O capitalismo como religião

A Boitempo Editorial acaba de lançar O capitalismo como religião, livro inédito de ensaios do filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940). A obra tem organização e comentário de Michael Löwy, que reproduzimos a seguir.

Entre os documentos inéditos de Walter Benjamin [1892-1940] publicados em 1985 por Ralph Tiedemann e Hermann Schweppenhäuser no volume 6 de suas obras completas (Gesammelte Schriften, Suhrkamp Verlag), há um particularmente obscuro, mas que parece de uma atualidade surpreendente: “O capitalismo como religião”. São três ou quatro páginas contendo anotações e referências bibliográficas; denso, paradoxal, às vezes hermético, o texto não se deixa decifrar facilmente. Como não se destinava à publicação, o autor não tinha qualquer necessidade de torná-lo legível e compreensível… Os comentários a seguir são uma tentativa parcial de interpretação, baseada mais em hipóteses do que em certezas, e deixando de lado certas “zonas de sombra”.

O texto de Benjamin é, com toda evidência, inspirado por A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber [1864-1920]. No entanto, como veremos, o argumento de Benjamin vai muito além de Weber e, sobretudo, substitui sua abordagem “axiologicamente neutra” (Wertfrei) por um fulminante requisitório anticapitalista.

“É preciso ver no capitalismo uma religião”. Com essa afirmação categórica começa o fragmento. Segue-se uma referência, mas também um distanciamento em relação a Weber: “Demonstrar a estrutura religiosa do capitalismo – isto é, demonstrar que ele é não somente uma formação condicionada pela religião, como pensa Weber, mas um fenômeno essencialmente religioso – nos levaria ainda hoje pelos meandros de uma polêmica universal desmedida”.

Benjamin continua: “Podemos entretanto, desde já, reconhecer no tempo presente três traços dessa estrutura religiosa do capitalismo”. Benjamin não cita mais Weber, mas de fato os três pontos se alimentam de ideias e argumentos do sociólogo, dando-lhes um novo alcance, infinitamente mais crítico, mais radical – social e politicamente, mas também do ponto de vista filosófico (teológico?) – e perfeitamente antagônico à tese weberiana da secularização.

O culto

“Primeiramente, o capitalismo é uma religião puramente cultual, talvez a mais extremamente cultual que já existiu. Nada nele tem significado que não esteja em relação imediata com o culto, ele não tem dogma específico nem teologia. O utilitarismo ganha, desse ponto de vista, sua coloração religiosa.”

Portanto, as práticas utilitárias do capitalismo – investimento do capital, especulações, operações financeiras, manobras bolsistas, compra e venda de mercadorias – são equivalentes a um culto religioso. O capitalismo não exige a adesão a um credo, a uma doutrina ou a uma “teologia”; o que conta são as ações, que representam, por sua dinâmica social, práticas cultuais. Benjamin, contradizendo um pouco seu argumento sobre a Reforma e o cristianismo, compara essa religião capitalista ao paganismo original, também ele “imediatamente prático” e sem preocupações “transcendentes”.

Mas o que é que permite assemelhar essas práticas econômicas capitalistas a um “culto”? Benjamin não o explica, mas utiliza, algumas linhas depois, o termo “adorador”; podemos assim considerar que o culto capitalista comporta certas divindades que são objeto de adoração. Por exemplo: “Comparação entre as imagens de santos das diferentes religiões e as notas de dinheiro dos diversos países”. O dinheiro, em forma de papel-moeda, seria assim o objeto de um culto análogo ao dos santos das religiões “comuns”.

No entanto, o papel-moeda é apenas uma das manifestações de uma divindade mais fundamental no sistema capitalista cultual: o “dinheiro”, o deus Mammon, ou, segundo Benjamin, “Plutão… deus da riqueza”. Na bibliografia do fragmento é mencionada uma passagem virulenta contra o poder religioso do dinheiro: está no livro Aufruf zum Sozialismus, do pensador anarquista judeu-alemão Gustav Landauer, publicado em 1919, pouco antes do assassinato de seu autor por militares contra-revolucionários. Na página indicada pela nota bibliográfica de Benjamin, Landauer escreve:

“Fritz Mauthner (“Wörterbuch der Philosophie“) mostrou que a palavra “Deus” [Gott] é originariamente idêntica a “ídolo” [Götze], e que as duas querem dizer “o fundido” (ou “o escorrido’) [Gegossene]. Deus é um artefato feito pelos humanos, que ganha uma vida, atrai para si as vidas dos humanos e finalmente torna-se mais poderoso que a humanidade. O único escorrido [Gegossene], o único ídolo [Götze], o único Deus [Gott] a que os humanos deram vida é o dinheiro [Geld]. O dinheiro é artificial e é vivo, o dinheiro produz dinheiro e mais dinheiro, o dinheiro tem todo o poder do mundo. Quem não vê, quem ainda hoje não vê, que o dinheiro, que o Deus não é outra coisa senão um espírito oriundo dos seres humanos, um espírito que se tornou uma coisa [Ding] viva, um monstro [Unding], e que ele é o sentido [Sinn] que se tornou louco [Unsinn] de nossa vida? O dinheiro não cria riqueza, ele é a riqueza; ele é a riqueza em si; não existe outro rico além do dinheiro”.

É verdade que não podemos saber até que ponto Benjamin compartilhava esse raciocínio de Landauer; mas podemos, a título de hipótese, considerar esse trecho, mencionado na bibliografia, como um exemplo do que ele entende por “práticas cultuais” do capitalismo.

Sem trégua

A segunda característica do capitalismo “está estreitamente ligada a essa concreção do culto: a duração do culto é permanente”. “O capitalismo é a celebração de um culto “sem trégua e sem piedade”. Não há “dias comuns”, nenhum dia que não seja de festa, no sentido terrível da utilização da pompa sagrada, da extrema tensão que habita o adorador.”

Sem descanso, sem trégua e sem piedade: a ideia de Weber é retomada por Benjamin, quase literalmente; não sem ironia, aliás, evocando o caráter permanente dos “dias de festa”: na verdade, os capitalistas puritanos aboliram a maioria dos feriados católicos, considerados um incentivo ao ócio. Portanto, na religião capitalista, cada dia vê a mobilização da “pompa sagrada”, isto é, os rituais na bolsa ou na fábrica, enquanto os adoradores seguem, com angústia e uma “extrema tensão”, a subida ou a descida das cotações das ações.

As práticas capitalistas não conhecem pausa, elas dominam a vida dos indivíduos da manhã à noite, da primavera ao inverno, do berço ao túmulo. Como bem observa Burkhardt Lindner, o fragmento empresta de Weber o conceito do capitalismo como sistema dinâmico, em expansão global, impossível de deter e do qual não podemos escapar.

Enfim, a terceira característica do capitalismo como religião é seu caráter culpabilizador: “O capitalismo é provavelmente o primeiro exemplo de um culto que não é expiatório [entsühnenden], mas culpabilizador”. Benjamin continua seu requisitório contra a religião capitalista: “Nisso, o sistema religioso é precipitado em um movimento monstruoso. Uma consciência monstruosamente culpada que não sabe expiar se apodera do culto, não para nele expiar essa culpa, mas para torná-la universal, para fazê-la entrar à força na consciência e, enfim e sobretudo, para implicar Deus nessa culpa, para que no fim das contas ele mesmo tenha interesse na expiação”.

Benjamin evoca, nesse contexto, o que chama de “ambiguidade da palavraSchuld” – isto é, ao mesmo tempo “dívida” e “culpa”. Segundo Burkhard Lindner, a perspectiva histórica do fragmento baseia-se na premissa de que não podemos separar, no sistema da religião capitalista, a “culpa mítica” da dívida econômica.

Encontramos em Max Weber dois raciocínios análogos, que também jogam com os dois sentidos de “dever”: para o burguês puritano, “o que consagramos a fins “pessoais” é “roubado” do serviço à glória de Deus”; tornamo-nos assim ao mesmo tempo culpados e “endividados” em relação a Deus. “A ideia de que o homem tem “deveres” para com as posses que lhe foram confiadas e às quais ele está subordinado como um intendente devotado (…) pesa sobre sua vida com todo o seu peso gélido. Quanto mais aumentam as posses, mais pesado torna-se o sentimento de responsabilidade (…) que o obriga, para a glória de Deus (…), a aumentá-las por meio de um trabalho sem descanso”. A expressão de Benjamin “fazer a culpa entrar à força na consciência” corresponde bem às práticas puritanas/capitalistas analisadas por Weber.

Amplitude

Mas parece-me que o argumento de Benjamin é mais geral: não é somente o capitalismo que é culpado e “endividado” com seu capital – a culpa é universal. Assim, o próprio Deus encontra-se envolvido nessa culpa geral: se os pobres são culpados e excluídos da graça, e se, no capitalismo, eles estão condenados à exclusão social é porque “é a vontade de Deus” ou, o que é seu equivalente na religião capitalista, a vontade dos mercados.

Bem entendido, se nos situarmos no ponto de vista desses pobres e endividados, é Deus que é o culpado, e com ele o capitalismo. Em qualquer dos casos, Deus está inextricavelmente associado ao processo de culpabilização universal.

Até aqui vimos bem o ponto de partida weberiano do fragmento, em sua análise do capitalismo moderno como religião originária de uma transformação do calvinismo; mas há um trecho em que Benjamin parece atribuir ao capitalismo uma dimensão trans histórica que não é mais a de Weber – e tampouco de Marx: “O capitalismo se desenvolveu no Ocidente como um parasita do cristianismo – devemos demonstrá-lo não somente a propósito do calvinismo, mas também das outras correntes ortodoxas do cristianismo –, de tal sorte que no fim das contas a história do cristianismo é essencialmente a de seu parasita, o capitalismo”.

O resultado do processo “monstruoso” de culpabilização capitalista é a generalização do “desespero”: “Ele está ligado à essência desse movimento religioso – que é o capitalismo – de perseverar até o fim, até a completa culpabilização final de Deus, até um estado do mundo atingido por um desespero que ainda “esperamos” que seja justo. O que o capitalismo tem de historicamente inédito é que a religião não é mais reforma, mas a ruína do ser. O desespero se estende ao estado religioso do mundo do qual se deveria esperar a salvação”.

Não estamos distantes, aqui, das últimas páginas d’A ética protestante…, em que Weber constata, com um fatalismo resignado, que o capitalismo moderno “determina, com uma força irresistível, o estilo de vida do conjunto dos indivíduos nascidos nesse mecanismo – e não somente daqueles que a aquisição econômica concerne diretamente”.

Ele compara essa coerção a uma espécie de prisão na qual o sistema de produção racional de mercadorias encerra os indivíduos: “Segundo as opiniões de Baxter, a preocupação pelos bens externos não deveria pesar sobre os ombros de seus santos senão como “um leve manto que a qualquer momento se pode retirar”. Mas a fatalidade transformou esse manto em uma jaula de aço”.

De Weber a Benjamin nos encontramos em um mesmo campo semântico, que descreve a lógica impiedosa do sistema capitalista. Mas por que ele é produtor de desespero?

Sendo a “culpa” dos humanos, seu endividamento para com o capital, perpétua e crescente, nenhuma esperança de expiação é permitida. O capitalista deve constantemente aumentar e ampliar seu capital, sob pena de desaparecer diante de seus concorrentes, e o pobre deve emprestar dinheiro para pagar suas dívidas.

Segundo a religião do capital, a única salvação reside na intensificação do sistema, na expansão capitalista, no acúmulo de mercadorias, mas isso só faz agravar o desespero. É o que parece sugerir Benjamin com a fórmula que faz do desespero um estado religioso do mundo “do qual se deveria esperar a salvação”.

* Versão editada de conferência realizada na USP em 29 de setembro de 2005. A tradução é de Luiz Roberto Mendes Gonçalves para a Folha de S.Paulo.