indivíduo como ser social. O papel do Centro de Investigação é muito importante, porque em Cuba se busca encontrar o medicamento para a enfermidade que não podemos curar nesse momento, buscamos produzir nós mesmos os medicamentos para a prevenção das doenças que é possível prevenir. Hoje em Cuba a criança, ao nascer, recebe treze vacinas, para treze doenças diferentes. Em Cuba não morre ninguém de sarampo, não morre ninguém de poliomielite, está erradicado um grupo importante de doenças. Dessa forma, integradora, totalizante, no sentido de entender o homem como um todo, nosso sistema de saúde vem combinando o social, o técnico e a vontade política do Estado. Esse é o sistema de saúde em Cuba. E, no caso da saúde, nós estamos oferecemos nossa experiência de saúde, nossa experiência de educação aos países que nos permitem, aos países que se interessem para que nesses lugares se conheça nossa experiência e tratem de aplicar nossas condições. O médico cubano vai a algum país, faz sua atividade e contribui para que ali possa se reproduzir, nas condições daquele país, nosso trabalho.
Poderia nos falar um pouco sobre o poder popular?
Poder popular tem que ser visto em dois aspectos: num aspecto mais geral, na sociedade cubana, o socialismo é poder popular. Esse é o aspecto mais geral, esse é o aspecto de que o socialismo é construído com um Estado e que todos somos o Estado, todos os interessados no socialismo têm o controle do Estado. Essa é a visão mais geral de poder popular porque, sem um Estado forte, forte neste sentido, não forte como um aparato burocrático, mas forte no sentido de que a classe que vive do trabalho necessita poder fazer realizar o seu interesse. O interesse de uma classe que vive do trabalho no mundo do capital não se pode fazer realizar por ideias, tem que fazer realizar com poder, o poder do Estado. Mas esse poder do Estado, que tem essa função essencial, tem função essencial também para fazer com que a própria classe pense em se mover motivada por incentivos diferentes daqueles que em que se movia até o momento. O trabalhador no capitalismo se move e trabalha motivado, porque se não trabalha, o homem que não trabalha não tem o que comer. No socialismo, é outra a vontade de trabalho: nós trabalhamos com a intenção de desenvolver a sociedade, por desenvolver o homem. Tudo isso podemos chamar no sentido mais geral de poder popular. Dentro disso, em Cuba, como em todo lugar, existe uma instituição especifica, que é a forma do instituto político especializado que está no Estado. Aqui no Brasil, tem o sistema de vocês que é a organização presidencial, federal, com o presidente, representante, em toda estrutura federativa. Em Cuba nós temos o sistema do poder popular, com assembleias, com órgãos de administração subordinados a assembleias, com representante eleito por essas assembleias. Em Cuba há eleições periódicas. Em Cuba o representante que se elege por essa assembleia, que são órgãos de poder, que regem o governo, se elegem periodicamente, tem que ter contato permanente com a população. A população pode tirá-lo a qualquer momento, são pessoas que não recebem um salário pela função que desempenham, continuam desenvolvendo seu mesmo trabalho e podem ser tiradas pela população a qualquer momento se os cubanos não estão de acordo com a forma pela qual eles participam nas atividades de governo. Isso é o poder popular como instituição, instituição representativa de órgãos de poder, que funciona junto com o Partido Comunista como organização política na sociedade, o instituto político que escolhe seus membros, seleciona seu membro, que busca que sejam pessoas de vanguarda, mais qualificados. Por exemplo, busca-se que sejam os melhores representantes da classe que vive do trabalho. Junto com o poder popular, com o partido, há as outras organizações: uma organização estudantil, uma organização de camponeses, todos eles como formas de poder, como eu disse antes. Resumindo, o Poder Popular, em Cuba, é a organização geral da sociedade. O Poder Popular, dentro dessa organização, é uma instituição especifica que é um órgão representativo do poder, que tem faculdade de fazer leis, fazer leis cujo cumprimento deve ser obrigatório para todos, que é muito importante para o ordenamento da sociedade, nesse processo de organização.
Neste momento como se encontra a situação cubana?
Cuba está em um processo de mudanças desde o ano de 1959. Estamos em processo de mudanças permanente, porque permanentemente nós buscamos a maneira de defender a economia que sustente os benefícios sociais a que chegamos e a que queremos chegar. Queremos ter uma economia que nos permita desenvolver a educação, a saúde universal e gratuita para todos. E é necessário fazer mudanças na economia. Tem sido muito duro sempre o desenvolvimento econômico em Cuba, pelas condições do bloqueio, pela guerra econômica dos Estados Unidos contra Cuba, pelas condições em que Cuba se inicia, porque Cuba era um país subdesenvolvido, e um país subdesenvolvido não é simplesmente um país atrasado economicamente e sim um país que não tem as dinâmicas internas e o contexto mundial para sair desse atraso. Isso era Cuba. Nós tivemos que pensar em como romper com essa dinâmica. Primeiro, para romper com essa dinâmica, era preciso tomar o poder político; segundo, era começar a mudar a estrutura na sociedade, econômica, política, de todo tipo. Assim começamos a mudança em Cuba em 1959. Aí viemos resolvendo tarefas, mas, ao mesmo tempo, criando novas possibilidades para nós, cubanos. No entanto, surgem novas tarefas. Se antes para a população era suficiente responder as propostas mobilizadoras de uma liderança, cada vez mais a população, em seu processo revolucionário, desenvolve possibilidades de gerar propostas. A dialética entre lideranças e população era aberta, já não podia ser simples resposta à mobilização, tinha que ser mais integradora, geradora de propostas, propostas de políticas, execução dessas propostas, controle dessas propostas por parte de todos. Não só como orientação. E tudo isso implica constantemente que em Cuba se foi buscando ampliar e aprofundar os mecanismos de participação. Na época atual, há outra crise. E nós estamos empreendendo outra etapa, outra mudança na economia. Outra etapa de mudança no mecanismo de participação para controlar essa economia, para guiar essa economia, se há outros interesses. E aí, às vezes, surgem novas regras, porque, para desenvolver essa economia, por exemplo, nós decidimos fazer mudanças na forma de organizar a propriedade. Em Cuba, agora, não é tudo propriedade juridicamente estatal. Agora em Cuba, há formas de cooperativas que não existiam antes. Algumas formas de cooperativas já existiam antes, mas agora existem formas cooperativas novas. Em Cuba se abriu a possibilidade de atividades autônomas, mas, junto desta possibilidade, se abriram possibilidades de que algumas pessoas contratem novas pessoas que desenvolvam atividades econômicas. Isso traz implicações. Tem que se fazer bem feito isso, para que não se reproduzam interesses egoístas, o trabalho pela ganância, o trabalho por exploração, e isso depende também de mudança da vida política na sociedade, mudança no sindicato. O sindicato não pode mais pensar o trabalho como pensava antes, quando tudo era propriedade do Estado. O dono era o Estado e nós somos o Estado: era uma situação relativamente sensível e ao mesmo tempo complicada. Mas não era lutar contra o dono, não era. Agora se trata! Há donos, realmente, mas se trata que esse dono, com os demais que tenha contratado, funciona como um coletivo para a sociedade. Isso não existe! Isso não é encontrado em nenhum lugar do mundo. E nós temos que fazer. Se não, perdemos o socialismo. Podemos perder o socialismo.
E com relação à autodeterminação de povo cubano frente a estas mudanças impostas pelo imperialismo?
O que eu dizia é que o imperialismo sempre tentou acabar com Cuba. Depois que se deu conta que não teve resultado com a guerra econômica, com o bloqueio, com a tentativa de isolamento, busca agora estabelecer relações com Cuba para se meter com a vida de Cuba, por outra via. Em um documento oficial da Casa Branca, por exemplo, disse que eles vão trabalhar na direção de apoiar o desenvolvimento de sindicatos livres em Cuba. Não lhes interessa o sindicato que nó temos, querem outro sindicato. Que eles vão atuar em função de apoiar os pequenos proprietários privados que têm aparecido em Cuba. Eles conhecem o pequeno proprietário privado, não querem o pequeno proprietário privado que ajuda o socialismo, vão buscar o pequeno proprietário privado que tem interesse em enriquecer, em explorar mais, e ao final termine se opondo ao socialismo. Por aí você pode ver nesse documento como eles vão identificar alguns pontos que podem ser vulneráveis em nossa sociedade atual. Na família, por exemplo, porque se agora eu trabalho em uma empresa estatal, eu ganho um salário determinado, mas os que trabalham em uma destas atividades privadas, que são contratados e que reconhecem que têm condições objetivas para que sejam explorados, esse explorado pode ganhar mais que eu e, a partir daí, como que ele vai receber o mesmo benefício da sociedade que eu recebo, educação grátis, saúde grátis, tudo igual, porque são serviços estatais? As pessoas das famílias que vivem com essa pessoa que ganha mais vão desenvolver relações familiares diferentes daquelas que eu desenvolvo e podem desenvolver um sentimento nas pessoas de que é melhor trabalhar nisso do que trabalhar no Estado. E trabalhar no Estado é mais importante porque é mais diretamente com a sociedade. Através da família, desenvolvendo interesses egoístas, pode se pensar em corroer a sociedade cubana. Com relação aos Estados Unidos, uma das primeiras coisas que nós pleiteamos para poder falar de novas relações é o levantamento do bloqueio. O levantamento do bloqueio não depende da decisão do presidente dos Estados Unidos. O Presidente dos Estados Unidos pode eliminar algumas medidas que existem como parte do bloqueio. Isso foi feito bastante rapidamente; já de dezembro para cá retiraram medidas. Já se pode enviar para Cuba remessa do que a gente queira, sem os limites que haviam; já se estabeleceu comunicação telefônica direta de Cuba para os Estados Unidos que antes não era direta; já estão restabelecidos os voos diretos de Cuba para os Estados Unidos; já se permitem viagens de norte-americanos a Cuba mais facilmente que antes. Essa é uma forma que havia sido pensada como uma via de penetração, com a ideia de que, viajando norte-americanos para Cuba, esses grupos americanos, em solo cubano, mudariam nossa mentalidade. Isso já pensaram em aplicar durante o governo de Clinton, em 2002, e depois, no governo de Bush, mas parou porque resultou nas medidas em contrário. O que ocorria: às vezes iam grupos, e foram vários grupos, de seiscentos estudantes norte-americanos em visita a Cuba, passavam alguns dias em Cuba e regressavam aos Estados Unidos passando a defender o governo de Cuba. Então, em vez de os estudantes norte-americanos mudarem os cubanos, quem mudava eram os estudantes norte-americanos. Viram que se saíram mal. Agora se encontra uma mudança: pensam que cubanos podendo viajar para os Estados Unidos convençam os cubanos que é melhor viver como se vive nos Estados Unidos. Já começaram a retirar medidas, mas não o bloqueio completamente. Por exemplo, antes de eu vir para cá, suspenderam a classificação de sanções, suspenderam a possibilidade de sanções a um grupo de empresas internacionais que teriam negócios com Cuba. Os empresários de entidade estrangeira não podiam visitar os Estados Unidos, não podiam fazer negócios nos Estados Unidos, teriam limitações como sanção por terem relação com Cuba. Mas isso não elimina todo o bloqueio, todo o bloqueio não se pode eliminar porque o governo de Bush, completando toda a trama legal que conformou o bloqueio, aprovou uma lei que se chama La Acta para la Democracia Cubana. Estabelece o Congresso dos Estados Unidos, como lei, que só levantará o bloqueio depois que em Cuba haja eleições livres e democráticas supervisionadas e controladas por observadores internacionais, especialmente os Estados Unidos. E, sinceramente, a forma que nós fazemos eleições, nós não vamos permitir que ninguém mais venha controlar, porque é a nossa forma, nossa eleição, nós é que vamos controlar. Em Cuba o processo de eleição, quem organiza são as organizações de massa. Em Cuba, o candidato à eleição quem propõe é o povo, nos bairros livremente ou o propõe as organizações sociais cubanas. Em Cuba, no dia da eleição, as pessoas vão votar no colégio eleitoral, e as urnas são cuidadas por pioneiros. Pioneiro é o nome que recebem as organizações infantis e juvenis de ensino, até o básico secundário, só um menino de cada lado da urna. Para isso, pratica-se um turno e, a cada meia hora, cada vez que aquele volte, aquele menino cumprimenta com a mão e esses vão cuidar das urnas. Em Cuba, no dia da eleição, quando abre o colégio eleitoral pela manhã, se apresenta a urna vazia para todos que querem. Se você é um jornalista que visita Cuba, nada impede que, pela manhã, quando se vai abrir a eleição, veja a urna vazia, que se mostra para todo mundo. Não é só para mostrar ao outro lado, é que nós impomos a nós mesmos essa transparência e, quando termina o horário da votação à tarde, a urna se abre na presença de todos que querem estar presentes para contar os votos. Porque em Cuba não tem guerra entre candidatos para se conseguir ser eleito. Porque em Cuba ser eleito significa mais responsabilidade, significa cumprir seu dever social. Não significa que vai enriquecer, que vai viver melhor; ao contrário, vai viver um pouquinho pior, porque vai ter dor de cabeça, vai ter que estar atendendo, ajudando, colaborando, fazendo, permitindo, propiciando, junto com a população. E essa é a eleição, nossa eleição. Não sei como vai se resolver esse problema, com essa lei. E ela também exige que se verifique se em Cuba os direitos humanos são respeitados. É o primeiro item. Está bem, vamos sentar e vamos discutir o que entendemos por direitos humanos. Nós então diremos a eles, norte-americanos: “vocês é que violam direitos humanos. Digam vocês em que violamos os direitos humanos. Porque em seu país tem gente que está encarcerada esperando a pena de morte, porque são negros e pobres, não por outra coisa. E aí se diz que Cuba tem que acabar com a pena de morte; nós temos a pena de morte e aplicamos somente em casos gravíssimos, de sabotagem que podem comprometer a vida, que podem provocar catástrofes. E aí são centenas, milhares em quem se aplicam a pena de morte, em alguns casos que depois se descobrem inocentes.” Em Cuba, quando alguém nos tribunais sanciona a pena máxima, a pena de morte de ofício, essa decisão é do Tribunal do Supremo, não pode ser tomada no Tribunal inferior. Segundo, imediatamente após o Tribunal Supremo tomar essa decisão, o caso passa a ser analisado pelo Conselho do Estado, não por uma pessoa; são trinta e uma pessoas formando o Conselho do Estado neste momento em Cuba. O Conselho tem que dar essa aprovação ou pode suspender a pena de morte a essa pessoa. Nos Estados Unidos não, nos Estados Unidos a pena de morte é algo mal, se é que se pode dizer assim, é muito mais bárbaro, muito mais cruel do que em Cuba. Nós partimos de uma concepção diferente do que seja o sistema legal, do que seja o sistema de sanções legais. Para nós, as leis são para se ordenar a sociedade. Já consideramos uma derrota nossa quando temos de submeter uma pessoa à prisão, uma derrota para a sociedade. Nós não pensamos que essa pessoa agiu de má forma porque quis e temos que castigá-la, que temos que eliminá-la. Porque em Cuba entendemos a prisão de uma maneira diferente, a condição dos cárceres oferece atenção psicológica, educação, possibilidade de reinserção na vida do trabalho. Aqui vocês conhecem seguramente Silvio Rodriguez, cantor cubano. Silvio Rodriguez recentemente decidiu cantar nos cárceres cubanos e se organizava para que se desenvolvessem atividades teatrais com os presos, cantoria com os presos, eram atividades artísticas, porque, normalmente, tem esse tipo de atividades na prisão. A prisão não é boa para ninguém, nós não queremos ter ninguém na prisão, a prisão é uma derrota para nós, mas se é preciso prender uma pessoa, a prisão tem que ajudar, não é castigando, é ajudando a que se reintegre à sociedade. Esses são os direitos humanos em Cuba. O primeiro direito humano em Cuba é que não se mata ninguém arbitrariamente, ninguém em Cuba é torturado, ninguém pode dizer que em Cuba haja assassinatos. Forças do Estado, como é público no Brasil, forças paramilitares, como as que aqui assaltam uma favela. Em Cuba não se pode mostrar um caso como este. Desde 1959 para cá, quando o exército rebelde estava na serra, o primeiro direito humano que defendia era o cuidado com o prisioneiro que era feito em guerra. Quando o exército rebelde numa batalha feria um soldado inimigo, o primeiro que se tratava era o soldado inimigo. Era assim a luta na serra; isso foi uma ordem que beneficiou, que ajudou o exército rebelde, porque passavam os meses de luta na serra, muitas vezes os soldados de Batista, já nos tempos finais, quando havia um combate, praticamente se rendiam rapidamente, porque sabiam que não iam passar nada, inclusive as armas que eles tinham passavam para as mãos do exército rebelde que lhes davam a oportunidade de se incorporar a ele se assim o quisessem, e aqueles que não quisessem eram libertados. Até isso influenciou para o desenvolvimento da revolução. O respeito aos direitos humanos vem desde Sierra Maestra. Porque vem de muito antes, desde José Martí, o primeiro pensador cubano. Em nossa constituição, em seu preâmbulo, está assinalada uma ideia de José Martí que diz: “Eu quero que a primeira lei de nossa República seja o respeito à dignidade humana”. Então, de que direitos humanos estamos falando? Os ianques querem que nós respeitemos os direitos humanos, então vamos sentar de igual para igual para ver o que são direitos humanos. Temos que pôr no acordo, tem essa coisa para pôr no acordo. Mas se eles pretendem nos impor um tipo de direito humano, nós não vamos aceitar. Vamos discutir, como seres racionais e vamos ver se podemos nos entender civilizadamente. Agora não podemos nos entender se não houver mudança na relação, a discussão tem que se dar com base no respeito mútuo e no respeito à soberania. Se eles hoje estão dizendo que o que querem fazer é apoiar as mudanças em Cuba, já estão me dizendo que querem se meter na vida de Cuba. E se eu digo quero manter relação normal com você eu não posso te dizer como deve ser sua esposa, seus filhos, seu governo. Normalizar relações conosco é: eu te ajudo no que posso, colaboremos no que for possível, e você assume sua vida à sua maneira. A arrogância imperial é muito grande. Esse é o cuidado que os cubanos têm que ter agora.
Sou investigador titular do Instituto de Filosofia. Eu venho estudando há mais de trinta anos, pelo Instituto de Filosofia, as contradições e as contribuições do socialismo em Cuba, porque o processo da formação socialista, como qualquer processo real, tem suas contradições e tem também, como parte dessas contradições, conflitos, problemas, peculiaridades. É um processo, que nós estamos estudando. Dentro disso, eu estudo especialmente, o sistema bolivariano-cubano, as relações entre organizações, como se desenvolve o sistema estatal de apoio popular, o sistema de propriedade em Cuba, um tema que dá para uma outra entrevista, porque eu trabalhei a forma de propriedade, e isso é muito importante não para entender a forma de propriedade como uma simples pressão de existir. É isso que estamos estudando no Instituto. Eu dirijo, desde o ano de 2007, uma equipe de investigação, em que somos cinco, mas trabalhamos com mais de cinquenta colaboradores de diferentes especialidades: psicólogos, cientistas políticos, antropólogos, sociólogos, para fazer um estudo integral da sociedade. Temos estudado a propriedade em Cuba. Temos estudado que projeções podem vir a ter o desenvolvimento da propriedade em Cuba. Estamos trabalhando nisso para contribuir com o desenvolvimento do processo socialista em Cuba. Em Cuba há universidades e centros de investigação. Nas universidades, as atividades fundamentais são relacionadas à docência, mas também se fazem investigações. Nos Centros de Investigações, as atividades fundamentais são as investigações, mas também se faz docência, especialmente pós-graduação. E nossos resultados são publicados, entregues ao Partido, para se discutir com o próprio poder popular, com o governo em geral. Eu trabalho diretamente com o sistema de poder popular, refletindo criticamente, refletindo sobre a proposta. Assim trabalhamos com as Centrais de Trabalhadores, com os sindicatos. Eu planejei uma coisa muito importante em Cuba. Em Cuba, há muito tempo, antes da Revolução, que compreendemos que os sindicatos podem ser diferentes, mas é necessário que haja união dos sindicatos, porque todos somos trabalhadores. Em Cuba há Centrais Sindicais, as quais, há mais de quinze anos, tiveram a iniciativa de criar um Conselho Cientifico Assessor, indicando um grupo especialista que, sem cobrar nada, colaborando com eles, analisando o tema que nos pedem os sindicatos. Assim trabalhamos. Toda minha experiência em poder popular vem do fato de que eu fui eleito e reeleito, durante quase vinte e cinco anos, no nível municipal; e durante nove anos, no nível provinciano; fui cinco anos presidente de um órgão do governo que se chama Conselho Popular; já tenho uma experiência de vinte e cinco anos trabalhando na política de poder popular em Cuba. Também trabalhava no sindicato, como secretário. Fui também presidente do Comitê de Defesa da Revolução, Secretário do Comitê de Base do Partido Comunista quando era jovem, todas essas coisas. Os cubanos têm uma vida política muito intensa. Tenho 63 anos; tinha 8 anos na época da revolução.