Edmilson Carvalho, arquiteto de formação, trabalhou sempre em planejamento econômico, área em que se especializou na CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina). Teve destacada atuação na SUDENE, em Recife (1962 a 1973) e na Secretaria de Planejamento da Bahia. Professor de Economia Política e Teoria Política.
Há cerca de 20 anos participa da Oposição Operária (Opop), grupo que edita a revista Germinal. Nesse artigo, discorre sobre a essência e sua apropriação pelo intelecto.
O conceito é a chave da descoberta da essência que reside no ser e que o preside, mas que está envolta pela esfera do fenomênico. Uma totalidade contém o que aparece, o imediatamente captado pela percepção, e o seu oposto, que não aparece, a sua essência, só pode ser captada por meio do pensamento abstrato.
A essência não é algo estranho ao fenômeno, mas parte dele, a mais fundamental, a mais remota, a mais íntima e a mais profunda, a que corresponde à sua lei. O pensamento dialético leva em consideração a aparência e a essência do objeto, apenas colocando o problema da passagem da primeira à segunda instância, o que constitui uma ultrapassagem que só pode ser lograda pelo uso das categorias e dos conceitos — numa palavra, pelo método dialético. A partir de tudo o que foi afirmado até aqui, surge a pergunta inevitável: por que a essência não é imediatamente apropriada pelo intelecto? A questão é assim colocada pelo filósofo Karel Kosik (1976, p. 12):
O fenômeno não é, portanto, outra coisa senão aquilo que – diferente-mente da essência oculta – se manifesta diretamente, primeiro e com maior freqüência. Mas por que a ‘coisa em si’, a estrutura da coisa, não se manifesta imediata e diretamente? Por que são necessários um esforço e um desvio para compreendê-la? Por que a ‘coisa em si’ se oculta, foge à percepção imediata? De que ocultação se trata?
O mesmo Kosik tenta dar uma resposta a essa questão, especialmente em duas passagens da mesma obra. Numa primeira, ele afirma que
o impulso espontâneo da práxis e do pensamento para isolar os fenômenos, para cindir a realidade no que é essencial e no que é se-cundário, vem sempre acompanhado de uma igualmente espontânea percepção do todo, na qual e da qual são isolados alguns aspectos L..1 (KOSIK, 1976, p. 15).
Ou seja, a percepção apanha a totalidade do fato — fenômeno e essência –, mas não pode, por si só, evitar a cisão da realidade que ela mesma apreende; a própria percepção que, com o concurso da práxis, cinde e isola a essência do fenômeno, deixa de reconhecer a essência que ela mesma capta, que carrega embutida em si, mas que, isolada, está e permanece, contraditoriamente, oculta a si mesma. Numa outra passagem, ele completa sua explicação:
Os fenômenos e as formas fenomênicas das coisas se reproduzem espontaneamente no pensamento comum como realidade (a realidade mesma) não porque sejam os mais superficiais e mais próximos do conhecimento sensorial, mas porque o aspecto fenomênico da coisa é produto natural da práxis cotidiana (KOSIK, 1976, p. 15)
As afirmações de Kosik podem ser analisadas por mais de um ângulo. Um deles é o seguinte: não é porque as formas fenomênicas das coisas sejam as mais superficiais e as mais próximas do conhecimento sensorial que elas se reproduzem espontaneamente no pensamento comum como a realidade mesma. De fato, ainda que o conhecimento sensorial e perceptível se coloque de frente aos fenômenos — portanto próximo deles — e que esses mesmos fenômenos, como já foi visto, já estejam coetânea e ontológica-mente juntos e ligados às suas respectivas essências — portanto essas essências também próximas das sensações –, as sensações e as percepções não podem, como tais, passar do fenomênico, ultrapassá-lo e desvendar a esfera do essencial. Já aqui existe uma complicação: se as formas fenomênicas, que se reproduzem no pensamento comum, já contêm, enquanto totalidades, as suas essências, por que as formas essenciais também não se reproduzem no pensamento comum simultaneamente?
A gnosiologia presente nos Cadernos filosóficos de Lenin não deixa dúvidas a esse respeito: na produção do conhecimento científico, como na produção de qualquer conhecimento, a mediação da sensação e da percepção nunca poderá ser abolida; como também não existe hipótese alguma na qual a apreensão sensorial — obtida sempre ligada à percepção, como já foi visto mais atrás — possa captar as formas essenciais diretamente. Para captar as formas essenciais, as mais profundas, embora também próximas, o conhecimento sensorial não basta, e é a partir daí que se faz necessário o conhecimento categorial.
Entrementes, das afirmações adicionais feitas por Kosik pode-se concluir comodamente que o fracionamento perceptivo do real na cabeça do homem na esfera do cotidiano é um resultado normal de uma práxis que já realiza nesse mesmo cotidiano, em si e para si, tal fracionamento. O homem alcança a espontânea percepção do todo; porém, desse todo, que contém dentro de si a essência e o fenomênico, o homem só capta, de imediato, o fenomênico, e a essência, que está ali embutida, não lhe aparece de imediato — cisão que é, para Kosik, produto da práxis cotidiana. É necessário aduzir que existe algo mais do que a práxis cotidiana no rol de causas da impossibilidade da apreensão direta das formas essenciais das coisas pelo intelecto humano.
De fato, Kosik (1976, p. 15) começa por afirmar que
o aspecto fenomênico da coisa é produto natural da práxis cotidiana [… e que] o pensamento comum é a forma ideológica do ser humano de todos os dias.
Mas antes já tinha afirmado que o elemento subordinado, o pensamento, e o elemento determinante, o impulso espontâneo da práxis,
tinham a faculdade de isolar os fenômenos [… e] cindir a realidade no que é essencial e no que é secundário […] (KOSIK, 1976, p. 15).
Para Kosik, portanto, a cisão da coisa na consciência, de um lado em fenomênico diretamente apropriável e, de outro, em conceito que contém a essência inalcançável imediata e diretamente, resulta de uma práxis limitada — a práxis social cotidiana.
Disso pode ser deduzido — embora Kosik não o tenha afirmado explicitamente — que, se fosse possível realizar uma práxis capaz de abarcar a coisa simultaneamente em todos os seus aspectos e em todas as suas dimensões, ter-se-ia uma compreensão igualmente totalizante da coisa; ter-se-ia, pois, não só sensações e percepções, mas sensações, percepções e conceitos, unificados imediatamente, captados ou captáveis, em face da apreensão do todo em todas as suas dimensões — resumida e fundamentalmente em essência e fenômeno — e de um só golpe.
Queremos insistir em que a afirmação de Kosik induz a pensar que uma abordagem prática simultaneamente totalizante, na hipótese de tal abordagem ser possível (e tal abordagem só seria possível numa sociabilidade completamente desfetichizada, vale dizer, numa sociedade e, portanto, numa sociabilidade comunista), fundiria e exibiria a sensação, a percepção e o conceito numa só coisa e num só ato sensitivo-perceptivo-intelectivo, do que resultaria que o pensamento passaria a ser um pensamento imediatamente científico; ou, dito de outra forma, que a filosofia, a lógica e a ciência deixariam de constituir um processo de descoberta e elaboração específica e sistemática para ser atividade humana normal.
A afirmação de Kosik, no sentido que estamos ressaltando aqui, fica mais evidenciada ainda quando se conhecimento de que o que ele denomina de prática cotidiana, ambiente cotidiano, atmosfera comum da vida humana ou, como é de sua preferência denominar, mundo da pseudoconcreticidade, nada mais é do que o mundo do tráfico e da manipulação, isto é, da práxis fetichizada dos homens, numa palavra, o mundo capitalista. É o que ele manifestamente afirma:
A práxis de que se trata neste contexto é historicamente determinada e unilateral, é a práxis fragmentária dos indivíduos, baseada na divisão do trabalho, na divisão da sociedade em classes e na hierarquia de posições sociais que sobre elas se ergue. (KOSIK, 1976, p. 10).
De onde se deduz que, uma vez superado esse mundo — o mundo da pseudoconcreticidade, o mundo do cotidiano, o mundo cuja práxis e cujo pensamento cindem o real em aparência e essência –, numa palavra, inaugurada uma sociedade comunista (ausência de todas as dimensões fetichizadas), que implicaria, por definição, uma outra práxis, ter-se-ia, com e nessa nova práxis, a não-cisão da coisa em si em aparência e essência. Portanto, a concepção de Kosik localiza os problemas do pensamento e da produção do conhecimento na práxis que abarca as determinações sociais da divisão do trabalho, das classes sociais e da hierarquia social daí resultante.
De fato, do ponto de vista de Lenin as coisas não acontecem da maneira como pensa Kosik. Porque, segundo Lenin, mesmo quando for possível abarcar simultaneamente, pela práxis, uma realidade concreta em todos os seus aspectos, ângulos e dimensões e, ainda mais, mesmo quando os homens puderem viver numa sociedade sem a atual divisão do trabalho, sem as classes sociais, sem resíduos de todas as modalidades do fetiche e sem as ideologias, ainda assim o pensamento continuará a ter de realizar um détour — e não ir diretamente — para passar da aparência à essência. Não é que Lenin não atribua importância a esses aspectos sociais — divisão do trabalho, etc. — como barreiras que se antepõem à produção científica do conhecimento; para ele, não obstante residir, nesses fatores, grande responsabilidade na obnubilação da visibilidade gnosiológica dos fatos sociais, não se pode deixar de fora considerações de ordem filosófica que também têm importância decisiva na ultrapassagem lógica e gnosiológica do fenomênico à essência. De maneira que estamos aí diante de uma divergência de or-dem gnosiológica que não é uma divergência qualquer e que precisa, por isso mesmo, ser levada em consideração.
Examinemos o problema, em primeiro plano, pelo ângulo da ideologia que decerto constitui uma ação prática e social a qual implica uma relação dialética entre uma classe dominante que emite e outra(s), dominada(s), que intemaliza(m) as formas ideológicas. Sem que vejamos essa relação como um trânsito de via única e isento de tensões e mediações muito complexas, o eixo da questão prática e social da fonte e propagação das ideologias reside aqui:
As ideias da classe dominante são as idéias dominantes em cada época; ou, dito em outros termos, a classe que exerce o poder material dominante na sociedade é, ao mesmo tempo, a que exerce seu poder espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios para a produção material dispõe com eles, ao mesmo tempo, dos meios para a produção espiritual. O que faz com que se lhe submetam, ao mesmo tempo, por termo médio, as idéias dos que carecem dos meios necessários para produzir espiritualmente. As idéias dominantes não são outra coisa que a expressão ideal das relações materiais dominantes, as mesmas relações materiais dominantes concebidas como idéias; portanto, as relações que fazem de uma determinada classe a classe dominante são também as que conferem o papel dominante a suas ideias. (MARX; ENGELS, 1970, p. 50-51)
Para que as ideologias possam cumprir seu papel de formas ideais e espirituais de dominação de classe, é necessário que elas reiterem a cisão do real em fenômeno de um lado e essência de outro, um imediatamente captável, outro, não. Essa cisão, assim posta, também contribui para uma visão invertida dos fatos e das relações sociais, de maneira que sobretudo as classes dominadas ficam impedidas de tomar consciência de sua situação no sistema de poder da sociedade. Daí porque nesse âmbito, à medida que, com o desaparecimento das classes sociais, durante todo um período de transição adrede dirigido todas as determinações ideológicas sejam finalmente eliminadas, todos os bloqueios ideológicos à visibilidade da essência das coisas terão sido igualmente eliminados e os homens terão rompido com uma das maiores barreiras que os separa de uma visão científica do mundo social.
Já por este ângulo, todos os homens terão as mesmas possibilidades de acesso a uma inteligência científica das totalidades, que hoje lhes são negadas pela sociabilidade capitalista — vale dizer, todos os homens terão disponíveis os mesmos meios e as mesmas possibilidades de alcance intelectivo, na sua práxis social, do essencial que as mais diversas modalidades de totalidades comportam.
Contudo, o imbróglio ideológico é apenas um dos bloqueios sociais que dificultam o acesso às essências das mais diversas modalidades de totalidades na sociabilidade da ordem social do capital. Uma vez quebrado esse bloqueio, grande passo terá sido dado para que qualquer homem possa pensar como um cientista — o que não quer dizer que numa sociedade sem classes todos os homens se tornem de fato cientistas, posto que entre dispor de todos os meios e tornar-se cientista existe ainda certa diferença. Mas, de todo modo, os homens médios de uma sociedade sem classes pensarão muito próximos do que se entende por pensamento científico numa sociedade de classes como a atual, porque os meios para pensar com método, levando o homem social médio a elevar o nível e a qualidade de seu pensamento, serão facultados por uma educação normalmente proporcionada a todos.
De certa forma, é isso o que se passa no terreno da arte:
[…] numa organização comunista da sociedade desaparece a inclusão do artista à limitação local e nacional, que corresponde pura e unicamente à divisão do trabalho, e a inclusão do individuo nesta determinada arte, de tal modo que só haja exclusivamente pintores, escultores, etc., e o nome mes-mo expressa com bastante eloqüência a limitação de seu desenvolvimento profissional e sua dependência à divisão do trabalho. Numa sociedade co-munista não haverá pintores, senão, em suma, homens que, entre outras coisas, se ocupam também em pintar. (MARX; ENGELS, 1970, p. 470).
Também aqui, no terreno da arte, da mesma forma que no da ciência, a todos os homens serão dados os mesmos meios para que possam produzir pintura, música, literatura, teatro, etc. O que Engels diz aí é que numa sociedade comunista os homens não serão exclusivamente pintores, escultores, etc., mas homens que, libertados das amarras da divisão burguesa do trabalho, terão plenas faculdades e meios para pintar, esculpir, compor, etc. Mas Engels não vê nisso qualquer impedimento para que um ou outro indivíduo possa desenvolver um grande talento ao pintar, esculpir, compor, etc. – numa palavra, para que um ou outro indivíduo possa tornar-se um grande artista. Fica aberta a seguinte possibilidade: todos os indivíduos, por se terem libertado da ideologia e da divisão social burguesa do trabalho e por receberem da sociedade os mesmos meios de criação e expressão artística, poderão fazer também arte, e, entre esses, haverá alguns (certamente muitos) que, motivados por paixões e tensões subjetivas pessoais (e por que não?), poderão tomar-se excepcionais artistas, decerto mais livres e maiores do que os artistas das diversas sociedades de classe, o que, a bem da verdade, não constituirá problema ou perigo algum para uma sociedade igualitária – muito pelo contrário.
A sociedade comunista liberará todos os homens de todas as travas que os tomam socialmente desiguais, mas não tornará todos os homens iguais, ainda que num grau superior, como novos produtos sociais estandardizados. Todos os homens atingirão um grau máximo de talento e, desta maneira, todos se elevarão na mesma medida em que multiplicarão a variedade de expressões individuais; de onde se depreende que, uma vez rompida a divisão social do trabalho, os homens poderão fazer arte em iguais condições sociais, mas esse grau de libertação, que é da maior importância, não basta para fazer de qualquer individuo um artista de gênio e muito menos para fazer de todos os indivíduos artistas geniais. O processo é o mesmo para a esfera da produção científica. Mas se, por um lado, todos os homens estarão livres para pensar com método cientifico, alguns deles podendo produzir obras de profundo alcance científico, por outro lado o imbróglio do acesso ao pensamento superior (o que se situa na busca da essência para a apreensão das totalidades) não terá sido anulado só com o fim das ideologias.
Esta questão suscita uma outra, também fundamental: durante a transição socialista, as ideologias herdadas da sociabilidade burguesa não desaparecerão simplesmente com a ruptura das estruturas sociais (relação-capital, divisão do trabalho, a própria mercadoria, a troca mercantil, etc.). A superação de tais heranças da sociedade burguesa exige métodos próprios e especificamente adequados. Com efeito, a esfera ideológica, ainda que tenha origem, em última instância, como sempre afirmaram Marx e Engels, nas determinações de classes da sociedade, possuem uma esfera elástica de autonomia relativa que, por isso mesmo, exigem métodos próprios de superação.
As transfor-mações estruturais, que constituirão a base da sociedade durante a transição, facilitarão, como premissas básicas, a superação dos traços ideológicos e culturais e evitarão, no futuro, que essas formações ideológicas voltem a aparecer, mas não garantirão o desaparecimento automático das velhas formas ideológicas e culturais. E mais: sua erradicação, durante a fase de transição socialista, jamais será lograda por uma educação de massas levada a efeito por manuais, livrinhos vermelhos e outras formas simplistas e caricatas de educação que não ensinam os homens a pensar, mas apenas a reproduzir absurdas reduções, estereótipos, slogans e todo tipo de lugar-comum — um senso comum no lugar de outro senso comum.
A questão do fetiche, quer se trate do fetiche da mercadoria e do dinheiro, quer se trate de todas as demais formas de fetiche que perpassam a produção capitalista como um todo, está totalmente ligada à divisão social do trabalho no quadro das relações sociais de produção capitalistas. Uma vez desfeita a propriedade privada dos meios de produção e supressas todas as restantes relações e formas que, para além da propriedade (a troca e a circulação mercantil, a hierarquia imutável nas unidades de produção, a irrevogabilidade dos cargos, etc.), recorrem à sobrevivência do capital, as (novas) relações sociais de produção tomar-se-ão absolutamente visíveis e o fetiche, coisa do passado. Deve ser notado que os efeitos dissimuladores do fetiche como, por exemplo, o da mercadoria, constituem formas de falsa consciência, mas, por serem formas estruturais, diferem das formas ideológicas. O desaparecimento das relações sociais fetichizadas também elevará o conjunto de possibilidades do homem médio a alcançar o nível do pensamento científico; mas, como tentaremos mostrar mais adiante, isso também não é tudo.
Posto isto, passemos agora à divisão do trabalho. Mesmo numa sociedade socialista moderna, ou mesmo numa sociedade comunista, os trabalhadores diretos já não poderiam mais recorrer a um processo produtivo, como era o artesanal, pelo qual pudessem, no e pelo ato da produção, dominar o conhecimento e o manejo de todos os componentes e todas as operações parcelares dos valores de uso produzidos. Como poderia um trabalhador que operasse na produção e construção de automóveis, aviões, máquinas complexas, hidrelétricas, etc., conhecer e dominar todos os componentes e todas as operações parcelares presentes na produção de tais produtos?
Como poderia um trabalhador conhecer e produzir, por exemplo, as mais de 20 mil peças componentes e outras tantas operações parcelares inscritas na produção de um automóvel? Impossível, ate porque a produção socialista não devera negar, mas levar adiante, os avancos positivos — tecnológicos, científicos, etc. — herdados da produção capitalista. Nestes termos, nenhum trabalhador poderia alcançar, pela pratica direta do trabalho, como quer Kosik (1976), todos os aspectos de um dado produto, ou seja, a inteireza da totalidade de aspectos, componentes e relações desse produto e, portanto, de sua produção.
A universalidade perdida pelo trabalhador (ex-artesao) durante a produção capitalista, que lhe retribuiu com a sua alienação, seria resgatada num outro plano, no da concepção do produto — no caso em questão, do valor de uso produzido. A compreensão da totalidade do produto, que era dada ao artesão pelo trabalho direto em toda a linha de produção daquele, seria agora reapropriada, não pela já impossível atuação direta do tra-balhador socialista ou comunista em todas as operações parcelares de um produto complexo, mas pelo rodizio na linha de produção, portanto, na faculdade de operar sobre uma gama muito major e livre de posições numa linha de produção de um valor de uso qualquer e, antes e acima de tudo, pela participação e compreensão coletiva na concepção do produto e do processo de produção do produto — sua finalidade social, sua estrutura essencial, o curso transformativo que ele devera ter durante seu processo de produção.
Sendo tudo isso uma inevitável exigência do avanço tecnológico e social da produção socialista, ninguém sozinho poderia, como sugere Kosik (1976), ter acesso imediato, pela práxis do trabalho, a todos os aspectos de um dado produto (valor de uso) complexo. A superação da alienação do trabalho na produção comunista seria dada, em parte, pelo rodizio do produtor direto em vários estágios da divisão e do processo de trabalho e completada na sua participação na concepção não só de cada produto, aqui apenas valor de uso, como também, e principalmente, do próprio processo de trabalho.
A questão deve agora ser posta nos seguintes termos: a divisão do trabalho comunista, que implicaria a superação da alienação com o rodizio de trabalhadores no processo de trabalho e produção, acompanhado da formulação e da concepção do produto e do próprio processo de trabalho, bastaria para eliminar a cisão de todos os aspectos do real em fenômeno e essência?
Não resta dúvida de que a superação da divisão capitalista do trabalho, nos termos mais atrás colocados, devolveria o pleno domínio do conhecimento do produto e de seu processo de produção a seus produtores diretos; todavia, a questão gnosiológica não se esgota na pura, exclusiva e imediata esfera da produção dos produtos (valores de uso) socialmente necessários.
É evidente que, com a eliminação daqueles traços característicos do mundo social do capital, o processo de produção científica do conhecimento ficaria imensamente facilitado e acessível praticamente a todos, mas jamais poderia acontecer naturalmente. O máximo que uma abordagem simultaneamente totalizante de uma realidade dada ou isenta dos referidos bloqueios sociais e ideológicos poderia proporcionar ao intelecto seria uma quantidade maior de aspectos constitutivos da referida realidade/totalidade e/ou a abordagem dessa realidade/totalidade sem as interdições estruturais e ideológicas, que desta forma, sim, facilitaria, mas nunca conduziria naturalmente à produção da síntese conceituai que é própria do trabalho da consciência. Isto equivale a dizer, na linha de pensamento acrescentada por Lenin, que ainda teríamos um problema de ordem filosófica a resolver: o problema gnosiológico. Na mesma ordem de raciocínio, pode-se afirmar que a eficácia da apreensão conceitual de um objeto aumenta com a abordagem prática e perceptiva do maior número de aspectos, momentos, relações e determinações de uma realidade/totalidade; contudo, esse aumento de possibilidades não culmina, por si só – e, forçosamente, como mera quantidade disponível –, numa produção que é uma ruptura qualitativa do produto conceitual. Esse é sempre, como ressaltou Lenin, um trabalho (filosófico) de abstração — e
é preciso que a abstração não seja considerada apenas como um produto da divisão do trabalho, mas como instrumento do conhecimento (LEFEBVRE, 1969, p. 119).
A transformação mais revolucionária é a que proporcionará uma abordagem mais completa do objeto a ser transformado, mas se trata de uma transformação que jamais dispensará o empreendimento teórico sistemático e correspondente. Seria uma ingenuidade pueril pensar que uma sociabilidade desfetichizada pudesse anular a diferença entre fenômeno e essência, sensação e conceito e que, consequentemente, pudéssemos aposentar de vez a ciência porque a verdade científica seria direta e integralmente apanhada por cada pessoa, bastando-lhe, para isso, que participasse de uma práxis realizada no interior de relações sociais não mais fetichizadas.
O busílis da questão pode ser finalmente enunciado: numa sociedade desfetichizada e sem divisão alienante do trabalho, homens e mulheres poderão, no âmbito do processo e da divisão do trabalho social, ver e tocar os objetos (valores de uso) e fatos sociais por todos os ângulos possíveis, mas só os alcançarão por meio das sensações e percepções. A partir daí, ficará muitíssimo mais próxima a formação de conceitos, mas os conceitos e as categorias científicas nunca serão produzidos direta e imediatamente, vez que as sensações e as percepções, trilha gnosiológica indispensável, não são conceitos.’ Isso quer dizer que o trabalho intelectual que os transforma em conceitos não será desnecessário, embora facilitado e posto ao alcance do indivíduo médio. O trabalho científico de elaboração de conceitos e categorias científicas seguirá sendo necessário, ainda que socialmente disponível a todos. O homem social médio terá eliminado todos os bloqueios sociais ao trabalho científico, mas terá de enfrentar o último bloqueio — o gnosiológico, que resulta da recorrência inarredável de começar pela apreensão sensorial e perceptiva das coisas e dos fatos. Esta conclusão é diretamente deduzida da gnosiologia leninista dos Cadernos filosóficos e merece apenas alguns desdobramentos a mais. Conceitos e categorias não são apanhados diretamente do meio natural e social no âmbito da práxis social, pelo simples motivo de que são produtos de uma produção intelectual feita obrigatoriamente a partir do material sensitivo e perceptivo captado das coisas, das relações, dos fatos e dos processos sociais no âmbito da mesma práxis social.
Quando o analista possui grande domínio dos conceitos e das categorias científicas, a distância entre a apropriação sensorial da coisa e o trabalho intelectual dos conceitos e das categorias pode tornar-se tão pequena que tudo se passa como se esses conceitos e essas categorias — o trabalho teórico — substituíssem o fluxo das sensações — também elas fenomênicas — e a essência da coisa estivesse sendo apropriada direta e automaticamente; é como se tal analista pensasse teoricamente a coisa já a partir do imediato contato prático com ela ou como, o que dá na mesma, se os conceitos e as categorias substituíssem a apropriação sensorial. Por maior que seja o domínio das categorias científicas pelo analista, ou seja, por mínima que seja a distância entre a apropriação sensorial e a apropriação conceitual da coisa, esses dois momentos nunca serão fundidos num só ato, vale dizer, nunca o ato intelectivo da coisa substituirá a mediação da apropriação sensorial da coisa. Tampouco o fato, aqui já analisado, de que a prática do trabalho e da ciência já definem a seleção dos aspectos mais relevantes para a apreensão mais completa do conhecimento dos fatos naturais e sociais elimina a distinção entre sensação e percepção e entre essas faculdades e o conceito — ou seja, essa potencialização do conhecimento não dispensa o détour assinalado por Lenin.
Por mais que o homem domine as categorias do pensamento científico, por mais que ele, ao captar os fenômenos, tenha tais categorias à sua disposição no seu cérebro, ele, a despeito de poder processar muito rapidamente o conhecimento científico, não pode captar as formas essenciais, no plano da percepção, da sensação, por meio de ideias cientificamente elaboradas. O homem colhe sensações, não conceitos e categorias, dos fatos sociais imediatos. O que há de novo é que numa sociedade desfetichizada a possibilidade de produzir conhecimento científico será uma possibilidade social dada a todos, e que, num ambiente assim liberado de todos os bloqueios à plena realização humana dos indivíduos, produzir conhecimento científico passa a ser tão comum como ter de preparar alimentos ou fazer exercícios físicos para a reprodução dos indivíduos livres.
Tudo isso só vem mostrar como os pensadores do século XX, inclusive marxistas, não deram ainda a devida atenção à riqueza e à densidade científica dos Cadernos filosóficos de Lenin, um colossal aprofundamento de aspectos essenciais da gnosiologia pressuposta, mas não desenvolvida, por Marx e Engels (LEFEBVRE, 1969, p. 111-126).