Reproduzimos artigo de Manuel Gusmão, professor da Faculdade de Letras de Lisboa e membro do Comitê Central do Partido Comunista Português, publicado no JL nº 1120, 4 a 17 de setembro últimos, acerca de Álvaro Cunhal, “seguramente o grande estratega teórico da revolução democrática e nacional”.
Para o autor, “o conjunto de textos fundamentais dos anos 60 (Rumo à vitória; Relatório da actividade do CC ao VI Congresso, bem como o próprio Programa de 1965) são documentos sem os quais muito dificilmente se compreenderia o fluxo e o refluxo da Revolução portuguesa. Álvaro Cunhal aprende com a sua vida a capacidade criadora das massas populares em movimento. Ela constitui o traço mais forte da revolução portuguesa. Nela reside, no fundamental, o combate do presente e a convicta esperança em que os trabalhadores e o povo voltarão a tomar o futuro nas suas mãos”.
Álvaro Cunhal parece partilhar a condição normal (burguesa) do líder partidário português, no início da 2ª metade do ‘século XX”: filho de advogado e, ele próprio, advogado (Cf. Mário Soares, Salgado Zenha, Francisco Sá-Carneiro, Freitas do Amaral). Entretanto, esta “normalidade’’ é fortemente enganadora e só a menciono porque, ao verificar-se o seu carácter deceptivo, fica o caminho aberto para pensar a necessidade da sua singularização. A singularidade espreita-o na circunstância simbólica do seu exame de licenciatura, em que defenderá a sua tese sobre o fenómeno do aborto, ter obrigado a que o candidato tivesse que ser transportado da prisão, sob escolta policial.
Outra forma de simbolizar o jogo com o estranhamento produzido contra a destinação burguesa exprimir-se-ia nas declarações feitas perante o tribunal fascista que pretendia julgá-lo. Na sessão de 9 de Maio de 1950, Álvaro Cunhal apresenta-se assumindo uma decisão de adopção pela outra classe, que substitui a filiação biológica: “No que me diz pessoalmente respeito, também alguma coisa fica provado; que como membro do PCP, como filho adoptivo do proletariado, cumpri os meus deveres para com o meu partido e o meu povo. É isto que interessa que fique provado, porque é só ante o meu partido e o meu povo que respondo pelos meus actos.”
Curiosamente, a adopção surge como decisão da própria classe outra, que com apenas conta a cumplicidade e a intensa dedicação do sujeito. Álvaro Cunhal pensa Portugal, o que para ele significa estudar o país, inclusivamente na sua historicidade presente (por ex., na Contribuição para o estudo da questão agrária) ou na sua história passada (As Lutas de classes em Portugal nos fins da Idade Média). Nas circunstâncias em que pensou o país, a grande pergunta que lhe interessava colocar e à qual lhe era vital responder, era a pergunta sobre o caminho do derrubamento do fascismo. E, conexa com ela, a questão de saber quais as condições de possibilidade dessa fase/etapa revolucionária vir a integrar-nos no processo mais longo e profundo, mais complexo, da revolução socialista.
A grande resposta será encontrada no programa do Partido, aprovado pelo VI Congresso do PCP, realizado em 1965. Para uma clara determinação do conceito que a exprime – o de revolução democrática e nacional – convirá ter em boa conta a consistência e a minúcia das análises da situação concreta de Portugal, assim como as brilhantes formulações de síntese, realizadas no Rumo à Vitória (as tarefas do Partido na revolução democrática e nacional), apresentado à reunião do comité central de Abril de 1964; o Relatório da Actividade do Comité Central, redigido cerca de ano e meio depois do Rumo á Vitória e que será apresentado ao VI Congresso, realizado em Setembro de 1965, que aprovará o Programa do partido, que ficará, na História de Portugal e da Europa, como o Programa da Revolução Democrática e Nacional e Nacional.
Um exemplo de uma dessas sínteses que guardam a capacidade de não imobilizarem o movimento ou a dinâmica que trabalha toda a formação social concreta, é aquela a que procede no relatório da actividade do CC ao VI Congresso, – e a que podemos chamar a identificação de um país, ou um retrato em movimento:
“Portugal apresenta as características «originais» de ser um país dominado pelo imperialismo estrangeiro e ser um país colonialista, de ser um país atrasado, miserável, «subdesenvolvido» e um país onde as relações capitalistas de produção estão altamente desenvolvidas, inclusivamente nos campos; de ser um país com uma indústria débil e uma agricultura primitiva e onde entretanto o proletariado (industrial e rural no seu conjunto) tem um peso numérico não inferior ao verificado em países industrializados e onde é muito elevado o grau de concentração do capital, um país onde existe há 39 anos uma ditadura fascista com um aparelho de Estado forte, sólido e bem organizado, que procura abafar pelo terror as mais ligeiras reclamações e protestos populares, e um país onde o movimento popular antifascista é tão amplo e tão profundo que aparece insistentemente á luz do dia em lutas económicas e políticas; um país onde é prosseguida uma política obscurantista, onde há quase 40 por cento de analfabetos, onde se persegue a arte a cultura, e um país onde, vencendo as barreiras fascistas floresce um importante movimento literário e artístico de conteúdo democrático, um país onde praticamente todo o peso da repressão tomba sobre os comunistas e onde entretanto o partido comunista é o único partido digno desse nome.”
O que há-de notável nesta síntese não é apenas o grau de rigor na transposição de um pensamento, mas também o modo como se pode descrever essa sua capacidade de rigor como o encontro entre um corpus, cognitivo e teórico (os princípios e os adquiridos do que designamos como marxismo-leninismo) e um objecto de conhecimento que a análise começou por despojar criticamente de todas as ilusões, para o encontrar sob a forma nua de um feixe de contradições. Mas, para além disso, este parágrafo fornece-nos uma chave para a compreensão de situações diferenciadas segundo o modo como se move, no tempo, uma qualquer série determinada de contradições. Álvaro Cunhal revela plena consciência do carácter metodológico da operação realizada no parágrafo:
“Não partimos de um esquema tomado em compêndios, forçando depois os factos a adaptarem-se a ele. Partimos do estudo da realidade e como esta é sempre mais rica que os esquemas, os amadores de fórmulas ficam surpreendidos. Parece a alguns que o nosso partido mostra demasiada originalidade ao definir a actual etapa como uma revolução democrática e nacional e ao fundir, numa mesma etapa, objectivos duma revolução, nacional-libertadora com profundas reformas sociais /…/ O facto é porém que a originalidade não é do nosso Partido, mas da própria realidade portuguesa”.
Este parágrafo opõe-se, criticando-o, ao slogan salazarista que amarrava o país a uma espécie de destino ou de vocação – “a pobreza natural do país”. Assim, esse é mesmo o 4º ponto a esclarecer na sua intervenção perante o tribunal fascista em 2 de Maio de 1950 e será o movimento de abertura em Rumo à Vitória, e na Contribuição para o estudo da questão Agrária.
Álvaro Cunhal é seguramente o grande estratega teórico da revolução democrática e nacional. E esta série de documentos, bem como o próprio programa de 1965, são documentos sem os quais muito dificilmente se compreenderia o fluxo e o refluxo da Revolução portuguesa, para além do som e da fúria que pareceria ser o seu exclusivo modo de existência.
Estratega e dirigente estudioso, convém abrir uma pausa para vos pôr de sobreaviso sobre o problema complicado da distribuição e partilha da função autor deste mar de textos:
a) Álvaro Cunhal escreveu ensaios de história do presente. Podeis começar por ler A Revolução Portuguesa o passado e o futuro. Escreveu pequenas análises de conjuntura que são maneiras de entender o que Lénine pensava com a sua análise concreta de uma situação concreta;
b) Escreveu ensaios teóricos sobre tópicos que a tradição marxista-leninista consagrou, e que ele se dedicou a vivificar, reelaborando-os sobre problemática portuguesa (A Questão do Estado – questão central de cada revolução; e O radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista).
c) Produziu textos sobre problemas de organização do Partido, de estilo de trabalho e da sua segurança (O desvio de direita nos anos 1956-1959; A Tendência anarco-liberal no trabalho de direcção; Se fores preso, camarada; O Partido com paredes de vidro).
Entretanto, Álvaro Cunhal é um humano multifacetado e que se interessa intensa e apaixonadamente por outras esferas e experiências da existência e do pensamento humanos. É animado por essa paixão inteligente que ele escreve narrativas, romances e novelas, diferentíssimas entre si, e traduz um dos grandes textos de teatro de Shakespeare.
E, por outro lado, essa paixão inteligente, como poderia mantê-la da reflexão sobre estética e sobre a política? Sabemos como já em Platão a questão surge, designadamente no diálogo sobre A República.
E permitam que vos chame a atenção para o facto de haver hoje textos de Cunhal que são lidos como se fossem de uma fonte anónima ou textos de escrita colectiva. Não deixa de ser curioso que isso aconteça com textos literários e que nós supomos terem sido escritos na solidão mais funda de uma célula. Por exemplo, em Até Amanhã Camaradas: a voz épica que narra – para nós leitores, com todas as razões para suspeitar na nota sobre o seu autor, a sua natureza de pseudónimo – é tão geral e conhece tantas histórias, que só pode ser uma voz anónima, a voz do partido.
Entretanto, mesmo nesses tempos, pode dizer-se que a assinatura de Álvaro Cunhal estava, sem nome próprio, confiada a essa personagem fugaz, que ocorre poucas vezes no romance e é nomeada –’o Amigo”- por aqueles que, sem saberem quem realmente é, o acolhem.
Álvaro Cunhal aprende com a sua vida a capacidade criadora das massas populares em movimento. E não cessa de a elogiar, de a suscitar, de a organizar e de esperar por ela. Esse é um dos traços mais fortes que sublinha na revolução portuguesa. Aí reside, aliás, a razão daquela tenaz esperança que nos anima e não nos dá descanso.