Zuleide Faria de Melo: militante comunista de toda uma vida

A professora Zuleide Faria de Melo é um desses personagens políticos cujo papel e presença marcaram indelevelmente a história do Partido Comunista Brasileiro em momentos cruciais da sua existência, da luta contra a ditadura de 1964 até o processo de reconstrução revolucionária que impediu a destruição do mais longevo partido político da história do Brasil. A militância comunista de Zuleide Faria de Melo é marcada por uma generosa solidariedade de classe, por uma imensa grandeza política e por firme convicção ideológica. São 50 anos de presença marcante nas lutas pela transformação social do Brasil na perspectiva do socialismo.

Da simples militância de base à condição de Secretária-Geral do PCB, Zuleide Faria de Melo cumpriu grande jornada em vários campos da vida política e social, passando pela resistência à ditadura no Brasil, pelo apoio às lutas populares e operárias, pelo exercício transformador do magistério na UFRJ e pela convicta solidariedade internacional para com os povos em luta, em especial o reiterado apoio à revolução cubana.

Zuleide Faria de Melo é militante de toda uma vida pela causa socialista, sempre ao lado do operador político que escolheu para travar os combates na história: o Partido Comunista Brasileiro.” Assim a nona edição da revista Novos Temas apresenta rica entrevista com Zuleide Faria de Melo, que transcrevemos a seguir.

Novos Temas: Nós estamos aqui, pelo Instituto Caio Prado Júnior (ICP) e pela Revista Novos Temas para entrevistar a dirigente histórica do PCB, professora universitária aposentada, que teve uma participação importante na história do Brasil, nas lutas contra a repressão e na reconstrução revolucionária do PCB, a camarada Zuleide Faria de Melo. Zuleide, queríamos que você começasse a falar sobre a sua formação, os seus primeiros momentos e de onde você parte para compreender o mundo e lutar pela sua transformação.

Zuleide Faria de Melo: Eu nasci num estado da Federação dos mais atrasados do Brasil, Alagoas, que permanece até hoje num grau de colonialismo, pois o colonialismo não acabou e continua, ainda, em boa parte, submetido a novas regras. E nasci numa família de minifundiários altamente conservadores, uma família religiosa, com duas avós, uma teve 16 filhos e a outra 18, porque a compreensão do papel das mulheres era de uma mera matriz reprodutora de filhos legítimos. Eu tive 32 tios, – salvando a minha mãe e o meu pai – cada um dos casais teve entre seis e dez filhos. Nasci numa família extremamente exigente nas questões morais, nas questões de disciplina, mas eu queria abrir um parênteses para dizer que no Nordeste, apesar disso, o grau de solidariedade é maior do que no Sul, as famílias se interagem. Por outro lado, as exigências de comportamento são muito rígidas. E uma delas é o papel da mulher. A minha mãe acreditava piamente na famosa educação portuguesa, ou seja: escreveu, não leu, o pau comeu. Mas não era só comigo, eu fiquei sempre muito revoltada, até que eu entendi que a minha mãe fazia o que ela aprendeu, e a minha avó fazia, também, o que ela aprendeu. E isso foi a minha infância toda e a minha adolescência, eu me lembro que eu tinha 10 anos, eu estava no 5º ano primário, e a minha mãe tinha a seguinte concepção: se eu tirasse menos de 90, eu apanhava, porque o que era da escola eu tinha obrigação de fazer. Por outro lado, eu não podia ler nada além disso, porque moça de família não é para ficar lendo qualquer coisa, está certo? Com 13 anos, eu me lembro que eu fiz a seguinte pergunta: “Mas eu queria entender porque filho de pobre morre mais do que filho de rico”, e a minha mãe disse: “Mas o que é isso, você está sendo tentada pelo demônio, como é que você pensa uma coisa dessas?”, com aquilo me deu outra surra, mas ela dava com muita facilidade. Uma vez eu levei uma surra porque o meu irmão fez lá alguma coisa e ela estava dando uma surra grande nele, eu fui lá defender o meu irmão e ela aproveitou: “Ah, então vamos exemplar os dois”. Então só para a gente entender aqui, como é que eu me desenvolvi. Numa disciplina muito rígida no fazer, não no pensar.

NT: Você nasceu em Alagoas e viveu lá quanto tempo?

ZFM: Quando eu terminei o primário, por volta dos 10 e 11 anos, vim a primeira vez para o Rio de Janeiro, então eu já fiz o ginásio no Rio.

NT: Você é de Maceió?

ZFM: Não, eu sou de Limoeiro, que é um município que fica perto de São Miguel dos Campos.

NT: Vocês vieram para o Rio de Janeiro. O ginásio você fez em que escola?

ZFM: Fiz no Colégio “Dois de Dezembro” porque eu morei muitos anos no Grajaú, e a minha família morava naquela região do Méier, onde eu fiz o ginásio e a regra era a mesma, na escola eu não podia tirar menos de 90. E eu queria desbragadamente ler; minha mãe ia dormir, eu acendia a luz do quarto e ficava lendo. Aí ela acordava, de madrugada, via a luz acesa, pegava o livro e jogava o livro pela janela, era um horror. Mas no dia seguinte eu fazia a mesma coisa e ela nunca conseguiu me impedir de ler. Os meus pais achavam que menina tinha que ser muito mais resguardada do que os meninos – eu tenho um irmão que é um pouco mais novo do que eu. E uma coisa que eu observava é que o meu irmão podia fazer uma quantidade de coisas que eu não podia. Nessa questão, quando eu reclamava, era sempre o seguinte: que o meu irmão era homem, portanto, ele podia. E eu tinha que entender que eu era mulher, portanto, não podia. E eu comecei a pensar: “Mas, sim, qual é a diferença?”, e quando eu formulava qualquer coisa nessa área, era um escândalo. Tem um episódio que marcou muito, houve uma festa na casa de uma das minhas tias e, lá pelas tantas, começou a dança e eu fui para o quarto onde estavam as minhas tias futricando qualquer coisa. E aí um rapaz veio me tirar para dançar, eu disse que não queria dançar, porque eu não podia. Mas as minhas tias, todas alcoviteiras: “menina, 13 anos, engraçadinho, o rapaz veio tirar para dançar, tem que ir” e acabou que eu tive que dançar. Quando acabou a dança, eu voltei para o quarto e caí num pranto que ninguém entendeu. Eu chorei todas as minhas lágrimas e ninguém entendia. As minhas tias preocupadas se o rapaz tinha feito alguma coisa, pobre do rapaz não fez nada, me tirou para dançar. E eu disse o seguinte: “Não, ele não fez nada, mas ele não tinha o direito de vir me tirar para dançar, porque se eu quisesse dançar eu estava na sala como todo mundo, então ele não tinha o direito de vir aqui me tirar para dançar”. Entende, quer dizer, eu já começava a pensar nos meus direitos, “Pô, não quero dançar, não quero dançar…”

NT: Você era muito rebelde?

ZFM: Quando eu tinha de 15 para 16 anos, a minha mãe resolveu me casar, o que era comum, ainda. Todos os casamentos eram arranjados. E na estrutura familiar, também, casavam uns com os outros, as alternativas não eram tão grandes assim. Então tinha um parente nosso, meu, mais distante, que era primo da minha mãe… Esse meu primo era Coronel da Polícia e foi o único preso em 1937 por ser integralista. Barra pesada! Ele tinha um filho de 20 anos, que estava fazendo Medicina. E aí um dia a minha mãe me chama e diz: “Sente aqui, vamos conversar”, e eu: “Ih, vem coisa…”, e disse assim: “É o seguinte, o Euclides e a Júlia – que era a mulher dele – vieram me dizer que o Wilson está muito engraçado” – as palavras paixão e amor não existiam – era se engraçou. Ela falou engraçadinho, só. “E aí eles estão querendo que você namore com ele”. Eu nunca tinha pensado nisso, “como é que é? Eu vou namorar? Mas eu nem gosto dele.” Foi o maior insulto, eles nunca esqueceram a afronta que fiz de me negar a casar com o filho deles. Eu estava já com 16 para 17 anos, num canto da sala, com um livro na mão, esse Coronel se aproximou e disse: “Ah, deixa eu ver aqui o que você está lendo…”, por um acaso era “Gabriela, Cravo e Canela”. Ele olhou para mim e disse: “Você está lendo isso? É um comunista, como é que você se atreve a fazer isso?”, e tomou o livro. No domingo seguinte, chegou às sete horas da manhã, chamou o meu pai, e disse: “Olha, o que vocês estão fazendo com essa menina? Essa menina está perdida.”, eu não tinha me perdido em nada, mas foi um auê, e ele não devolveu o livro. Então foi tudo muito difícil, tive que me tornar Filha de Maria. O padre falou com o meu pai: “Ela tem que ser Filha de Maria”, disse, “ela vai para o convento”.

NT: Você fez o 2º grau (ensino médio) aqui no Rio de Janeiro, também?

ZFM: Sim, na mesma escola. Eu optei pelo Clássico, porque eu nunca gostei de matemática. Fiz o Clássico, tanto que eu sabia latim, que era obrigatório, depois fiz cinco anos de francês, mas nunca gostei de inglês, até aprendi um pouco, mas nunca gostei. E depois eu é que descobri o espanhol.

NT: E depois de terminar o Clássico, você já foi para a universidade?

ZFM: Não, houve um espaço porque tive problemas de família. É que eu acabei casando cedo, apesar de tudo, com o meu único namorado. Não sei nem se chegou a ser um amor, porque também não era do jeito que é hoje. Namorava-se na sala, no domingo, com a minha mãe fingindo que estava fazendo alguma coisa. E se fosse para ir ao cinema, ela ia junto. Eu fiquei noiva, eu cumpria as regras direitinho, porque também nunca tive muita malícia. Eu acho que até concordava com boa parte delas, desde que não fosse violento, eu até concordava.

NT: Você tinha quantos anos quando casou?

ZFM: Estava beirando 20, 21, por aí…foi uma das imposições do meu ex-marido. Claro, que eu não podia continuar estudando, “porque moça de família não tem que ficar estudando, dando conversa para qualquer um”. Tive duas filhas, mas eu nunca fui uma pessoa esperta, nunca, ou melhor, eu sempre acreditei que a humanidade é boa, todo mundo é decente, honesto, você entende. Eu casei no civil e no religioso, véu, grinalda e flor de laranjeira, com fita azul de Filha de Maria. Com sete anos de casada e acreditando que o meu marido era tão fiel quanto eu. Até que um dia, a minha mãe, que era muito esperta e muito maliciosa, coisa que eu nunca fui, chegou no domingo e disse: “O seu marido tem uma namorada a quarteirões daqui, anda com ela para tudo que é lugar, todo o bairro sabe, a única pessoa que não sabe é você que vive no mundo da lua, enfiada nesses livros que não servem para nada”, e eu juro que eu caí, de repente, numa nova situação. Aí ele chegou lá pelas tantas, eu disse: “Fulano, o seguinte, senta aí, vamos conversar, eu soube disso, assim, assim, assim. Eu quero saber se é verdade”. A primeira pergunta que ele fez foi assim: “Quem foi que lhe contou?”, eu disse: “A minha mãe”. Ele disse: “É verdade, conheci a Márcia, estou apaixonadíssimo por ela”, etc. E eu só perguntei o seguinte: “Ela sabe que você é casado? Sabe que você tem duas filhas pequenas?’ – “Sabe, porque eu já levei para ela conhecer”. Decididamente, eu não passava de uma idiota.

NT: Aí você se desquitou…

ZFM: Eu, na tentativa cristã de não acabar o casamento, disse: “Olha, então vamos fazer uma coisa, a partir de hoje, um de nós dois dorme na sala, mas eu lhe dou um mês para você pensar, conversar com essa moça, explicar a ela tudo e, daqui a um mês, a gente volta a conversar”. Quinze dias depois, ele chegou e disse: “Conversei com a Márcia. Ela faz qualquer coisa para ficar comigo, então eu quero saber se você assina o desquite”, e eu impulsivamente disse: “Assino”. Eu não discuti mais nada, porque não havia mais o que discutir, não é verdade? Foi o desquite mais tranquilo e harmonioso que já houve na justiça brasileira, porque eu não exigi nada. Ele trabalhava no comércio, era comerciante, era mais velho do que eu, uns dois ou três anos. Ele morreu há dois anos atrás. Foi viver com a Márcia e teve três filhas com ela.

NT: Você trabalhava naquele período?

ZFM: Eu já estava na Secretaria de Saúde do Estado, trabalhando num órgão que tinha sido criado recentemente que era o Centro de Estudos, Treinamento e Aperfeiçoamento, ligado diretamente ao gabinete do Secretário de Saúde. Mas o salário que eu ganhava, naturalmente, não era suficiente para dar tudo que eu achava que eu tinha que dar para as minhas filhas. E foi aí que, por um golpe de sorte, também, eu fui trabalhar com a Editora Civilização Brasileira. Trabalhei 15 anos com a produção de livros, até hoje eu traduzo livros, da capa à contracapa, faço tudo. Eu entrei para a Civilização Brasileira em 1965. E comecei a trabalhar com revisão, copydesk, como eu sabia francês bem, espanhol bem e português bem, rapidamente eu estava fazendo muita coisa. Isso foi um marco na minha vida, porque eu trabalhava na Secretaria de Saúde, nesse Centro de Estudos, quando se criou a residência médica. Nesse lugar tinha uma senhora que tinha uma filha da minha idade e que gostou muito de mim. Ela disse: “Olha, você sabe português bem, francês, então eu quero que você venha trabalhar comigo”. Ela ia editar a revista do Estado da Guanabara e me ensinou – e foi por isso que eu consegui ir para a Civilização Brasileira – como é que se fazia a revisão, o copydesk, tudo isso. Quando tinha qualquer folga ela me ensinava o francês, que eu não sabia, treinava o francês, foi uma segunda mãe para mim, uma mulher muito avançada. Chamava-se Dila Loureiro.

NT: Quando e porque você entrou na universidade, como professora?

ZFM: Depois de um ano e meio de ter terminado o curso de Ciências Sociais, que, com a ditadura, foi proibido e não havia concurso público. Então eu entrei para a UFRJ em 1979, porque no IFCS (Instituto de Filosofia e Ciências Sociais) abriu uma vaga, eu soube e aí eu me candidatei e passei, fui a única pessoa.

NT: E a graduação?

ZFM: A graduação eu fiz na Universidade Federal, naquele tempo, que era Escola de Filosofia.

NT: Sim, Universidade do Brasil. Você fez o mestrado antes de entrar para a universidade ou depois que entrou?

ZFM: Logo depois. Em 1980 eu fiz uma seleção e entrei para fazer o mestrado. Quando eu entrei, era uma admissão temporária, porque todos os concursos estavam proibidos. Não havia nenhum concurso na esfera pública, e só houve a partir dos anos 1980, mas naturalmente, eu senti também a necessidade de estudar mais um pouco e, como eu fazia política, de entender também um pouco mais, então fiz mestrado no IUPERJ, em Ciência Política. O trabalho que eu apresentei foi uma pesquisa grande, intitulada “A Mãe Solteira Numa Sociedade de Classes”, um negócio interessante, até hoje… Claro, você precisa adequar um bocado de coisas. Foi uma pesquisa feita numa casa que tinha aqui em Botafogo que abrigava mães solteiras mantidas por mulheres cristãs, todas ricas. Era uma coisa dantesca, sabe.

NT: Naquele período você já estava na Civilização Brasileira?

ZFM: Sim. Foi no início daquele período. Passei a ganhar um dinheiro razoável, eu trabalhava feito um cão, virava noite. Resolvi ir para a universidade, que eu tinha saído no primeiro ano, voltar e acabar. Então fiquei com o diploma na mão, inútil naquele período, porque não tinha nenhuma vaga, todos os cursos dessa área foram proibidos. Mas, para mim, pessoalmente, serviu. Quando chegou em 1965, com essa história de eu precisar complementar o meu salário, foi a Dila Loureiro que resolveu esse problema. Ela percebeu a minha situação e disse: “Zuleide, a Civilização Brasileira está procurando um bom leitor de livros para fazer revisão”. Bom, no dia seguinte fui, era o Ary da Mata que era o editor da Civilização, e ele disse: “Olha, esse livro chegou agora da gráfica, você me traz esse livro revisado em três dias”. Tudo bem, levei para casa, comecei de noite, naturalmente, e no fim de três dias, fui lá entregar. Ele olhou, passou pela mão do Ênio Silveira, que era o Diretor da Civilização Brasileira, não tinha um erro. A partir daí eles me admitiram e virei revisora, tanto que você encontra vários livros com o meu nome. Depois eu trabalhei para a Paz e Terra e até para a Fundação Getúlio Vargas, em trabalhos temporários, eu fazia por tarefa. Mas isso me permitiu ganhar um dinheiro e como eu não fumo, não bebo, não jogo, não danço …

NT: Dava para fazer algumas reservas, não é?

ZFM: Sim, sobrava algum dinheiro e em 1971 eu comprei um apartamento no Grajaú. A minha mãe assumiu a casa, não do ponto de vista doméstico, porque isso ela não faria nem morta, tinha que ter empregada, mas de qualquer forma ela cuidava das meninas, levava para o parque, levava para toda parte e foi muito solidária nessa questão. Então, aí vem uma questão importantíssima, que definiu a minha vida: é que em 1964 teve o golpe. Quando teve o golpe, eu fiquei absolutamente furiosa, porque achava que aquilo era uma indignidade. Aí a vida ou a história ou sei lá o que seja atuou para me mudar.

NT: Como era o seu convívio com o Ênio da Silveira?

Zuleide: Muito bom, ele era uma pessoa fantástica. Era a maior editora do país que, mesmo na ditadura, publicava 21 títulos por mês, mesmo na ditadura nós fazíamos um bocado de coisa. Pois é, o Ênio foi preso três vezes por lançamento de livro. Uma das vezes ele foi preso por mandar traduzir um livro de um soviético. Quem traduziu foi o Miguel Arraes, que já estava exilado. Ele tinha uma livraria em Paris. Naquele período havia um acúmulo de coisas ocorrendo e eu aprendi a responder de forma adequada. Agora, é verdade também que eu fui assumindo cada vez mais tarefas, porque aí o Partido me deu uma tarefa de eu cobrar não sei quantas pessoas para fazer finanças, exatamente porque eu não era tão conhecida assim. A partir de 1965, na Civilização Brasileira, eu conheci todos os grandes intelectuais: Ferreira Gullar, Dias Gomes… Passei a ser a pessoa que fazia revisão do Rio inteiro. Por outro lado, eu comecei a ler, na medida do possível, desbragadamente, porque eu tinha acesso aos livros. Na Civilização, quando se trabalhava em um livro, se recebia de graça, e, nos outros, tinha-se 40% de desconto, então eu tenho uma biblioteca genial. O dia em que cair uma pilha de livro e papel em cima de mim (risos), eu vou morrer sufocada dentro daquilo que eu gosto, aí eu vou morrer feliz.

NT: Eu gostaria que você falasse da sua entrada no Partido, de como você via a atuação do PCB na época da ditadura. Como foi a sua participação, quem foram as pessoas com quem você conviveu?

ZFM: Eu entrei oficialmente para o Partido Comunista Brasileiro no dia 25 de março de 1965. Mas eu já vinha militando há um ano, fazendo tudo que o Partido me pedia. Eu comecei a militar em 1964 em função de um primo meu, que foi preso aqui, porque foi eleito pela UNE em Maceió e veio para o Rio no final de 1963, Jurandir Bóia. Ele é um médico famoso em Alagoas. O presidente da UNE era o José Serra, o Marcelo Cerqueira era o secretário geral, e o Jurandir tinha sido eleito como tesoureiro. Nessa qualidade, ele trancou a matrícula e veio para o Rio. Ora, quando veio o golpe, o Zé Serra e o Marcelo Cerqueira já eram “macacos velhos”, o meu primo era um garoto de 20 anos, primeiro ano de Medicina, veio para o Rio, não tinha nenhuma experiência. Foi o único preso da UNE. E desapareceu, ninguém sabia dele, ninguém sabia se ele estava vivo, se ele estava morto, ninguém sabia. E a mãe dele, minha prima em primeiro grau, me mandando cartas pedindo “pelo amor de Deus” para eu descobrir o filho dela, onde ele estava, porque nesse período o outro filho dela – ela teve dez filhos – o Jaílson estava no primeiro ano de Engenharia, lá em Maceió, na Faculdade Federal de Engenharia. Quando veio o golpe, o Jaílson, que era muito mais esperto do que o Jurandir e participava muito do movimento estudantil, reuniu o diretório, do qual era o presidente, e ocuparam a Rádio Nacional em Maceió. E começaram a colocar no ar chamando a resistência. Muito bem, isso durou pouco, naturalmente, porque o Exército cercou a rádio, ocupou a praça e mandou um ultimato, que se eles não saíssem, começariam a atirar. Mas um primo que era um fazendeiro muito importante, todo mundo conhecia, ficou indignado quando o Exército disse que ia metralhar a emissora. Pegou a capangada toda e foi para Maceió. Chegou lá, distribuiu os homens, todos armados, procurou o Coronel do Exército e disse: “Olha, primeiro o seguinte, eu escutei no rádio que vocês querem atirar na garotada, o meu primo é o meu sangue e vocês não vão derramar uma gota de sangue da minha família”, porque lá o problema não é se é comunista, “é o meu sangue”. Então eles conseguiram sair, o Jaílson, depois, foi preso, foi mandado para Pernambuco, foi torturadíssimo. E o Jurandir, ninguém sabia. Uns dois meses depois eu resolvi e fui com a cara e a coragem ao Ministério da Guerra. Cheguei lá, falei com um tenente, disse o que era, ele me levou para um coronel. Ao coronel eu disse: “Olha, eu estou aqui pelo meu primo, estão aqui todas as cartas da minha prima que quer saber onde está o filho dela, se está vivo ou morto. Eu queria dizer ao senhor que quando ele saiu de Alagoas, ele saiu legalmente, ele não cometeu nenhum crime. E eu preciso saber onde é que ele está, primeiro se ele está vivo” – “Não, ele está vivo”, – “Onde?”, – “No DOPS”. E eu: “Então o senhor vai me autorizar a visitá-lo”. O coronel me deu um bilhete para eu poder ver Jurandir no DOPS. Ele estava com 40 graus de febre porque alguns ferimentos infeccionaram. A visita foi curta, durou dez minutos e, quando terminou, Jurandir, discretamente, botou um papel na minha mão, eu tive a sensatez de não abrir, botei discretamente na bolsa, abri em casa. Esse bilhete dizia o seguinte: “Todos os documentos, livros, materiais da UNE estão no Hotel Argentino e você tem que tirar isso de lá porque já está há muito tempo”. Antes do golpe, eles tinham alugado dois quartos nesse hotel e levado todo o arquivo para lá. Dizia ainda: “Se eles pegarem esse material, eu não vivo 24 horas, nem eu, nem muita gente”. Eu li o bilhete, nunca tinha feito nada disso, mas nordestino é outra coisa, nordestino, a gente aprende, também, muita coisa fora dos padrões. Aí eu chamei o meu irmão, só tenho um irmão, que até hoje acha que eu sou doida varrida, não tenho salvação mesmo. Fomos lá e tivemos uma sorte porque o gerente que estava de plantão era um espanhol que tinha participado da Guerra Civil Espanhola. Quando eu cheguei lá e eu mostrei o bilhete do Jurandir, ele deu um suspiro de alívio e disse: “Minha senhora, esse material está aqui há mais de três meses, dois apartamentos fechados que não estão sendo alugados e eu estou guardando isso, mas se a senhora levar tudo hoje, eu lhe agradeço muito”. Aí, bom, uma hora depois a gente estava saindo. Chegamos em casa, no Grajaú, com todo esse material. Tinha cheque grande do Juscelino Kubitschek, que era para fazer a obra do prédio da UNE, documento de todo tipo. E aí ficou a seguinte questão, o que fazer com aquilo. A minha mãe me deu um ultimato, disse: “Você trouxe, agora nós teremos que destruir”. Salvou-se pouca coisa, a primeira coisa que eu destruí foi o cheque do Juscelino, até porque ninguém ia apresentar aquele cheque em lugar nenhum, não é verdade? A minha mãe é uma coisa muito engraçada, ela morreu com 100 anos esperando que eu regenerasse. Aí a ideia foi dela: “Olha, nós vamos rasgar esse material, ver se tem alguma coisa que pode salvar, porque não tem onde botar, não dá para queimar, porque os vizinhos vão ver, vai ficar ruim. A gente, de noite, vai botar tudo isso dentro de um tanque, abrir a torneira e esperar, porque, com a água, a tinta desaparece e amanhã de madrugada a gente tira esse papel, vai pondo em saco e pode botar na lixeira, porque ninguém vai notar”. Dois meses depois, o Jurandir foi solto, porque não tinham nada contra ele, não havia uma única acusação contra ele. Foi a partir daí que o pessoal de Alagoas passou a contar comigo. Porque quando, em Alagoas, se soube disso, todo mundo achou que, a partir daí, eu estava preparada para qualquer coisa. Aí começou a vir gente do Partido para a minha casa, Jaime Miranda, os sobrinhos dele, e a minha casa começou a ficar cheia e eu, durante esse período todo, até março de 1965, fiz tudo que tinha que fazer e não era do Partido ainda. E foi aí que eu comecei, então, a me inteirar cada vez mais das coisas.

NT: E então você entrou oficialmente no Partido?

ZFM: Em 1965, porque durante um ano eu fiquei sendo submetida a uma prova que eles não diziam o que era, mas passaram a me dar tudo que era tarefa. Não só de alojamento, mas de tudo: “Faz isso, faz aquilo”, acabei começando a cobrar pessoas que pagavam para o Partido. Em 1965, no dia 25 de março, aniversário do Partido, o Laudo Braga, que já estava no Rio, foi lá em casa e disse: “Olha, se arrume que eu vou levar você lá na minha casa…” – “Tá bom…”, eu não discuti, eu me arrumei e fui, era um domingo e lá ele me disse: “Olha, você está aqui porque hoje você está sendo introduzida como membro do Partido Comunista Brasileiro”. A minha vida mudou radicalmente. Primeiro, eu tinha duas filhas para sustentar por minha conta; segundo, porque eu precisava arranjar dinheiro para fazer isso. A partir da vinda de pessoas da família do Jaime Miranda, do qual fiquei muito amiga, passaram a usar a minha casa dessa forma. Até a Marli Vianna diz isso no depoimento que ela deu para a UFF: “O que a Zuleide fez poucas pessoas fazem, porque ela fez tudo isso sem deixar de trabalhar, sem deixar que a vizinhança soubesse, e, na verdade é uma atuação extremamente difícil, porque eu”, ela falando, “eu estava escondida, ninguém sabia, ninguém me achava, mas não era o caso dela, porque, com qualquer denúncia, ela estaria perdida”. Essa coisa da semiclandestinidade é uma barra.

NT: Agora, conte um pouco da sua história no PCB a partir daí: o que você teve de tarefas, com quem você conviveu, quando é que você entra para a direção.

ZFM: Eu nunca tive gana por direção, nunca tive gana por cargo. Cargo, para mim, é uma injunção, é um encargo, não é outra coisa. Tudo que eu fiz naquele tempo no Partido eu fiz sem ser da direção. Eu também não tinha tempo, porque eu passei a hospedar Alagoas inteira, depois começou a vir gente de Pernambuco e pessoas fugidas, inclusive do campo, das Ligas Camponesas. Com muito cuidado da vizinhança, porque isso a minha mãe aprendeu também, porque chegava esse bando de gente e ela dizia que era tudo parente que estava chegando de Alagoas, ela nunca disse outra coisa. Em 1968, eu recebi um ultimado para ir à União Soviética num grande encontro da Juventude Democrática. Eu estava em Moscou quando o Costa e Silva assinou o AI-5, eu tinha saído por portas transversas e voltei por portas mais transversas ainda. Fiquei dois meses lá, e a entrada e a saída foi com passaporte falso. Para voltar para o Brasil, saindo da União Soviética, você não imagina os caminhos tortuosos que você tem que passar: você vem até aqui de avião, aí você sai de trem para outro lugar e pega outro avião. Uma viagem de horas dura três dias, quatro dias. Que era para não deixar pistas. Então não podia deixar pistas. E foi no meio disso tudo que eu fui também aprendendo, aprendendo e começando a estudar e foi muito duro para mim porque eu era Filha de Maria. De uma crente em Deus, virei comunista.

NT: E qual era a militância aqui do Partido contra a ditadura, você acompanhou isso?

ZFM: Eu acompanhei sem participar em coisas diretas, fiquei na retaguarda, porque eles acharam, o próprio Jaime Miranda, que o que eu fazia era muito importante, porque eu era aqui quase que a única pessoa que recebia gente. Tanto que todo mundo brincava dizendo que era embaixada de Alagoas, embaixada do Nordeste. Quando chegou nos anos 1970 piorou tudo. No governo Médici, todos os cuidados eram maiores. No início, o Partido ainda tentou fazer algumas coisas através de entidades, mas a coisa foi apertando, foi apertando. Então eu passei a fazer algo além de receber gente. No final dos anos 60, consegui comprar um mimeógrafo sueco, uma máquina de escrever sueca, daquelas pesadas, de ferro, que você bota na mesa, não sai por nada. Passei a rodar todo material que chegava da Europa à noite, pois eu não podia fazer isso de dia. Arrumei o quarto de empregada, que tinha espaço, e de noite eu ficava lá, até de madrugada, datilografando os textos e reproduzindo. E os contatos foram rareando, porque a Marli e o Salles, logo depois, foram para a Europa. Havia muita gente saindo no final dos anos 1960. O próprio Jaime Miranda passou a ficar muito tempo na União Soviética. Quando ele voltou para o Brasil, foi pego. Quem ficou no Brasil foi o Isnard Teixeira e o Geraldão. Não tinha o Prestes. O último que saiu foi o Giocondo Dias. E o Giocondo também frequentava a minha casa, porque era seguro. Então eu creio que, nesse período, praticamente todo o Partido usava a minha casa. Porque não tinha mais onde se reunir, então todas as reuniões eram marcadas lá e quando era reunião grande do Comitê Central, era eu quem arranjava o local. Porque estava trabalhando, conhecia muita gente na Civilização Brasileira, entrei em contato com a intelectualidade toda. A Marli até diz na entrevista que ela deu: “Olha, a gente discutia fora, qualquer problema que precisava: vamos passar para a Zuleide”, era assim que resolvia. Porque, como eu tinha um cargo na Secretaria de Saúde razoável, trabalhava para a Civilização Brasileira, eu era uma pessoa reconhecida como uma pessoa digna.

NT: E sem suspeita, não é?

Zuleide: E sem suspeita, porque ninguém imaginava que eu fizesse isso tudo, eu ainda fazia mais. Foi assim até o período de 1974 ou 1975. Para mim, 1975 é um marco. É que de 1974 para 1976, 13 membros do Partido, sendo 10 do Comitê Central, desapareceram e estão desaparecidos até hoje. Basicamente o que restou do Comitê Central foi saindo do Brasil, foi saindo, até a Marli Vianna e o José Salles saíram no final de 1974. Em 75, quem pôde, saiu. Então quem ficou aqui no Rio foi o Geraldão, e o único contato dele era com o Isnard Teixeira. O Isnard Teixeira, que não ficou na clandestinidade, tinha uma característica que hoje eu acho que as pessoas não valorizam. É que, primeiro, ele era um médico importante, um dos maiores conhecedores de uma determinada doença, ele era, assim, vamos dizer, a pessoa que se dava de corpo e alma para a luta. Um socialista, um médico conceituadíssimo, com curso nos Estados Unidos, enfim, brilhante. E era o chefe do Laboratório de Análises Clínicas da Santa Casa de Misericórdia, adorado por todas as freiras, que diziam que ele não era comunista, ele era um santo. Mas na minha família também, na minha família, as tias diziam: “Minha filha, mas você fique tranquila, ninguém vai notar que você é comunista, ninguém acredita, você é uma santa”. Quando o Jaime Miranda desapareceu, o Comitê Central me deu mais a tarefa de manter a família do Jaime Miranda no Rio de Janeiro, a Elza, com quatro filhos. Eu consegui manter mais ou menos por um ano. Quando chegou no fim de 1975 eu chamei a Elza e disse: “Elza, até agora consegui manter você viva, mas não está dando mais, então eu queria que você escrevesse para o seu sogro para dizer que vai voltar para Alagoas, porque lá você está segura, os seus filhos estão seguros, e o menino, quase recém-nascido, pequenininho, lá o pai do Jaime Miranda vai resolver o problema”. Ela entendeu, agradeceu tanto que, quando completou 30 anos do desaparecimento do Jaime, a família dele me convidou para ir à cerimônia que ia ter lá em Maceió, no Palácio, me mandaram passagem, tudo, porque eles reconhecem que não só o Jaime Miranda, mas a família do Jaime Miranda só sobreviveu em função do meu trabalho.

NT: Como foi sua relação com o Giocondo?

ZFM: O Giocondo Dias foi o último a sair, em 1975, através de uma grande operação. O Giocondo tinha diabetes altíssima, estava com todo tipo de problema e ele não tinha mais onde ficar, e aí – eu morava num apartamento térreo – e ele chegava, cinco da manhã, cinco e meia, batia na janela e eu, que tinha sono leve, abria a porta, e ele, cada vez definhando mais, porque só tinha dificuldades, a diabetes aumentando. Eu fazia chá para ele, quem dava dinheiro a ele para viver mais um pouco era eu, porque não tinha mais ninguém que fizesse isso. “Olha, Zuleide, eu não tenho para onde ir, a única casa que eu ainda venho é a sua, a única pessoa em quem eu ainda confio nesse momento é em você, que tem feito o que pode e o que não pode, mas não está dando. Então eu estou tentando sair do país, estou tentando ir para a União Soviética, não sei se consigo. Então eu queria lhe dizer, a partir de hoje, se eu, dentro de 15 dias ou por aí, não aparecer, das duas, uma: ou eu consegui sair ou eu fui preso”. E é uma expectativa desesperadora, porque eu tinha uma relação muita boa com o Giocondo, ele dormia a manhã toda, eu fazia tudo. Virei uma filha dele, quase, até que ele saiu do Brasil.

NT: Há alguma outra história importante desse período?

ZFM: Em 1974, o Sales chega lá em casa um dia e diz: “Olha, Zuleide, é o seguinte, o arquivo do Astrojildo Pereira, eu e a Marli estamos guardando, mas começou a ser procurado. Nós temos que tirar esse arquivo de São Paulo, e a única pessoa que pode fazer isso é você. Veja, tal dia eu chego aqui, cinco horas da manhã na sua casa, e a gente vai para São Paulo pegar o arquivo”. E lá fomos nós, umas cinco e meia, a 140 quilômetros por hora, sem parar, porque o carro estava com a placa na Polícia Federal, era procurado, esse carro do Sales. E ele saiu, quando a gente entrou na Avenida Brasil, ele olhou o relógio, disse: “Olha, marca aí”, três horas depois a gente chegou na Avenida São Sebastião. Não paramos nem para beber água, tá. E um carro antigo, velho, muito velho.

NT: E aí vocês trouxeram o arquivo para o Rio de Janeiro?

ZFM: Trouxemos o arquivo, saímos de lá de noite, porque até para embalar tudo tinha que ser no escuro. A gente saiu para o Rio e duas horas da manhã o carro dele enguiça, com todo material dentro. O carro estava abarrotado, o arquivo do Astrojildo é muito grande. Aí o Sales diz o seguinte: “Tiramos duas malas, colocamos aqui na beira da estrada e você e a Marli, juntas, vocês duas ficam aqui. E eu vou tentar arrastar esse carro até o primeiro lugar que tenha alguma coisa que possa consertar e volto”. Então, nós sentamos na beira da estrada, com as duas malas, esperando por quase uma hora o Sales voltar com o carro pronto para fazer o resto do caminho. Essas coisas contadas parece inacreditável, mas foi assim. Aí cinco e pouco da manhã, chegamos com esse material todo lá em casa, porque eu tinha arranjado outro local, mas não dava para levar, porque não dava mais tempo. Colocamos tudo aquilo lá em casa, a minha mãe reclamava, mas enfim. E a Marli disse na declaração que ela fez: “Olha, a Zuleide era tão segura, que eu nunca soube onde ela guardou o material”. É verdade, nunca ninguém soube.

NT: Você tirou da sua casa?

ZFM: Sim, eu já tinha tudo preparado, era essa casa, que tinha uma casinha atrás, era grande, eu aluguei, era de um pessoal da família, distante, mas era da família, e era boa, porque a família tinha muitos filhos, aquela casa com filhos, ninguém desconfiava. E eu ia lá uma vez por mês, abria a janela, pagava um aluguelzinho mixo, e nunca ninguém soube, nem o Sales ficou sabendo. Você tem que ter uma noção sobre isso, eu sempre disse o seguinte: “Gente, só me digam o necessário, não me digam mais do que eu preciso saber para fazer, porque, se eu for presa, o máximo que pode acontecer é me cortarem a cabeça, mais do que isso não vão conseguir, até porque eu não cedo”, não é verdade? Em 1977, a Dora (Henrique da Costa) veio de Paris e me disse: “Olha, eu estou aqui em nome do Partido, para tirar todo esse material, porque em Milão, lá no Museu da Classe Operária, estão criando condições de receber esse arquivo, então nós vamos tirar da sua casa, de onde estiver, devagar, eu já falei com um cunhado meu que tem uma Kombi e ele vai, devagar, em dois ou três domingos, tirando esse material e colocando na casa dele em Duque de Caxias, e de Caxias nós preparamos, embalamos tudo, para mandar para Milão”. Então foi isso, esse material foi tirado. Depois eu fui lá para ver. Eles mandaram fazer nove baús de madeira para embalar esse material todo, para despachar. E a Dora deu realmente uma contribuição boa, porque ela fez esse material sair do Brasil em nome dela, porque, como ela estava fazendo doutorado em Paris, era um salvo conduto, porque, na declaração desse material, ia para Paris. Ninguém entendeu porque ela pegou um navio que ia para a Itália, ela deu uma desculpa qualquer sobre o porto de Paris, que não podia, qualquer coisa. Mas, claro que não ia para Paris, ia ficar lá, em Milão. Foi quando respiramos.

NT: E como é que foi a sua militância depois de 1979, quando o pessoal voltou do exílio e aí começou a disputa do CC com Prestes, o Secretário Geral do Partido?

ZFM: A partir de 1974, veio o governo do Geisel. Eu consegui saber que tem no Exército uma declaração do Geisel dizendo o seguinte: “Agora que acabamos com os grupos de guerra, nós vamos pegar o pessoal que pensa, que é o pessoal do PCB”. Foi quando o Geisel investiu pesado contra o Partido. Porque ele dizia o seguinte: “Olha, esse pessoal da luta armada acabou”, e tinha acabado, de fato, “acabou”; a partir daí foi muito duro para nós. Em 1976, chegou uma pessoa lá em casa e disse: “Olha, você tem que sair do Brasil urgente, porque o fulano foi preso”, que era uma pessoa conhecida, “e falou em você. Você tem que sair”. – “Eu não tenho como sair, eu trabalho”. O Sales disse: “Agora, é uma questão de vida ou morte”. Eu pedi licença sem vencimento, eu tive uma conversa com o Ênio Silveira: “Eu já trabalhei até de graça aqui quando você esteve preso, quem fez a revisão do Capital fui eu, escondido, junto com o tradutor. Fui eu que fiz, não o primeiro volume, mas os cinco volumes seguintes, eu fiz a revisão, não recebi um centavo, durante seis meses eu trabalhei de graça para a Civilização Brasileira, porque o Ênio estava preso. Eu disse: “Olha, tudo que eu podia fazer eu fiz, mas eu preciso sair do país e eu tenho família”. O Ênio foi extraordinário, disse: “Se você tiver como tirar férias, a partir daí eu mantenho”. E fez isso. Então eu fui para a França, passando pela Suíça. Em Paris eu fiquei hospedada na casa de uma professora – não lembro mais o nome – que era do Partido. Até que uns seis meses depois, o pessoal lá queria que eu ficasse, porque eu falava francês bem. Eles criaram um Centro de Estudos de Problemas Brasileiros. Eles queriam que eu ficasse porque eu fazia revisão, eu entendia tudo de livro. Mas aí eu disse: “Não, companheiros, na hora que melhorar, eu volto para cá, porque eu tenho duas filhas para criar e não posso ficar aqui”. Aí, no fim de seis meses, eu voltei. Eu tinha pedido licença sem vencimento e fui readmitida: estava tudo legal.

NT: Zuleide, vamos mudar o rumo de alguns pontos da nossa conversa. Você conviveu com Jaime Miranda, portanto, queremos saber como foi esse convívio com ele, como você conheceu o Prestes, Giocondo Dias, Malina, esses quadros históricos da direção do PCB.

ZFM: O Malina menos, muito menos. Esses quadros históricos, veja só, eu só conheci o Prestes quando ele voltou da União Soviética, ele tinha ido para lá bem antes. Logo depois da ditadura, eu não podia ter conhecido o Prestes.

Em 1973, o Comitê Central da época criou uma assessoria para o Comitê Central e me pediram para participar dessa assessoria. A Voz Operária estava sendo feita na Europa, ela vinha e eu não sei como, mas quem datilografava era eu. Eu comprei o mimeógrafo, vinham os documentos, eu datilografava tudo e depois imprimia em mimeógrafo. Tudo num quartinho em casa, porque a gráfica do Partido já tinha caído. Nesse momento era o governo Médici, em que a ditadura estava absolutamente assanhada, achando que o mundo era dela. Ao mesmo tempo, precisávamos duplicar o trabalho do Partido e surgiam quinhentas mil dificuldades, porque a disciplina partidária era muito mais rígida. Hoje, é impressionante como as pessoas não se dão conta disso, porque eu trabalhei esse tempo todo e viajei para tudo que foi lugar. Agora, eu nunca abri a boca, eu viajava, mas não falava com ninguém. Eu fui uma vez à Argentina para pegar um material que estava chegando da França, e ninguém me disse como é que eu tinha de trazer. Eu tinha um casaco – eu também aprendi, pois minha mãe me ensinou a fazer algumas coisas de costura – peguei aquilo ali, tirei o forro do casado, botei direitinho e fechei o forro do casado e consegui voltar da Argentina para o Brasil sem transtorno.

NT: Prestes você conheceu quando voltou do exílio, e Giocondo Dias?

ZFM: Tem uma história engraçada: uma vez tinha uma reunião fora, era uma reunião de três dias, e ele ia, mas não podia ficar o tempo todo. O Zé Sales é que dirigia, pegou o Giocondo, e ele tinha que voltar no dia seguinte. No dia seguinte, ele diz: “Olha, agora eu preciso ir porque eu tenho outro compromisso”, aí o Zé Sales: “Ah, Zuleide, então entra com a gente para ficar parecendo que é um casal, você e o Giocondo no banco de trás”. O Giocondo era disciplinado como qualquer comunista daquele tempo. Ele tinha que fazer o caminho de olhos fechados, porque não podia saber o caminho, onde é que era a reunião. Olha a que ponto ia a segurança. Ele era o Secretário Geral do Partido. Ele sentou no banco de trás, e íamos conversando. O carro andando, mais de meia hora depois – a regra era o seguinte, tem que sair das redondezas, do local, depois se abrem os olhos. E lá pelas tantas, ele, participando da conversa, disse assim, muito humildemente: “Mas, gente, eu já posso abrir os olhos?” Eu o Sales demos uma gargalhada, porque a gente tinha esquecido que ele já podia abrir os olhos, ele andou quilômetros de olho fechado, ele, Giocondo Dias, Secretário Geral do Partido. Nesse meio tempo eu passei a ser um contato permanente do Partido, com várias pessoas que eram da direção naquele momento, vários dos camaradas que morreram.

NT: Fale um pouco da participação de Isnard Teixeira no auxílio a todas as pessoas, nesse período, como membro do Comitê Central. Tinha que estar disfarçado?

ZFM: Sim, claro, e com isso ele salvou muita gente, ele conseguiu manter o pouco que ficou do Partido, ele e o Geraldão. E eu quero dizer que eu dei todo o apoio que pude. Então, veja, a partir de 1975, o mundo fechou. Porque quase todos eles tinham desaparecido. O Jaime Miranda estava na União Soviética, voltou para o Brasil no finalzinho de dezembro, bateu lá em casa e disse exatamente o seguinte: “Zuleide, eu estou aqui numa tarefa do Partido Comunista da União Soviética, porque nós temos todas as indicações de que há uma infiltração grande no Partido, e eu vim aqui para esclarecer isso”. Já em 1974 havia caído o David Capistrano, caíram várias pessoas que estavam chegando de fora. E o Jaime Miranda não foi muito diferente disso, porque alguém sabia que ele estava no Brasil. No dia 4 de fevereiro, às 11 horas da manhã, ele passou na casa da Nelinha, cunhada dele. Isso foi ela que me contou, depois. Ele disse para a Nelinha que estava indo para Pilares, um bairro depois do Méier, porque tinha um encontro lá, um ponto, e que de lá ele ia para Niterói, porque ele ia pegar um passaporte para voltar para a União Soviética, foi isso. E desapareceu, ninguém sabe se foi em Pilares, se foi em Niterói, o que se sabe é que de noite ele já não apareceu. Aí de noite, eram 10 horas da noite, chega o sobrinho dele, Anivaldo, com outro companheiro, dizendo: “Olha, o Jaime caiu, e a gente está aqui para esvaziar a sua casa, tirar tudo que possa, de alguma forma, comprometer”. Eu disse: “Olha, companheiros, eu acho que não é necessário, porque de uma coisa eu tenho absoluta certeza: o Jaime não vai falar.” – “Companheira, o problema não é se o Jaime vai falar ou não, o problema é que isso é uma questão de segurança, portanto, nós vamos fazer”. E passamos a noite tirando livro, documentos, etc.

NT: Quando o Prestes voltou ocorreu o quê?

ZFM: Por decisão da direção fui trabalhar como secretária dele. Tive muitas tarefas, e uma delas, a última, foi datilografar na casa dele a Carta Aos Comunistas. Nessa altura, de 1978 em diante, eu tive uma atuação gigantesca no CEBRADE, que era o Centro Brasil Democrático, criado pelo Niemeyer, que era o Presidente e o Renato Guimarães, o grande Secretário. Quero registrar que nisso tudo, mesmo no CEBRADE, em que eu dei uma contribuição gigantesca, tenho toda documentação, eu nunca recebi um centavo, nem para a passagem, jamais alguém me perguntou se eu tinha dinheiro para chegar em algum lugar, jamais, eu também nunca disse. Então, com a anistia, que foi no dia 28 de agosto de 1979, no dia 20 de outubro, o Prestes chegava aqui no Galeão. E quem foi ver apartamento para o Prestes fui eu, pelo CEBRADE, e quem ajudou a organizar a recepção para o Prestes fui eu, quem fez o papel, que eu tenho guardado, de saudação para o Prestes, fui eu, cujo nome era “O Exercício de Democracia”, tá aí, faz parte da minha documentação, foi lido lá, na chegada dele. E, por incrível que pareça, fiquei na segurança do Prestes também. Porque mulher alagoana tem que saber fazer tudo, não é verdade, então fiquei na segurança do Prestes. Muito bem, e aí, o Isnard Teixeira, que era o meu grande contato nesse período, depois que o Giocondo saiu, era Diretor de Laboratório de Análises Clínicas da Santa Casa, ele ligava: “Zuleide, eu quero que você tal dia, tal hora, venha aqui para almoçar comigo.”, e eu digo: “Pronto, chegou coisa…”, então eu ia para lá, e realmente almoçava. E aí ele tinha lá uma sala que era só dele, saíamos passeando pela Santa Casa, que é muito bonita por dentro. Uma vez íamos passando, ele disse: “Você não acha que isso aqui parece aquela rua dos conventos da Bahia”, eu disse: “Não, eu acho que isso aqui parece com as masmorras da Idade Média…’ (risos) e ele: – “Mas por quê?” – “Porque dos conventos da Bahia eu já me livrei; das masmorras, não, não é verdade?”. E aí o Isnard disse: “Olha, o seguinte, eu já combinei com o Geraldo que o Prestes vai precisar de uma secretária na casa dele e que a secretária ideal é você, você vai ler para ele e vai escrever”. Eu já estava na universidade, então durante um tempo eu dava aula de manhã até meio-dia, comia um sanduíche e ia direto para a casa do Prestes.

NT: E onde era a casa do Prestes nessa época, Zuleide?

ZFM: Era na Rua Princesa Elisabeth, ali na saída de Copacabana para Ipanema, era um apartamento bom. Eu dava aula, eu nunca faltei, sou conhecida até hoje no IFCS como a professora que nunca faltou e nunca chegou atrasada, entrava às sete horas da manhã, eu estava na sala de aula, disciplina ajuda. No Natal eu liguei para casa e disse que não ia porque era uma indignidade deixar o Prestes sozinho, ele e a Marisa, não tinha mais ninguém. E aí passei o Natal lá. Então eu batia tudo que ele queria, lia os documentos que chegavam, tudo em francês ou espanhol, em russo eu não sei ler, mas eu traduzia… Isso foi desde que ele chegou até abril de 1980. Em abril ele me deu um documento: “Veja, tem uma coisa aqui que eu quero que você bata.” Comecei a bater, quando acabei de bater, eu me dei conta da grandiosidade da coisa e, pela primeira vez, eu cheguei e disse: “Companheiro, essa carta aqui vai destruir muita coisa. Isso aqui, quem sabe, dá para rever algumas coisas, vamos dizer isso, aquilo…”, ele me olhou e disse: “A carta é essa”. Não me disse nada além disso. Isso foi perto da Semana Santa e, quando terminou a Semana Santa, ele disse que eu não precisava voltar. Tinha mais ou menos seis meses que eu trabalhava com ele, seis meses e pouco.

NT: Você percebia em Prestes uma vinculação com o marxismo, ele tinha domínio disso?

ZFM: Eu acho que no Partido, vamos aqui botar os pingos nos is, pouca gente tinha domínio do marxismo, o Jaime mesmo era um estudioso, conhecia O Capital, que ele já tinha lido 20 vezes. Mas eu quero deixar claro o que eu já disse várias vezes: mesmo na maior clandestinidade, quando um companheiro operário entrava para o Partido, se ele não soubesse escrever e ler, o Partido sempre manteve ensino de português, porque dizia o seguinte: “Um comunista tem que saber ler e escrever para poder falar”. Então isso nunca deixou de existir, mas é um conhecimento, vamos dizer, residual. E dentro disso tinha um pouco de marxismo, mas também não era um estudo teórico, era a leitura basicamente do Manifesto. Todos liam o Manifesto. Eu acho que o Prestes leu bem mais do que isso, mas não acredito, até por falta de tempo, que tenha lido muito mais do que isso, era uma pessoa digna, séria, honrada e que queria ajudar a fazer a revolução, isso não significa que ele era um teórico, e eu também não acho que isso seja um crime, está bom?

NT: Muito bem, depois dessa experiência com o Prestes, como é a sua visão da transição democrática e dos anos 1980?

ZFM: A partir de 1977, eu comecei a ter uma vida pública visível, vamos dizer, de envolvimento em várias coisas do Partido. No CEBRADE eu fiquei até 1983, por aí. Tanto que o primeiro encontro pela democracia foi feito no dia 10 de dezembro de 1978, aqui no Rio de Janeiro, já com 2 mil pessoas do Brasil todo. E veio a primeira eleição depois do Congresso Nacional fechado, as minhas filhas já estavam grandinhas e eu morava entre Grajaú e Vila Isabel, e essa foi a região onde Marcelo Cerqueira, Modesto da Silveira e Heloneida Studart tiveram mais votos. Eu fiz a campanha para a Marli, foi aí que eu fui a uma favela. A partir daí foi que eu comecei a ter uma vida, vamos dizer, aberta, legal. Em 1979 eu entrei para o IFCS, porque, no bojo disso tudo, eu consegui me preparar para um concurso interno e tirar o primeiro lugar. E quando teve o atentado do Riocentro, as minhas duas filhas estavam lá. Eu tinha saído do CEBRADE, às dez horas da noite, elas tinham ido com o pessoal do CEBRADE, pois elas estavam lá ajudando e, perto de meia-noite, eu estava com o radinho ligado e aí veio a notícia do atentado e ninguém sabia nada. Olha, é uma angústia, porque as duas estavam lá e, pelo que a imprensa dizia, não tinha ficado nada, porque também a imprensa ficou muito assustada. Só às duas horas da manhã foi que eu soube que a rigor não tinha havido a explosão lá, tinha sido antes, enfim. Mas então foi isso, quando chegou nesse processo eleitoral, eu fui a uma favela ali no Parque de Vila Isabel e lá eu ouvi de várias pessoas o seguinte: “Olha, vocês são muito engraçados, porque quando tem eleição, vocês aparecem, depois somem”. Eu disse: “Não, eu venho fazer um trabalho aqui”, – “Vem nada, isso é só conversa”, – “Não, eu venho trabalhar, eu moro aqui, pode me procurar”. E foi aí que eu fui fazer um trabalho nessa favela, eu agradeço aos céus, porque eu soube o que era morar numa favela. Eu não sabia. Foi um dos lugares onde eu mais aprendi, na marra, no dia a dia. Fiz um trabalho por seis anos lá, consegui construir um prédio, uma creche para 100 crianças em horário integral, de um a sete anos. As crianças chegavam, tomavam café, almoçavam, faziam lanche às quatro horas, saíam às seis, botei médico lá. Consegui coisas, assim, incríveis, entende, de botar luz, que não tinha, fazer encanamento de água, porque eu botava o pessoal da favela num ônibus, ia para a Light, estacionava na porta da Light, eu entrava para fazer as demandas, dizia: “Olha, tem 40 pessoas aqui e já disseram que, se não sair, eles vão invadir”.

NT: E quando é que começa a atividade importante que você passou a ter de solidariedade internacional?

ZFM: Pois é, no final de 1982 para 1983 começou uma certa abertura política, não era o morticínio que era, não podia falar muito, mas não havia o controle que tinha antes e começou a vir muito soviético para o Rio, para muitas coisas. Eu quero dizer a você que, desde 1975, eu participava de alguma forma do Instituto Brasil-União Soviética, cujo diretor era o Custódio Gomes. E, com isso, eu passei também a assessorar soviético, fazer coisas, enfim. Mas a União Soviética começava a ter problemas econômicos, então recorreu ao turismo, a partir daí foi perdendo o controle. Porque, até então, a gente tem que entender que a União Soviética respondeu pari passu a todos os avanços técnicos e científicos que houve nesse período, todos. Enquanto isso, o Reagan ameaçava não só com a guerra nuclear, a guerra fria no auge. Isso é outra coisa que ninguém imagina, porque o sangramento da economia soviética foi muito grande em função dos avanços tecnológicos da guerra nuclear. E nesse meio tempo o povo soviético passou a exigir mais do que exigia antes e o Ocidente, a criticar. Esse foi um período dificílimo, porque a União Soviética não podia deixar de fabricar armas nucleares, os Estados Unidos faziam uma bomba de não sei quantos megatons, dois, três meses depois, a União Soviética fazia uma com tantos e mais um pouquinho de megatons. A gente chamava isso de estabilidade do terror. Era o terror que se estabilizava atrás dessa concorrência. Os Estados Unidos foram fazer a guerra nuclear à custa dos trabalhadores e, assim, o capital vai se acumulando. Mas a União Soviética não tinha isso, não podia fazer isso. Tinha que dar tudo igual para todo mundo, porque não é uma brincadeira com um país de 300 milhões de habitantes, no meio do conflito.

NT: Certo. Então você começou nesse processo de solidariedade na luta pela paz, no Instituto Brasil-União Soviética.

ZFM: É, e no dia 11 de abril de 1983, a gente criou, na ABI, o Núcleo do CONDEPAZ, Conselho Brasileiro de Defesa da Paz. O Isnard Teixeira me deu a incumbência de procurar o Nélson Werneck Sodré por sua participação no Movimento pela Paz nos anos 60, e o presidente era o Niemeyer. A gente conseguiu criar em quase todos os estados núcleos do CONDEPAZ.

NT: E como é que você foi parar na Associação José Marti?

ZFM: O Jânio Quadros, em 1961, rompeu relações diplomáticas com Cuba. O meu passaporte, eu tenho esse passaporte, ele tem lá um carimbo desse tamanho: “Proibido ir para Cuba”. Eu podia ir a qualquer país do mundo, menos para Cuba. A primeira vez que eu fui para Cuba, eu fui porque estava na Europa e da Europa eu fui à Cuba e voltei. Em 1984, um grupo de artistas capitaneados pelo Chico Buarque entrou de forma ilegal em Cuba. Quando voltaram, Marieta Severo e uma nata de artistas foram todos presos, ficaram cinco dias aqui na Polícia Central, na Praça Mauá, presos, para dizer se eles tinham ido treinar luta armada. A gente já tinha criado o CONDEPAZ e, em setembro de 1983, também foi lançado, na Câmara de Vereadores, o primeiro manifesto para a criação de uma entidade de solidariedade a Cuba. E eu participei disso, também. Eu fiquei no Conselho da Associação Cultural José Marti, embora o meu trabalho mais efetivo fosse no Movimento da Paz no Brasil, que cresceu tanto, ficou tão importante, que quando houve um grande encontro na Dinamarca, o CONDEPAZ recebeu um diploma da ONU, que está comigo, atribuindo ao CONDEPAZ o título de Mensageiro da Paz. No final do ano, foi eleita a primeira diretoria da Associação José Marti, o presidente era o Dias Gomes. Eu sempre fiquei no conselho. A Associação foi criada quase que exclusivamente para o reatamento das relações de Cuba com o Brasil, o que só aconteceu quando, no dia 10 de junho de 1986, o Sarney, pressionado, reatou relações diplomáticas com Cuba. A partir daí, a Associação José Marti incluiu o Cultural no nome, para fazer intercâmbio cultural com Cuba e trabalhou muito no sentido de levar artista a Cuba, trazer de Cuba, esse entrosamento que agora já é possível. Em 1992, acaba a União Soviética, e Cuba tinha 85% das relações comerciais com três países socialistas da Europa: União Soviética, Alemanha Oriental e Tchecoslováquia. Esses três países municiavam Cuba de grandes coisas: a União Soviética bancava petróleo, a Tchecoslováquia bancava máquinas, a Alemanha Oriental bancava várias coisas. Quando isso tudo desaparece, um país pequeno, não tem terra, não tem nada, não é brincadeira… E foi aí que, ainda em 1992, nós criamos aqui no Rio de Janeiro as Brigadas de Trabalho Voluntário, que eram duas por ano, para colher cítricos em janeiro e corte de cana em julho. Para o corte de cana ia basicamente o pessoal de sindicato, que tinha a mão calejada. A brigada de janeiro era para a coleta de cítricos, e até hoje é assim. Porque havia uma tradição desde 1961, quando Cuba fez o processo de alfabetização. O Henrique Miranda, companheiro nosso, foi para lá dar aula de graça, o mundo inteiro se mobilizou mandando pessoas para Cuba para ajudar na campanha de alfabetização. Tanto que Cuba, em um ano, venceu o analfabetismo, a UNESCO deu para Cuba um diploma desse tamanho dizendo: “o primeiro país das Américas livre do analfabetismo”. Quando veio o período especial em 1992, o Fidel baixou um decreto que, a partir daquele momento, todas as crianças de Cuba, até um ano de idade, recebiam um litro de leite de graça por dia, até hoje recebem.

NT: Você continuava no Partido, evidentemente, e quando é que você entra para o Comitê Central do Partido?

ZFM: Eu entrei para a direção estadual, em 1982, por insistência do Geraldão, porque eu nunca quis, eu não gosto de ter cargo, por incrível que pareça, ninguém acredita, mas eu não gosto de ter cargo, eu gosto de ficar solta para trabalhar, para fazer o que eu quero. E quando houve o VIII Congresso foi que eu entrei para o Comitê Central, em 1987.

NT: Após o processo do racha, primeiro o Horácio Macedo foi o primeiro dirigente do partido e depois, você. Quando é que você assumiu a direção do Partido, como é que foi a sua militância à frente do Partido?

ZFM: Aí foi outra coisa também contra a minha vontade, porque o Horácio renunciou. O Horácio tinha uma característica, o Horácio era um intelectual de peso, ele não tinha nenhum gosto por administração, ele não tinha como aguentar. Quando ele renunciou, como todo mundo conhecia o meu trabalho, o espaço que eu tenho na sociedade, enfim, essa coisa toda, aí disseram: “Então vamos botar a Zuleide”, e aí eles me consultaram. Mas eu impus a seguinte condição: “Olha, eu só aceito se todos os Estados brasileiros em que o Partido existe disserem que eu tenho de assumir a presidência”. E por incrível que possa parecer, foi até uma surpresa para mim, todos Estados apoiaram, dizendo que eu que tinha de ser presidente. Aí eu fiquei encurralada e aceitei. Fiquei nessa função de presidente do Partido até 2005, quando ocorreu o XIII Congresso. Depois o Ivan assumiu na condição de Secretário Geral na Conferência de Organização de 2008.

NT: Chegando ao fim dessa entrevista, queremos que você transmita aos leitores sua mensagem final.

ZFM: Ao final dessa entrevista, eu queria reafirmar que continuo acreditando mais do que nunca que a ideologia e as propostas do marxismo e do leninismo são as únicas que poderão salvar a humanidade nesse século que prometeu ser o século das luzes e está sendo o século da escravidão. E dizer o seguinte: nós precisamos entender adequadamente a força do grande capital e que o capitalismo é destruidor pela sua natureza. Ele tem de destruir o que ele construiu para poder jogar um produto novo no mercado e ter novos adeptos. Nunca os meios de comunicação no mundo estiveram tão a serviço dos desejos do grande capital. Porque hoje, por exemplo, você tem O Globo, que era um jornal de uma família, mas hoje os jornais, as revistas, as televisões não estão mais agregados às famílias, às pessoas, estão agregados às grandes empresas, são hoje os grandes meios de comunicação, representando os grandes empreendimentos capitalistas que se desenvolvem no mundo. Esta é uma mudança de qualidade. Os Estados Unidos ampliam seu domínio sobre o planeta não só através das guerras, mas através de todas as formas de representação. O dólar é a moeda de conversão internacional, 85% de todas as relações comerciais do mundo são feitas em dólar. Os Estados Unidos hoje têm armas suficientes para destruir o planeta. Por outro lado, eu acho que a gente está vivendo um período talvez dos mais difíceis da humanidade, porque hoje o mercado está introjetado nas veias, em todo mundo, as Casas Bahia fazem o que querem, eu estou dando o exemplo das Casas Bahia, como eu dou da Coca-Cola. A minha faxineira, que mora numa favela, tem três cartões de crédito, que ela usa para comprar todas as quinquilharias que ela quer. Agora deu que 50% da juventude brasileira é praticamente analfabeta. Como é que você faz com um país de 200 milhões de habitantes, em que 50 milhões são analfabetos? Então eu creio que a gente está precisando fazer, no Partido, inclusive, discussões mais de fundo sobre o mundo capitalista de hoje, até para a gente mesmo conseguir avançar nesse processo e saber de que forma podemos intervir neste mundo.