Il ne va plus (Assim não dá)

Professor de arquitetura, em Paris e Zurique, Claude Méril Schnaidt – falecido em 2007 – descreve nesse artigo, traduzido pelo integrante do Comitê Central do PCB Frank Svensson, toda a trajetória de debates e posicionamentos oriundos do marxismo acerca das cidades e da organização da vida social nesses espaços.

Na cidade, no campo, entre a cidade e o campo, nada mais dá.

Não que não tenha havido um tempo em que tudo ia maravilhosamente bem. A partir do momento em que o capitalismo fez da cidade e do campo mercadoria como outras quaisquer, quando a ganância por lucro tornou-se o motor de todas as transformações, irrompeu o desastre atual.

Alguns dados por alto. Do período 1900-2100. Se nada de essencial ocorreu no primeiro século, no seguinte dois bilhões de pessoas foram demovidas de suas terras para se aglomerarem em megalópoles. O planeta terra conta hoje com 6 bilhões de habitantes. Dentro de mais 50 anos terá 9 bilhões e meio.

Questão posta: Quantos habitantes poderá alimentar? A resposta é 18 bilhões segundo a forma de consumo de um lavrador de Bangla Desh e menos de 700 milhões dos do mundo ocidental. O produtivismo do meio século mais rico da humanidade que detém ¾ das riquezas mundiais provoca a extinção de 50 a 300 espécimes vegetais e animais por dia, 11% dos pássaros, 20% dos repteis, 25% dos anfíbios, 25% dos mamíferos e 34% dos peixes encontram-se ameaçados à escala mundial.

A OMC prepara um acordo visando eliminar todas as barreiras ao comercio dos produtos derivados de madeira e todos os obstáculos à exploração das florestas. 3.000 bilhões de dólares. É o que devem render 2010 as culturas transgênicas. Os gigantes da química e da agroindústria alimentar a fim de dominar o mercado, a natureza e até mesmo a produção. Modificam grãos gerando plantas estéreis, assenhoreando-se da vida e reduzindo os lavradores â condição de revogáveis agentes de produtividade em queda.

Em Nova Iorque que detém, na lista de cidades norte-americanas por criminalidade, o 7º lugar, um homem é assassinado a cada 4 horas, uma mulher é violentada a cada 3 horas, e um atentado é cometido a cada 30 segundos.

Os alarmes não surtem nenhum efeito sobre a cronometragem de implosões de cidades, de desertificação dos campos, da privatização total da vida. Cidade ou barbárie? Seria mais correto caracterizar como Apocalipse já.

Que dizem os mais inteligentes de entre os que ainda acreditam na cidade? Tomando forma a cidade reuniu os elementos antes dispersos da vida comunitária, permitiu a ação coordenada dos mesmos sob forma de ações de amplo interesse coletivo. A concentração da força material e cultural na cidade resultou uma aceleração do ritmo de relações e atividades humanas, um acréscimo do rendimento do trabalho e do volume da produção. A cidade, organizou-se para agregar bens e ideias, para transmiti-las de geração a geração engrandecendo o herdado. Ela extrai sua força de atração da quantidade de serviços que não são resultado de todas as peças quando se quer empreender, na redução do tempo exigido para as atividades consideradas como trabalho penoso, no estudo de escolha para o trabalho, na informação, nas distrações, nos contatos humanos. Em cidade não importa quem possa ter sorte e esperar fazer sua vida como entender. Força motriz do crescimento econômico, berço do progresso social e de grandes obras, a cidade é uma invenção tão preciosa e indispensável quanto à língua.

Opinião longe de ser unanime. Recente enquete revela que 44% dos franceses gostariam de viver numa pequena comunidade rural, 26% numa cidade interiorana de médio porte, 9% numa cidade grande, 5% em algum subúrbio de Paris e 4% em Paris. A enquete não revela quais são as causas da forte proporção de ruralistas. A angustia da livre troca mundializada, do trabalho robotizado, da desregulamentação, da precariedade, da exclusão, do medo dos vândalos que começaram a fazer incursões fora de seus redutos sensíveis atuando um pouco por toda parte. Mais gente do que se imagina tem vaga consciência da tara congênita da cidade. Platão — já faz muito tempo — o evidenciou: Toda cidade vive normalmente em estado de guerra com as demais afirma ele emLes Lois.

A guerra surgiu com as cidades. Não há nenhuma prova que tenha sido praticada antes do surgimento das mesmas. Não se encontraram armas nos vestígios de aldeamentos neolíticos. Essas minúsculas comunidades autossustentáveis eram sem dúvida muito distantes umas das outras, muito arraigadas em seus territórios para serem tomadas pela febre dos conquistadores. Conheciam os limites fixados pela garantia de sua subsistência submetendo-se com as demais a agrupamentos biológicos.

As comunidades urbanas perderam o senso de equilíbrio. Para satisfazer as necessidades de uma população crescente e cada vez mais faminta, tiveram que expandir seu espaço vital. Isso se deu excepcionalmente por cooperativismo, por desenvolvimento planejado, por intercambio comercial, por aumento de impostos, expropriações, pilhagem, extermínio de indígenas. Os territórios uma vez anexados, não sustaram a violência, tanto que as cidades resistiram perder autonomia ou sofrer subjugação.

Platão não se equivocou. O emprego da força é a essência da civilização urbana. Por milênios até hoje, querer dominar, concorrer e conquistar supera a prudência, a tenacidade, a paciência infinita do mundo aldeão. Felizmente esse mundo ainda não foi totalmente apagado do mapa. Sem ele estaríamos já no pós-apocalipse. Nâo é impossível que seja ele o terreno do qual germinará o comunismo social e autogestionhário que seremos levados a adotar ao invés de nossas cidades à deriva.

Forçada a se expandir – metade da população mundial hoje se concentra em conglomerados urbanos – pelo fato das cidades não continuarem propriamente como tais. Quando nos referimos acidade imaginamos um conjunto considerável e compacto de edificações cujos moradores trabalham no comércio, na indústria ou na administração. Vemos esses agrupamentos no meio de um território escassamente povoado por agricultores. Atribuímos-lhe uma função de centro político, econômico, cultural. Representação anacrônica. Ao longo dos últimos 250 anos, expandiram-se em todos os sentidos, sempre mais distante, mais rapidamente, até se fundirem umas nas outras. Os cidadãos colonizaram as bordas do mar, edificaram cidades nas montanhas, embricadas de redes de comunicação distante das quais implantam-se serviços, fábricas, escritórios. Não se habita mais junto aos locais de trabalho. Caminhões disponibilizam ligação entre produção e distribuição. As administrações locais, sedes de sociedades ultrapassam-se além dos perímetros primitivos. A composição e o funcionamento as redes urbanas são distintas e distantes do que eram. As multinacionais aí se assentam, produzindo em recantos distantes de quilômetros e fazendo sua contabilidade do outro lado do mundo. Encerram e localizam suas atividades quando e onde bem querem – sempre com lucro para os acionistas, jamais a favor dos trabalhadores. As autoridades locais, nacionais, não têm nenhum poder sobre suas decisões.

Nenhum centro – tal como os entendíamos – e nenhuma periferia, pois periferia pressupõe centro. Generalizando, nenhum lugar, caos, sepulcro de aprendiz de feiticeiro? Por entre charlatães, ninguém consegue hoje fazer corresponder à noção de cidade uma realidade aceitável, que proponha ao mesmo tempo procedimentos diretores e esboce alternativas urbanísticas.

Para enfrentar uma situação que está se tornando insustentável, surge o urbanismo, uma disciplina nova que se vale da matéria da antigaarte urbana. Duas correntes distintas nutriram a infância do urbanismo: a criação de meios de intervenção no desenvolvimento da cidade (enquetes, regulamentação, aparelho administrativo) e as utopias dos reformadores sociais. Esses foram os primeiros a formalizar uma alternativa à congestão e a expansão urbana: Le village d’harmonie de Owen (1817); Le Phalanstère de Fourier (1822-40); constituem propostas de urbanismo fora da cidade, contra a cidade, que se concretizarão no familistère de Guise (1859-70). Só se concretizará tardiamente no familistère de Guise (1859-70), as moradias coletivas soviéticas e nas unidades de habitação de Le Corbusier (1947-57). Depois vieram as grandes obras realizadas por Haussmann em Paris durante o reinado de Napoleão III. Urbanismo na cidade permitindo grandes negócios e as estradas de ferro.

Ao fim do século XIX até os anos 30 do século XX surgiram ascidades-jardim. Baseadas na hipótese que se pode combinar vantagens da cidade com as do campo suprimindo assim seus inconvenientes e dando prosseguimento à corrente iniciada pelos utopistas. Foram implantadas ao largo da cidade da qual não se preocupam seus protagonistas que inovam, alhures, buscando resposta à questão do crescimento futuro. As cidades-jardimdeveriam formar uma rede sobre o território destinadas a substituir progressivamente as aglomerações recebidas em herança.1

Em meados dos anos vinte aparecem as soluções da Nouvelle Architecture. Esse movimento, pensando nos mal alojados, quis construir em massa, a baixo custo, com apoio de municipalidades progressistas, cooperativas, bancos populares e da grande indústria. Seu urbanismo racionalizando a ocupação do solo é hostil à cidade existente, não se preocupando com a supressão de grandes concentrações. As melhores realizações no período pré-guerra são alemãs, holandesas e suíças, e britânicas (new towns) e escandinavas no pós-guerra.

Caricaturas suas são os grandes conjuntos que brotaram por toda parte entre 1950 e 1970. Reagindo às intervenções cirúrgicas nos bairros históricos desenvolveu-se depois de trinta anos uma corrente de conservação e restauro freando a onda de destruições, mas contribuindo fortemente para aquisição das velhas casas pelos ricos. Tal movimento é dos mais ambíguos. Para uns trata-se de se opor à degradação do modo de vida urbana e de preservar uma imagem da cidade considerada como um valor inestimável de meio ambiente. Para outros visa principalmente manter moradias cuja existência é ameaçada e impedir que se prossiga com o desmantelamento da estrutura social dos bairros. Para o capital trata-se de uma nova fonte de lucro, pois os velhos apartamentos reabilitados se vendem se alugam mais caro que os apartamentos novos fora do centro. Por outro lado, a ofensiva contra a habitação de interesse social, suas versões e limites, seguidas de remendo dos subúrbios (como para dotá-los de alma) permite uma redistribuição muito lucrativa das populações no espaço urbano. Trata-se como com Haussmann, de um urbanismo na cidade, mas em outra escala.

E os marxistas nisso tudo?

Não são unânimes quanto ao tema cidade. Para uns a cidade teria um belo futuro justamente no comunismo porque seria a mais econômica, a mais estimulante, a mais cultural das maneiras de viver coletivamente. Para alguns a cidade caminha para seu desaparecimento. Outros se situam com distintas nuances entre os dois extremos. Os marxistas não defendem um projeto urbano comum? Na prática não fariam quase a mesma coisa que os socialistas e os burgueses? 2

Retornar às fontes permite-nos ver com maior clareza. Ao longo do século XIX foram se definindo pouco a pouco três posições políticas fundamentais:

1. Mudar a cidade para melhorar a sociedade.

2. Mudar a cidade para conservar e consolidar as relações sociais existentes.

3. Mudar a sociedade para resolver os problemas da cidade.

Nos anos vinte do século XX aparece na União Soviética uma quarta posição?

4. Mudar a cidade para acelerar e permitir a transformação da sociedade.

A primeira dessas posições é a dos reformadores sociais utopistas. Robert Owen, por exemplo, a expressa em 1817 da maneira seguinte: Para transformar radicalmente a condição e o comportamento dos desfavorecidos temos que retirá-los do meio onde sofrem atualmente nefasta influencia, localizando-os em condições em conformidade com a constituição natural do homem que não deixarão de melhorar sua sorte, o que responde aos interesses de todas classes.3

A segunda posição é a dos burgueses. Jules Siegfried, deputado-prefeito de Havre, a expõe sem ambiguidade: A influencia da cidade operária sobre a moralidade, e consequentemente sobre a miséria, é considerável. Não se vê como a esperança de se tornar proprietário torne o homem mais trabalhador, mais econômico, mais ordenado, e como sua vida torna-se mais ativa e mais interessante? … Queremos obter pessoas felizes e verdadeiros conservadores? Queremos combater ao mesmo tempo a miséria e os equívocos socialistas? Queremos aumentar as garantias de ordem, de moralidade, de moderação política e social? Criemos cidades operárias.4

A terceira posição é a de Marx, Engels e Morris. Engels é formal:Para por fim à crise habitacional só eliminando pura e simplesmente a exploração e a opressão à classe trabalhadora pelas classes dominantes … A crise habitacional para os trabalhadores e uma parte da pequena burguesia nas grandes cidades modernas é um dos inúmeros males de importância menor (sublinhado por Engels) e secundaria que resultam do atual modo de produção (sublinhado por Engels) … Não é a solução da questão da habitação que resolve de um mesmo golpe a questão social, mas bem a solução da questão social, ou seja, a abolição do modo de produção capitalista, que tornará possível a questão habitacional.5

Como nos reformadores sociais utópicos da primeira metade do século XIX, a crítica da cidade em Marx e Engels é parte da crítica da sociedade capitalista. As taras da cidade são consequência das taras da sociedade. Ao contrário dos utopistas, Marx e Engels não associam a cidade capitalista a um caos e não propõem um modelo para a cidade futura. A cidade é um lugar da História. Ela só é desordenada na aparência. Sua ordem é a da sociedade que a criou e utiliza. Marx e Engels não opõem a essa ordem a imagem abstrata de uma nova ordem. A forma da cidade futura será produto da marcha rumo a sociedade sem classes. Especular quanto a como a sociedade futura regulará a repartição de alimentos e de moradias é diretamente utópico. Além disso, podemos, por força do conhecimento que temos das condições fundamentais de todos os modos de produção já havidos, estabelecer que após a queda da produção capitalista, certas formas de apropriação na sociedade atual tornar-se-ão impossíveis. As medidas de transição deverão elas mesmas, portanto, se adaptar às condições que existirão naquele momento.6

Na questão da habitação, Engels se pronuncia por soluções provisórias que serão depois aplicadas pela União Soviética: O que é certo é que em grandes cidades já há suficientes imóveis de uso habitacional para remediar sem demora, por seu emprego racional, a toda verdadeira crise habitacional. Isso naturalmente não poderá ocorrer sem recurso de desapropriação de atuais proprietários, para ocupação de seus imóveis por desabrigados ou hoje amontoados em seus abrigos; desde que o proletariado tenha conquistado o poder político, medida exigida para que o bem publico seja fácil de ser realizado, ao contrário do que são hoje desapropriações e requisição de moradias pelo Estado.7

Os fundadores do marxismo não foram simplesmente pragmáticos no assunto? Não. A posição deles decorreu da noção fundamental emprestada a Flora Tristan: … a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores. O mundo que construirão não será pela realização de um plano que lhes tenha sido dado ou imposto. A perspectiva da ação transformadora coletiva substitui os projetos detalhados e indicativos dos socialistas utópicos. O porvir é aberto, indeterminado, inacabado. Sua configuração surgirá progressivamente, à medida que se desenvolverão as lutas. Não obstante, será completamente falso concluir que Marx e Engels não tiveram projeto para a cidade e o campo. Tinham um, certamente não formalizado, mas ao invés mais radical. Esse projeto é mesmo tão desestabilizante que marxistas considerando a realidade têm preferido ignorar ou apagá-lo da memória.

Antes de tudo, Marx e Engels integraram à sua obra uma vasta corrente de pensamento sobre a organização da vida da cidade ideal. Platão, More, Campanella, Saint-Simon, Owen, Fourier, Cabet, são subjacentes ao marxismo. Suas ideias quanto a democracia, a harmonia da indústria e da agricultura na comunidade, a reconciliação da cidade e da natureza, a reunificação do trabalho intelectual e do trabalho manual, a socialização dos serviços de primeira necessidade e da educação, a ligação entre escola e produção, o horizonte do homem total, constituem premissas de um projeto urbano.

Engels diz, por exemplo: A sociedade organizada sobre a base comunista dará a seus membros a ocasião de ocupar em todos os sentidos suas faculdades desenvoltas duma maneira adequada. Resulta que toda diferença entre as classes desaparecerá igualmente. De tal sorte que a sociedade comunista, duma parte, é incompatível com a existência das classes, e, da outra parte, fornece ela mesma os meios de supressão dessas diferenças de classes. O antagonismo entre a cidade e o campo desaparecerá igualmente. O exercício da agricultura e da indústria pelos mesmos homens, ao invés de ser feito por classes distintas, é já, por razões inteiramente materiais, uma condição necessária da organização comunista.

A dispersão da população rural no campo, ao lado da concentração da população industrial nas cidades, é um fenômeno que corresponde a uma etapa de desenvolvimento inferior da agricultura e da indústria, um obstáculo ao progresso, que se faz sentir desde agora. A associação geral de todos os membros da sociedade tendo em vista a utilização coletiva e racional das forças produtivas, a extensão da produção em proporções tais que possa satisfazer as necessidade de todos, a supressão do sistema de organização social no qual as necessidades de uns não são satisfeitas a não ser à custa de outros, a supressão completa das classes e de seus antagonismos, e o desenvolvimento completo das capacidades de todos os membros da sociedade por meio da supressão da divisão do trabalho, tal como, pelo menos, é realizado até o presente, por meio da educação baseado no trabalho, da mudança de atividades, da participação de todos nas diversões criadas por todos, da fusão entre a cidade e o campo, tais serão as principais consequências da supressão da propriedade privada.8

Na Questão da habitação Engels escreve: querer resolver a questão da habitação insistindo no modelo de grandes cidades modernas, é um absurdo. Essas grandes cidades modernas não serão suprimidas a não ser pela abolição do modo de produção capitalista e quando esse processo se der, tratar-se-á de algo totalmente distinto do de proporcionar a cada trabalhador um casinha própria.9

É claro, límpido. As grandes cidades estão destinadas a desaparecer e elas não serão substituídas por novas aldeias. EmPrincípios do comunismo, Engels dá por tarefa aos comunistas a construção de grandes palácios sob domínio nacional para servir de habitação das comunidades de cidadãos ocupados na indústria e agricultura, unindo as vantagens da vida citadina com às da vida no campo, sem sofrer seus respectivos inconvenientes.10

Reconhecendo o papel civilizatório da cidade e sua importância na luta libertária dos trabalhadores, Marx e Engels não perdem de vista o caráter desumano da cidade e suas consequências fatais sobre as leis naturais da vida. Em Ideologia Alemã (1846) escreveriam: A oposição entre a cidade e o campo só pode existir por força da propriedade privada. Ela é a expressão a mais flagrante da subordinação do indivíduo à divisão do trabalho, de sua subordinação a uma atividade determinada que lhe é imposta. Essa subordinação faz dele um animal das cidades e de outro um animal do campo, tão oprimido um quanto o outro, fazendo surgir diariamente novas imposições de interesses de ambas as partes. O trabalho ainda é a coisa principal, o poder sobre os indivíduos, e, por longo tempo esse poder existirá, terá também uma propriedade privada. A abolição dessa oposição entre a cidade e o campo é uma das primeiras condições de comunidade, e essa condição depende por sua vez de inúmera condições materiais anteriores que a simples vontade não é capaz de realizar, como todo mundo pode constatar de imediato.11

Em Anti-Düring, Engels observa: A separação da cidade do campo condena a população rural a milênios de atraso e os cidadãos a limitação de cada um à sua profissão individual. Ela anula as bases do desenvolvimento intelectual de uns e do desenvolvimento físico dos outros.12

Engels prossegue: A supressão da cidade e do campo não é, portanto, somente possível. Tornou-se uma necessidade direta da produção industrial ela mesma, como se tornou igualmente uma necessidade da produção agrícola e por isso do mercado e da higiene pública. Somente pela fusão da cidade com o campo é possível eliminar a atual poluição do ar, da água e do solo; ela só pode amenizar os dispersoides do ar que hoje envolve as cidades, ao ponto de dejetos servirem à produção de plantas, ao invés de produzir doenças … A supressão da separação da cidade e do campo não constitui, portanto, uma utopia, mesmo tendo por condição a repartição a mais igual possível da grande indústria através de todo o país. Certo, a civilização nos deixou as grandes cidades por herança que exigirá muito tempo para eliminar. Mas têm que ser eliminadas e o serão mesmo se tratando de um processo de longa duração. 13

Para Lenin, o acesso aos tesouros culturais das cidades não se administram pela concentração urbana, mas por uma revolução dos transportes e das comunicações. Ele escreve em A questão agrária e as críticas de Marx (1906): O reconhecimento do aspecto progressista da grande cidade não nos impede de incorporar a nosso ideal e nosso programa de ação a eliminação da oposição entre cidade e campo.14

Em Socialismo, seu surgimento e morte (1893) William Morris e E. Belfort Bax falam do principio que, numa sociedade comunista, não há mais necessidade de grandes capitais, que são essencialmente a sede de um governo centralizado, de operações financeiras gerais e, incidentemente e por consequência, de um movimento intelectual. Para o futuro, três hipóteses são possíveis: A primeira deixará subsistir as grandes cidades, mas limitará a população num espaço dado; esse exigirá … a presença de jardins emoldurando e separando as casas. A segunda hipótese será de abolir as cidades e substituí-las por conjuntos habitacionais concebidos sobre planos dos colegas de nossas antigas universidades inglesas. Quanto as suas dimensões, seriam determina-das em cada caso segundo as comodidades, mas a tendência seria de fazê-lo suficientemente grandes para que se tornassem quase como que pequenas cidades. Terceira hipótese: Um centro comunitário, que será como uma pequena cidade com grandes casas, entre as quais haverá diversos edifícios públicos, o conjunto sendo provavelmente agrupado em torno de um espaço livre. Depois um cinturão de casas cada vez mais espaçadas, até atingir finalmente a plena campanha, onde as habitações, nas quais se encontrarão colegas dos quais falamos, serão esporádicas.15

Morris acrescenta que se possa haver outras hipóteses constituindo combinações dos três sistemas precedentes. É assim que ele considera em les Nouvelles de nulle part (1891), romance no qual descreve a Inglaterra comunista do 22º século como um imenso jardim. Os habitantes dessa Inglaterra inteiramente inseridos na paisagem teriam seu modo de vida totalmente transformado. Hoje, constata Morris, o operário de fabrica, o cidadão, é um animal distinto do camponês. Essa redução à animalidade, que limita ambos e que resulta na sua separação, deve desaparecer. Pode-se conceber que um dia será possível tornar a cidade uma parte do campo e o campo uma parte da cidade.16

Difícil ser mais explícito. Há bem uma alternativa comunista ao desastre dos estabelecimentos humanos. Ela tem uma dimensão urbanística evidente, mas vai muito além. A deterioração da oposição cidade/campo é indissociável do marxismo. Não se trata de um objetivo banal da vida prática, mas da realização espacial da relação com o mundo do homem comunista (Lothar Kühne).17

E assim, condicionado pelo horror das cidades e dos campos no presente século e se deixando tomar pelo demônio da antecipação, os fundadores do marxismo se equivocaram? Ou não é mais atual? E se os construtivistas soviéticos foram inoportunos? Não é a minha opinião. Mas para os que consideram essas eventualidades eu tenho algumas questões em reserva:

Terá sido a complexidade e o custo de realização dos pais fundadores que os fez desistir e que explicaria o pouco entusiasmo suscitado? Será o automóvel, o sanitarismo, a modernização da agricultura e o Club Med que o haveria desatualizado? Se nós não nos preocuparmos da expansão das cidades e da desertificação dos campos, se tudo é posto em causa, as convicções de Marx e Engels inclusive, qual projeto a defender? Ou devemos, como nos sugerem insistentemente, abandonar definitivamente a ideia de um projeto em favor de procedimentos (a inventar) que, ao mesmo tempo toleraria, resultaria e combateria a desordem? Mas se renunciamos a projetar os germes do futuro, por que milagre saltarão do presente?

Notas

Este texto reúne a totalidade ou partes de conferencias feitas e de artigos publicados sob o título: Les marxistes ont-ils un projet urbain? No Instituto de pesquisas marxistas em Paris em 1988, publicados sob mesmo título em:

Société française, Paris (1988) 29, pp. 59-63;

Haben die Marxisten ein Stadtporlekt? Em Humboldt Universität de Berlim, 1988;

Kämpfe um die Stadt: Zur marcistisschen Stadtvision au Bildungsausschuss de Partei der Arbeit, Zurique, 31/05/1990;

Em versão reduzida sob mesmo título em Vowarts. Basiléia, 14/06/1990, D. 5 ;

Le projet urbain des fundateurs du marxisme et la leçon de l’URSS à la Havanne em 1992, publicado sob mesmo título em Claude Schnaidt: Ce n’est pas fini/No se acabó École d’architecture Paris-Villemin/lnstituto superior politécnico José Antonio Echeverria 1999, pp. 29-41;

Kritik und perspektive der Stadt – Fragen über der Schwierigkeit for den ainen zur anderen fortzuschreiten Raum und Stadtnutzung. Vienne, 23/01/1993;

Rien ne va plus à la huitième université d’été de la Ligue communiste révolutionnaire à Prapoutel-les-Sept-Laux le 27 août 1999.

1. Ce sont des cas isolés et très édulcorés par rapport au Village d’harmonie et au Phalanstère qui étaient conçus en tant qu’unités de production agricole et industrielle, autarciques pour l’alimentation et les services, et dont les membres associés devaient travailler à la fois aux champs et à l’atelier.

2. Le jour où on fera un inventaire consciencieux de l’urbanisme des démocraties populaires, on s’apercevra que cette insinuation n’est que très partiellement fondée.

3. Choay, Françoise L’urbanisme — Utopies et réalités. Paris, Seuil 1965, pp. 92-93.

4. Revue de l’habitat social, Paris (1978) 30, p. 36.

5. Engels, Friedrich ; La question du logement. Paris, Éditions sociales 1957, pp. 21-22,57.

6. Op. cit. 5, p. 108.

7. Op. cit. 5, p. 37.

8. Engels, Friedrich; Principes du communisme. Paris, 192(l), p. 28.

9. Op. cit. 5, 12 57.

10. Op. Cit. 8, p. 25.

11. Marx, Karl & Engels, Friedrich: L’idéologie allemande. Paris, Éditions sociales 1977, pp. 93-94.

12. Engels, Friedrich: Anti-Dühring, Paris, Éditions sociales 1963, p. 331.

13. Op. Cit. 12, pp. 335-336.

14. Lénine, Vladimir lllitchr Werke. T. 5. Berlin, 1958, p.194.

15. Meier, Paul : La pensée utopique de William Morris. Paris, Éditions sociales 1972, pp. 604-605.

16. Op. cit. 15, p. 611.

17. Kühne, Lothar : Haus und Landschaft. Dresden, VEB Verlag der Kunst 1985, p. 30.