Neste artigo de Ludovico Geymonat, traduzido por Frank Svensson, o militante comunista italiano – filósofo, matemático e epistemólogo -, reconhecido conhecedor do legado teórico de Lênin, dá mais uma mostra de sua especialidade em Teoria do Conhecimento. O original foi publicado na antologia: Attualità del materialismo dialèttico, em Roma, 1974.
Para expor dentro de certa ordem as teses mais características do materialismo dialético sobre o problema geral do conhecimento (ou problema gnoseológico), convém lembrar, mesmo que em termos esquemáticos, certas objeções de fundo dirigidas a uma pretensa solução idealista desse problema. É isso que nos propomos fazer neste parágrafo e nos seguintes.
I Aquele que tem por hábito considerar o idealismo de Fichte como uma das principais formas modernas da filosofia idealista ficará surpreso com o fato de que os materialistas dialéticos não aprovaram e não aprovam a necessidade de atacá-lo; assim, por exemplo, os marxistas italianos não são dados a refutar a teoria do conhecimento elaborada por Giovanni Gentile e seus discípulos.
Isso não se deve — como insinuam alguns — à existência de laços mais ou menos claros entre o fichteísmo (ou o néo-fichteísmo de Gentile) e o materialismo dialético (principalmente sob a forma dada por Lênin), mas ao simples fato de que a noção fichteana do eu puro distinta dos eus empíricos não encontra nenhuma correspondência nos processos concretos do conhecimento que constituam, para o materialismo dialético, o verdadeiro e próprio objeto das pesquisas gnoseológicas, e em particular nos processos de conhecimento das ciências exatas, unanimemente consideradas pelos materialistas dialéticos corno o ponto mais alto atual do conhecimento humano.
Dedicar-se a atacar uma filosofia tão distante de toda realidade não pode constituir outra coisa senão uma considerável perda de tempo; ou seja, seria uma luta inútil contra os fantasmas do passado, algo agora destituído de qualquer interesse teórico e que finalmente não implica em nenhum dano. O verdadeiro perigo do idealismo se encontra no fenomenismo herdado de Hume e no agnosticismo de tipo kantiano. Com respeito a essa última forma de idealismo — muito difundida nos meios científicos do inicio do século e que foi objeto de vivas criticas por Lênin podemos acrescentar haver perdido quase todo seu peso, o que nos dispensa de considerá-la de forma sistemática. Limitar-nos-emos a mencioná-la quando nossa argumentação nos levar a discutir se faz sentido admitir, como os agnósticos, a existência de qualquer realidade por princípio impossível de ser conhecida.
O fenomenismo é, ao contrário, extremamente difundido entre os cientistas e os epistemólogos (ou filósofos) da ciência. Fato é que as formas mais refinadas — ordinariamente conhecidas sob a denominação de empirismo lógico ou neopositivismo — parecem encontrar uma correspondência quase perfeita em certos setores particularmente avançados do conhecimento científico atual. É bem compreensível, no entanto, que nosso dever primeiro seja o de guardar as devidas distâncias dessa teoria.
A gnoseologia materialista-dialética também atribui uma grande importância às sensações (ou percepções), afirma que elas constituem, sem dúvida alguma, o .fator primeiro de nossos processos de conhecimento. Isso não nos autoriza, no entanto, confundir aquilo que é um fator primeiro e essencial de todos os processos do conhecimento com o objeto de tais processos. Uma tal confusão nos conduziria na verdade a considerar os dados perceptivos como algo definitivo, além dos quais o conhecimento não poderia chegar. Isso equivaleria a sustentar, de um lado, o caráter absoluto desses dados, e do outro, o caráter não cognitivo mas prático, arbitrário, puramente convencional das elaborações teóricas feitas a partir dos mesmos (donde a inconsistência de qualquer tentativa de penetrar mais fundo no significado).
Se é um fato histórico incontestável que o fenomenismo se afirma na filosofia moderna em oposição direta com o dogmatismo dos metafísicos, é verdade, todavia, que um exame crítico sem preconceitos das teses fenomenistas demonstra a sua estrita analogia com as de seus adversários. Não se pode negar que atribuir aos dados perceptivos um caráter absoluto e definitivo, como precisamente pretendem os fenomenistas, parece demais com a realidade última postulada de forma dogmática pelos metafísicos.
Apresentaremos no parágrafo 4 as críticas sustentadas pelo materialismo dialético contra o mecanicismo (a concepção filosófica que, é verdade, com importantes variantes, foi a base da física clássica depois do século XVII): criticas essencialmente baseadas no fato de que a admissão — fundamental para o mecanicismo — de conhecimentos absolutos daria um significado muito reduzido à noção de avanço do conhecimento. Sem antecipar uma análise detalhada, parece oportuno assinalar que tais críticas também são válidas em relação ao fenomenismo, pois este, tal corno o mecanicismo, postula a existência de conhecimentos absolutos (precisamente os dados perceptivos).
Limitamo-nos aqui a reafirmar que esta absolutização não pode deixar de criar uma verdadeira ruptura entre os dados da observação, e não importa qual seja a elaboração teórica feita à partir dela. Ora, é exatamente essa ruptura que o materialismo dialético de forma alguma pode aceitar, na medida em que se trata de um sutil artificio para desacreditar a razão, por negar dogmaticamente esse valor aos esforços desenvolvidos pela ciência no sentido de levar a uma melhor e mais satisfatória compreensão dos dados.
Resumindo: a origem da profunda oposição entre fenomenismo e materialismo dialético radica-se no entusiasmo em que aquele propõe a percepção imediata, entendida como conhecimento único, absoluto e incomparável, enquanto o segundo defende vigorosamente a existência de um conhecimento mediato, ou seja, um conhecimento que, por ser baseado em dados perceptivos, não consegue superá-los.
O leitor, entretanto, poderia agora se perguntar: não encontramos na teoria leninista do reflexo uma tese que termina por atribuir um valor absoluto aos dados perceptivos? Na verdade, a absolutização desses dados não estaria implícita na célebre afirmação de Materialismo e empiriocriticismo, segundo a qual as sensações copiam, fotografam, refletem a realidade objetiva?
Para demonstrarmos que qualificando as sensações de cópias da realidade, Lênin não tinha por ideia lhes dar um caráter absoluto. Parece-nos suficiente lembrar o desenvolvimento dado à teoria do reflexo em seus Cadernos filosóficos. Desenvolvimento que pode ser resumido em dois pontos:
1 – a extensão da teoria do reflexo das sensações ao conhecimento total; e
2 – a afirmação explícita do caráter ativo do reflexo.
O primeiro ponto é particularmente interessante, porque exclui toda ideia de privilegiar as sensações; ou seja: se o conhecimento total é o reflexo da natureza pelo homem, isso significa que a capacidade de refletir não é atribuída só aos dados perceptivos (nesse caso assumiriam um caráter verdadeiramente absoluto), mas aos processos do conhecimento. que são algo de bem mais complexo, de essencialmente fluido, na medida em que se articulam em atos perceptivos e em elaborações teóricas que levam a novas observações.
O segundo ponto liga-se diretamente ao primeiro: se a reflexão não pode ser atribuída só às percepções, mas também aos processos do conhecimento em sua totalidade. Resulta que:
… não é uma reflexão simples, imediata, total, e sim o processo de uma série de abstrações, de formulações, da formulação de conceitos, de leis etc., e esses conceitos, essas leis etc., compreendem também, de forma condicional, aproximativa, as leis universais da natureza eternamente em movimento, em evolução.
As palavras de Lênin acima citadas são tão claras que é absolutamente impossível confundir a teoria leninista com urna teoria que exalte o caráter absoluto dos dados imediatos. Ao contrário, o que deve ser sublinhado, é a importância do caráter processual do conhecimento, que exclui, por definição, a obtenção de resultados definitivos, mas que não exclui por isso a possibilidade de apoderar-se — mesmo se aproximativamente — do mundo real.
Sem dúvida alguma, os verbos copiar, fotografar e refletir podem ser julgados inadequados, na medida em que se referem a fenômenos físicos que não mostram o caráter processual que acabamos de invocar. Pode-se, no entanto justificar o emprego, pensando que Lênin os adotou em outro sentido: afim de sublinhar que as sensações, os conceitos etc., são rigorosamente algo de diferente do mundo real, que procuramos captar por seu intermédio, da mesma forma que as imagens fornecidas pelo espelho ou pelo aparelho fotográfico. São qualquer coisa de nitidamente diferente dos objetos refletidos ou fotografados.
Com efeito, as sensações, os conceitos etc., não constituem aquilo que nós conhecemos, como o pretendiam os filósofos idealistas, mas os meios graças aos quais nós conhecemos. É justamente por isso que podem ser constantemente aperfeiçoados, melhorados, afinados, como temos o hábito de aperfeiçoar, de melhorar, de afinar os nossos instrumentos de pesquisa.
O leitor, evidentemente, poderá sentir-se mais ou menos satisfeito com a teoria do conhecimento de Lênin, que aqui procuramos definir. O essencial é que não podemos refutá-lo travestindo suas mais significativas teses.
II Já mencionamos no parágrafo anterior a ruptura, que o fenomenismo insere entre os dados perceptivos e as elaborações teóricas a partir deles, feitas pelas ciências; Mostramos que essa ruptura constitui a base entre fenomenismo e materialismo dialético. Quer-nos parecer oportuno agora analisar ligeiramente a maneira – diferente quanto à aparência, mas semelhante quanto ao fundo — como essa ruptura aparece entre as tendências mais conhecidas da filosofia contemporânea. Queremos nos reportar à filosofia de Husserl.
Sabe-se que Husserl atribui urna função primeira, nos processos de conhecimento, aquilo que ele chama de caudal heraclitiano. Nas instituições correntes, a expressão caudal heraclitiano serve para diferenciar fenomenística, da concepção husserliana da experiência que ele procurou reduzir a um conjunto de dados perceptivos. Quanto à significação que atribui à expressão intuições concretas, basta sublinhar que quer referir-se às percepções tomadas em toda sua pureza, deixando de lado o que diz a fisiologia e a psicologia. Ele entende assim referir-se ao que nos aporta a experiência de forma imediata e autêntica quando a liberamos de toda a superestrutura com a qual costumamos revesti-la.
A tese central que, feitas as distinções necessárias, aproxima a filosofia husserliana dessa fenomenística, é a seguinte: a caudal heraclitiana das instituições concretas (pré-categoriais) precede qualquer tipo de conceituação (ou o categorial) e constitui o fundamental. Desse ponto de vista, os conhecimentos científicos assim definidos, obtidos graças à aplicação de categorias cada vez mais abstratas, não podem deixar de importunar, pois afastam-se do pré-categoria. A única verdadeira ciência será a fenomenologia, que se situa acima de toda conceituação consciente ou inconsciente.
Mas — objeta o materialismo dialético — é verdade que as supostas intuições imediatas sejam desprovidas de qualquer conceituação? É verdade que, buscando em profundidade nos nossos conhecimentos concretos, chegamos a um concluir puro como postulado por Husserl? Não ocorre, ao contrario, que esse concluir se nos aparenta imediato só porque se vale de categorias simples, rudimentares, espontâneas mas que por isso não são de natureza diferente das outras categorias? Se assim é — e dificilmente isto poderá ser negado — devemos concluir que todos os conhecimentos, dos mais simples aos mais complexos, resultam de uma fusão íntima entre os elementos pré-categoriais e os elementos categoriais inseparáveis, salvo por um ato de abstração artificial.
É baseado nessa abstração que o fenomenólogo se crê no direito de sustentar que os nossos processos de conhecimento se fundem em última instância num único caudal heraclitiano de nossas intuições. Se, pelo contrário, agirmos de maneira realista no tocante ao caráter componente de todos os processos do conhecimento (que unem sempre o pré-categorial ao categorial), devemos renunciar à presunção de que nosso conhecimento só tenha uma base, e devemos consequentemente admitir que possam ser realmente enriquecidos, seja por urna multiplicação de dados de observação, seja pelo aprimoramento das categorias aplicadas ao caso. Nessa nova perspectiva, antitética à do fenomenólogo, a ciência não aparece mais como de conhecimentos primitivos travesti- dos mas como um autêntico aprofundamento desses conhecimentos.
Se o materialismo dialético fala de um primado das sensações (como afirmamos no parágrafo precedente), não é por subestimar a contribuição das categorizações, mas unicamente para sustentar — corno afirmaram os sábios de todos os tempos — que seria desonesto qualificar de científica urna teoria negada por nossas observações em perpétua evolução. Uma coisa é afirmar esse primado, e outra, bem diferente é afirmar a existência de um nível do conhecimento totalmente desprovido de teorização.
Daí o peso essencial sempre atribuído pelo materialismo dialético à reflexão critica quanto aos conhecimentos científicos. O peso dado a essa reflexão não advém de algum cego quanto a tais conhecimentos. Advém da constatação de que eles estão em condições de nos mostrar concretamente, com particular clareza, tanto a coordenação entre o categorial e o pré-categorial, como a natureza autenticamente progressista da passagem do nível simples do conhecer a níveis mais elaborados. Vista desta perspectiva, a reflexão critica sobre os conhecimentos científicos ganha uma extrema importância, não só para a metodologia da ciência mas também para a filosofia.
III Os resultados atingidos nos parágrafos precedentes podem se resumir essencialmente em duas partes:
1 – os dados perceptivos não são os objetos conhecidos, mas constituem instrumentos indispensáveis do conhecer e, como tais podem ser modificados, precisados, aperfeiçoados,
2 – não existe um concluir puro que preceda toda teoria, mas, qualquer que seja o processo de conhecimento, apresentam-se sempre ao mesmo tempo intuições e categorizações (mais ou menos elaboradas).
Estes resultados foram obtidos através da polêmica contra o fenomenismo e contra a fenomenologia. Passemos agora a pars construens da teoria materialista-dialética do conhecimento.
Não nos devemos surpreender após o que ate aqui procuramos desenvolver, de que essa pars construens parte de uma consideração dinâmica do nosso conhecimento, ou seja, do exame daquilo que surge, não num só ato de conhecimento, mas na passagem de um conhecimento a outro (mais uma vez principalmente com relação ao campo do conhecimento científico).
Retornaremos mais detalhadamente, nos próximos parágrafos, ao exame dessa dinâmica. Por ora, podemos nos limitar a uma primeira constatação muito simples: a de que o efetivo desenvolvimento histórico nos mostra mil casos nos quais se encontra, de comum acordo, unia passagem mais ou menos súbita de um nível a outro de nosso aprofundamento nos fenômenos estudados. É ocioso dar exemplos, tão numerosos e tão conhecidos que são.
Não cabe aqui discutir, caso por caso, em que consistem as supraditas mudanças de nível. Isso é na realidade a missão específica dos historiadores da ciência, que devem, entre outras coisas, evidenciar os fatores econômicos e sociais que originaram (ou favoreceram) tais mudanças. Sem querer negar a importância dessa história externa da ciência, paralelamente existe outra, uma história interna, relativa dinâmica das teorias científicas, pela qual é possível afirmar que uma teoria domina outras, resolvendo os problemas que essa deixou em aberto e nos fazendo encontrar a natureza profunda da dificuldade que havia bloqueado a pesquisa.
Uma vez consciente dessa incontestável situação, o materialista dialético afirma que ele não pode desenvolver-se sem que seja postulada uma existência irredutível ao sujeito, realidade que seria, por assim dizer, a metade do processo do conhecimento. Ou seja, o materialismo dialético evidencia que é impossível dar um sentido exato a expressões como aperfeiçoamento ou piora de nossos conhecimentos, se não admitirmos a existência de objetos do conhecimento, independente da atividade pela qual sejam penetrados.
Como poderíamos falar de um contato quanto menor tanto melhor com esses objetos, sendo simplesmente criações nossas? A definição mesma do termo criar implica em que aquele que cria alguma coisa possui sempre e completamente o fruto de sua atividade criadora e, por isso, a sua maneira de a possuir não pode ser nem melhorada nem piorada.
Como sabemos, a tese criacionista acima apresentada é sustentada, no plano epistemológico, pelos convencionalistas. Mas — objeta agora o materialista dialético — como é possível falar com razão da superioridade de uma teoria quanto a outra (no que concerne a um mesmo grupo de fenômenos), se todas as teorias não passam de puras convenções? Sabemos bem que, se passamos do plano da ciência ao das elucubrações puras (estas sim, baseadas unicamente em convenções), podemos certamente dizer que urna cogitação é igual ou diferente da outra, mas não que seja inferior ou superior.
Demos deliberadamente à nossa argumentação o caráter de uma análise linguística e, mais exatamente, o caráter de uma análise da língua comum. Não tanto em concessão a conhecida metodologia de urna das escolas filosóficas inglesas mais recentes e mais célebres. Porém mais para permitir ao leitor a possibilidade de uma reflexão sem preconceitos acerca de um dos mais sólidos pilares (pelo menos no nosso entender), pelo qual o materialismo dialético sustenta a sua própria concepção da realidade.
Se o metafísico pode zombar desse tipo de argumentação, parece-nos que o empirista sincero também tem o mesmo direito. Na realidade, ele parece bem mais dogmático entretendo ilusões quanto a possibilidade de restringir radicalmente o patrimônio das experiências concretas acumuladas pela língua comum ao longo de milhares de anos.
As escolas filosóficas que têm negado a existência de um mundo objetivo independente de nós, conseguiram sustentar essa tese na medida em que se limitaram a examinar os sistemas de nossos conhecimentos em sua estrutura estática sem a menor referência ao desenvolvimento histórico efetivo e concreto desses conhecimentos.
O materialista dialético rejeita totalmente esse tipo de análise, por mais sutil que seja, ou, pelo menos, o considera unilateral e assim insuficiente; sua firme convicção é de que ele deve ser completado por uma análise tão rigorosa quanto essa, daquilo que ocorre quando se passa de um sistema de conhecimento a outro. Caso contrário, pensa o materialista, um exame aprofundado do saber científico leva à conclusão de que o processo do conhecimento, em sua dialética histórica, nos leva a qualquer coisa não criada pelo espirito humano, mas de sofrida aproximação graças a aproximações que pouco a pouco se tornam satisfatórias.
Neste ponto da argumentação, qualquer um pode opor ao materialismo dialético a seguinte objeção: é bem verdade que na realidade histórica existem muitos exemplos de passagem de uma teoria menos válida para uma mais válida, mas eles nos provam tão-somente que a segunda teoria é superior à primeira na medida em que permite, quer ordenar de forma sistemática todos os dados perceptivos explicados pela primeira, quer acrescentar um outro dado. E poder-se-á contrapor ainda que evidentemente um tal critério de superioridade não tem nada a ver, principalmente se levarmos conta que os dados da observação dependem inteiramente do observador.
Para respondermos a essa objeção, observaremos que os dados da observação — como revelamos já no primeiro parágrafo — não são, rigorosamente, objetos de conhecimento, mas instrumentos do conhecer, e que os instrumentos são qualquer coisa de subjetivo. A subjetividade dos instrumentos não pode ser atribuída, senão por um grave equívoco, aos objetos, mesmo que esses instrumentos, ou seja os dados da observação, tenham por função nos aproximar do conhecimento.
Reflitamos, por exemplo, sobre o que ocorre ao curso da execução de urna experiência: se é incontestável que devemos elaborar o programa, estabelecendo os dispositivos conceituais e técnicos para questionar a natureza (dispositivos que podem ser classificados como subjetivos na medida que são construídos por nós), é no entanto verdade que não nos é dado determinar a resposta que a experiência nos fornecerá. Urna coisa é reconhecer a relatividade dessa resposta aos meios de observação; uma outra é afirmar que os dados dessa resposta resultarão exclusivamente da atividade do observador.
Para responder a objeção explicitada pouco acima, outra consideração ainda mais importante se impõe. Trata-se de aceitar que a superioridade duma nova teoria em relação às precedentes não implica sempre, e exclusivamente, que ela consiga ordenar de forma sistemática todos os dados explicados pelas teorias anteriores e qualquer outro dado a mais. Com frequência tal superioridade se revela também na maneira como se articulam os dados examinados pela nova teoria, ou seja, na transformação que ela acrescenta aos aspectos fundamentais de sua interpretação.
Por exemplo, procura-se estabelecer um cotejo critico entre a teoria limitada da relatividade e a teoria precedente de Lorentz. É notório que, a principio, a força esclarecedora da teoria de Einstein realmente não era maior que a de Lorentz. Desse ponto de vista, sua superioridade efetiva não se revelou em sequência como imediata pesquisa científica. Entretanto, comparadas as duas teorias, é possível estabelecer que já em 1905 era nítida a preeminência da concepção de Einstein.
Fato é que, para explicar os novos dados resultantes da observação (por exemplo, a famosa experiência de Michelson), Einstein não recorreu a nenhuma hipótese ad hoc mais ou menos artificial, mas a uma renovação radical de conceitos científicos dos mais profundos tais como espaço e tempo. Ou seja: a superioridade da teoria de Einstein é uma superioridade que surpreende não só pelo aspecto técnico, mas também, pelo aspecto filosófico-epistemologico.
Uma vez estabelecido que o critério de superioridade de uma teoria em relação a outra não se situa no plano da pura subjetividade, é necessário reconhecer, segundo o materialismo dialético, que a dialética histórica da ciência, ou seja a análise do processo efetivo da formação dessas teorias, em seu aperfeiçoamento gradual, nos demonstra de forma incontestável que a ciência progride efetivamente em direção a objetos distintos de nós. O mundo desses objetos constitui — ao lado do sujeito — o segundo grande parágrafo do processo do conhecimento: trata-se de um protagonismo intencionalmente esquecido pela filosofia idealista, que por essa razão não consegue achar a natureza autêntica do conhecimento.
IV Nos primeiros parágrafos, mostramos que um exame escrupuloso e sem preconceitos do processo do conhecimento — considerado em sua concretude — não nos propõe nenhum ponto de origem do conhecimento que possa ser qualificado de absoluto ou de definitivo. Não podem ser nem os dados perceptivos (atômicos), de que falam os fenomenistas, nem a caudal heraclitiana das intuições a que os fenomenólogos aludem.
No terceiro parágrafo, ao contrário, consideramos o desenvolvimento da ciência, procurando demonstrar que a passagem — passível de constatação histórica — de uma teoria a outra, quando esta se mostra superior primeira, não pode ser explicada a menos que se admita a existência de um mundo objetivo irredutível ao sujeito: mundo objetivo que o pesquisador se esforça por encontrar aproximando-se-lhe pouco a pouco, seja recolhendo sempre novos dados empíricos, seja transformando os conceitos fundamentais das teorias.
Reexaminaremos mais adiante este último tema, para ilustrar a posição característica em relação a outras, sustentada pelo materialismo dialético. Resumamos assim essa posição: se é verdade que a ciência progride efetivamente em direção aos objetos, independente de nós, não é menos verdade, por conseguinte, que ela não consegue nunca nos oferecer um conhecimento absoluto. Ou seja, trata-se de uma posição que nitidamente nega o caráter absoluto dos resultados dos processos do conhecimento, assim como nega os presumíveis pontos de partida de tais processos.
O método mais adequado para ilustrar essa posição parece ser o seguinte: submeter a uma análise atenta os aspectos essenciais do materialismo mecanicista que, justamente por serem antitéticos aos do materialismo dialético, esclarecem a significação autêntica deste. Disso ressalta evidente e clara a singular analogia (à qual já nos referimos no primeiro parágrafo) existente entre o fenomenismo e o materialismo mecanicista, apesar de suas posições aparentemente divergentes.
É notório que os grandes pensadores do século XVII, a quem devemos o surgimento da ciência moderna, anunciaram abertamente a convicção de que o homem estaria em condições de atingir um conhecimento completo — intensivamente semelhante ao conhecimento divino, afirmou Galileu –, pelo menos nos setores limitados ao mundo. Ora, a primeira consequência inaceitável dessa tese é a seguinte: o único tipo de ampliação do nosso conhecimento deveria se dar por acrescentamento, ao setor já conhecido do inundo, de outros setores conhecidos de uma maneira tão completa quanto a daqueles. Mas é correto reduzir o processo de conhecimento a uma simples adição de verdades? Afirmamos que não: o simples exame da realidade concreta dos processos do conhecimento — em particular o progresso da ciência — mostra-se sem dúvida alguma muito mais rico e mais articulado.
Isso posto, parece oportuno examinar quais as motivações apresentadas pelos pensadores do século XVII para justificar a tese anteriormente definida. Será fácil demonstrar, através de uma análise minuciosa das obras maiores da época, que, para justificarem a tese em questão, eles apelaram — conscientemente ou não — para uma hipótese metafísica quanto à estrutura do mundo : ou seja, para a hipótese de que ele seja constituído de elementos últimos — por exemplo, átomos — tendo propriedades primeiras (comparadas em geral como propriedades da geometria e da mecânica) e que tudo o que acontece no mundo é explicável a partir de tais elementos últimos e de suas propriedades autênticas.
Que uma hipótese metafísica desse jaez deve levar à interpretação da ciência apresentada acima, é evidente: admitindo que um processo de conhecimento nos leva a encontrar os elementos últimos e as suas propriedades, os resultados de tal processo não podem deixar de ser uma verdade absoluta (e aqueles filósofos estavam convencidos de que os processos científicos, mesmo que limitados a setores circunscritos da realidade, apoiariam a tese em questão).
Dúvidas certamente poderão surgir — como se pensava — sobre pontos particulares de teorias construídas para explicar tal ou tal setor da experiência ou, principalmente, para fazer derivar propriedades secundárias (sons, cores etc.) das propriedades primeiras; mas tais dúvidas não estarão jamais em condições de comprometer a interpretação da verdadeira missão da ciência.
A história da ciência nos ensina que a concepção aqui exposta — que é o fulcro do mecanicismo — continua a ser apresentada, dois séculos após, por físicos dos mais importantes, apesar da variedade de teorias elaboradas para explicar os dados fornecidos pouco a pouco pelas experiências. Existem naturalmente profundas divergências quanto à natureza dos elementos últimos do real, assim como quanto às propriedades qualificadas de primeiras permanece inalterada, no entanto, a ideia de cientificidade, ligada justamente — como já expusemos — à hipótese metafisica da existência de tais elementos e de tais propriedades.
É oportuno frisar que essa hipótese se revelou extremamente útil. Especialmente no início da revolução científica ela conseguiu infundir nos pesquisadores daquela época uma forte confiança no seu trabalho apesar do aspecto muito pouco convincente dos resultados penosamente conseguidos. Todavia, o materialismo dialético mostra que, ao lado desse efeito indubitavelmente positivo, a hipótese em questão tinha outro efeito perigosamente negativo: ela revelava de fato nos elementos últimos do real — e nas suas qualidades primeiras — uma barreira absoluta que a pesquisa cientifica nunca conseguiu vencer.
Suponhamos, por exemplo, que nós aceitemos a tese segundo a qual os elementos últimos da realidade são constituídos de partículas (ou átomos). Que significação teria isso no sentido de fazer a nossa pesquisa avançar? Considerando que o próprio conceito de átomos exclui qualquer possibilidade de uma pesquisa de sua natureza profunda.
Porém no fim do século XIX e no início do atual, o desenvolvimento da ciência demonstrou, com base em experiências incontestáveis, que hipotéticos átomos não correspondem bem à semântica do termo (átomo = sem divisão), pois revelaram-se como sistemas complexos de elementos ainda menores (ou seja, de menor massa): elétrons, prótons etc. Está claro que essa descoberta inflige um rude golpe ao mecanicismo clássico e marca o início de uma nova fase da física.
Observando bem, essa mudança não implicou ainda no abandono definitivo da concepção mecanicista, mas somente em sua transformação radical. Foi possível ainda salvar o núcleo essencial, atribuindo às novas e ainda menores partículas do átomo a função de elementos últimos da realidade que se atribuíam antes aos átomos.
Quem sentiu que a revolução era bem mais profunda foi Lênin, o qual, sem ser um cientista, descobriu — antes e melhor que muitos dos sábios de sua época — a significação da reviravolta ocorrida na física. É fato bem conhecido: ele formulou a interpretação dessa virada com a famosa tese de o elétron ser inesgotável., tese que evidentemente não pode ser tomada ao pé da letra, mas que enuncia numa forma imaginada a necessidade de abandonar a ideia mesma de elemento último da realidade.
Não nos compete expor as numerosas consequências que puderam ser deduzidas no plano cientifico, pela revolução de que falamos. Entretanto parece-nos, indispensável sublinhar algumas consequências que se podem tirar — e realmente o foram — no plano filosófico. Essencialmente, duas consequências:
1 – a necessidade de abandonar a ideia de que existe uma barreira intransponível para a pesquisa científica ; e
2 – a necessidade de abandonar a ideia de que existe um fundamento absoluto (inabalável) dos conhecimentos físicos.
Essa segunda ideia foi pelos ares já nos últimos dez anos do século XIX, — após o trabalho critico desenvolvido por filósofos, lógicos, matemáticos, epistemólogos etc., numa verdadeira guinada no campo da física, dando-lhe sua plena e inteira validade.
Todavia, nessa altura emergiu a seguinte questão:
eliminada a convicção, que remonta aos criadores da ciência do século XVII, de que o conhecimento científico está em condições de alcançar a verdade absoluta, qual o valor autêntico que se lhe pode atribuir ?
Este problema foi claramente enunciado por Engels: o de conseguir conciliar o caráter não absoluto com a validade objetiva de nosso conhecimento. Tendo em conta o que foi dito antes com respeito à necessidade de abandonar a noção mesma de elemento último, podemos reformulá-lo assim:
Se retiramos à ciência o ubi consistam, fundamento constitui do pelo conhecimento dos elementos últimos da realidade, qual outro fundamento lhe podemos dar ?
É possível se surpreender face a tal situação, havendo acreditado em diferentes concepções filosóficas, que reduziram as teorias científicas a simples construções convencionais, construções às quais não é justo atribuir nenhum valor, a não ser que tenham resultado num sucesso prático efetivo, e dentro dos limites de tal sucesso. Mas sabe-se que, do convencionalismo ao subjetivismo, a passagem é muito curta, e em verdade ela foi vencida por vários epistemólogos, bem como por cientistas no inicio do século.
Como observa Lênin com justeza, esses cientistas venceram essa passagem como filósofos, e não como cientistas. De fato, o cientista militante, quando faz uma pesquisa séria, está sempre convencido de se encontrar face a uma realidade independente de si: realidade a descobrir, a estudar sob aspectos sempre novos, a ser descrita em termos cada vez mais exatos. Essa convicção não surpreende quando se considera que a experiência vivida por ele como pesquisador é principalmente a experiência da dinâmica da ciência, e, por outro lado, lembramos (reportando-nos ao que explanamos no parágrafo terceiro) que compete justamente à reflexão crítica sobre essa dinâmica fornecer-nos argumentos mais válidos em favor de uma resposta realista ao problema do conhecimento.
V Propomo-nos agora a examinar um pouco mais miudamente os processos do conhecimento, ficando bem entendido que, para compreender o valor autêntico e determinar o grau de objetividade alcançado por esses processos, é necessário estudá-los em sua realidade histórica, sem apelar para um caráter ilusório absoluto que — como dissemos nos parágrafos precedentes — alguns pretenderam perceber na sua origem e nos seus resultados. Tratar-se-á, em outros termos, de precisar o tipo de contato por etapas ou por aproximações sucessivas que, segundo o materialismo dialético, se realizará no desenvolvimento do conhecimento (principalmente no desenvolvimento cientifico).
Como já vimos, a hipótese metafísica, segundo a qual a realidade seria constituída de elementos últimos, conduzir-nos-ia inevitavelmente a admitir a possibilidade de conhecimentos absolutos (um conhecimento que busca captar tais conhecimentos torna-se ele mesmo evidentemente absoluto). Vimos depois que um exame minucioso dos processos de conhecimento, considerados em sua concretude histórica, nos leva a abandonar essa consequência; teremos sem dúvida alguma de renunciar também à própria hipótese metafísica (hipótese que até o início de nosso século se revelou inteiramente incompatível com os desenvolvimentos mais modernos da física). Mas essa renúncia implica em aceitar a tese segundo a qual a realidade deve ser considerada como última e definitiva. Ora, é precisamente nessa tese que o materialismo dialético se fundamenta para justificar a sua tese do conhecimento como aprofundamento.
Se concebemos de fato a realidade como sendo constituída de muitos níveis, compreendemos prontamente que um certo sistema de conhecimentos surge ligado a um desses níveis mas não a todos os níveis sucessivos; sentir-nos-emos então autorizados a afirmar que tal sistema possui um indubitável valor objetivo no qual se consegue efetivamente captar o nível da realidade, mas não lhe atribuiremos um valor absoluto, prevendo que ele será enriquecido e corrigido por outro sistema de conhecimentos capaz de captar níveis mais profundos.
Nessa perspectiva, o tema conhecer significa essencialmente progredir de um conhecimento a outro, ou seja, penetrar melhor a realidade.
Quando falamos de uma verdade cada vez mais próxima da realidade, não estamos querendo afirmar que exista uma verdade absoluta à qual deveríamos chegar pouco a pouco; pelo contrário queremos afirmar a existência de uma realidade inesgotável e garantir que nossos conhecimentos sucessivos, níveis conquistados cada vez mais profundos que conquistamos, estejam em condições, graças a seu próprio desenvolvimento, de fornecer-nos imagens progressivamente mais completas e satisfatórias.
Lembrando-nos de que, para o materialismo dialético, a realidade mesma tem um perpétuo futuro, será fácil dar-nos conta de que, segundo essa doutrina, só uma concepção dinâmica do conhecer (como, justamente, foi aqui apresentada) está em condições de nos explicar porque os nossos processos de conhecimento conseguem se adequar a essa realidade. Quem poderá pretender, de fato, captá-la com categorias imóveis, se estão em perpetuo movimento?
É claro que renunciar à ideia de poder captar o real em sua totalidade não equivale a admitir — estribando-se num certo kantismo de tipo agnóstico, defendido no século XIX por vários cientistas — que exista, para além dos fenômenos, uma coisa em si que se pode por principio conhecer, e que não implica em nenhum caso negar à ciência a possibilidade de estabelecer afirmações válidas sobre as estruturas efetivas do real. Abandonar a pretensão de captar por um ato intuitivo a totalidade dessas estruturas, não exclui de forma alguma que se possa captá-las em número crescente, e dentre elas, justamente algumas mais significativas.
Uma coisa é considerar que a cada estagio do processo do conhecimento transpareçam limites coibindo todo caráter exaustivo aos conhecimentos considerados; outra, completamente diferente, é afirmar que esse processo se encontre diante de uma barreira intransponível. Os limites sempre presentes da pesquisa científica, não têm o caráter de uma ruptura metafisica entre o mundo dos fenômenos e o mundo real, mas são limites temporários entre as etapas sucessivas de uma série ilimitada de conhecimentos, todos de um mesmo tipo se bem que aproximados gradativamente.
Não há e não pode haver — escreveu Lênin — diferença de principio entre o fenômeno e a coisa em si. A diferença e simplesmente entre o que é conhecido e o que ainda não é, sendo que todas as fantasias filosóficas sobre os limites específicos existentes entre um e outro, sobre o fato de que a coisa em si se encontraria para além dos fenômenos, não passam de palavras vazias, caprichos e invencionices.
Para completarmos a nossa análise dos processos do conhecimento em sua realidade histórica, devemos finalmente nos questionar em que sentido podem ser compreendidas as transformações às quais são submetidas as teorias cientificas para permitir uma aproximação cada vez melhor da realidade. De acordo com o que afirmamos no primeiro parágrafo, por conta da importância dos dados da observação, respondemos que tais transformações devem, antes de mais nada, ser entendidas como um enriquecimento desses dados, surgidos em decorrência do emprego de novos instrumentos de observação, mais possantes e mais sutis. Mas isso não basta as transformações às quais nós devemos submeter as teorias cientificas para torná-las mais próximas da realidade, concernem também ao seu aparelho conceptual. Trata-se frequentemente de transformações limitadas ao circulo de qualquer postulado ou de qualquer modelo explicativo; mas em tais casos, elas chegam a comprometer as teorias fundamentais do conhecer a si mesmas.
O que o materialismo dialético sustenta, é que os aprofundamentos mais significativos das teorias cientificas são ligados justamente a este último tipo de transformações: transformações que a metafísica rejeita dogmaticamente, mas que, pelo contrário, é indispensável aceitar para não deixar que se perca o sentido efetivo das revoluções cientificas. Sem duvida, não é fácil admitir que uma categoria (como o espaço, o tempo, a causalidade etc.) possa ser usada num sentido diferente do sentido tradicional. Mas querer torná-la qualquer coisa algo de absoluto, de imutável, de estático é tão injustificado como atribuir um caráter de absolutismo meta-histórico aos dados da observação ou às verdades cientificas.
Se nos propomos ser coerentemente antidogmáticos, nós devemos ter a coragem de rejeitar o definitivo no plano das categorias, vendo nelas algo de flexível, de mutável, de essencialmente dinâmico. É a teoria leninista da flexibilidade das teorias, complementar da do aprofundamento. Como o demonstrou Giorello, ela constitui uma das teses mais importantes da gnoseologia de Lênin: e ainda hoje ela aparece corno um dos instrumentos-chaves para compreender a significação autêntica da dialética complexa da ciência contemporânea.
VI Neste ponto da discussão, aparece uma questão de grande interesse: de que modo a evolução desenvolvimento do conhecimento — de um nível dado a outro mais profundo — pode ser qualificado de racional ou ressaltar um tipo de racionalidade?
Como observa Omelyánovski em trabalho apresentado na II Conferência sobre problemas filosóficos das ciências da Natureza, realizado em Moscou em 1970. Einstein sustentava que os conceitos de base e os princípios fundamentais das teorias não são deduzidos (dados empíricos) de forma lógica e, nesse sentido, são criações livres do espírito humano, ele que vivia particularmente graças aos conceitos e aos princípios que fazem passar a ciência de um nível dado, a outro mais profundo.
Podemos declarar-nos inteiramente de acordo com Einstein sobre o caráter irredutível dos dados empíricos, reconhecido hoje unanimemente pelo conjunto dos que estudam esses problemas. Mas o ponto mais importante da tese de Einstein é outro: é a afirmação de que, não podendo ser dedutíveis de dados empíricos, os conceitos deverão ser livres criações do espírito humano. Para sublinhar o caráter livre dessas criações, outros eminentes físicos têm afirmado tratar-se no caso deles, da imaginação mais audaciosa, imaginação muito mais fecunda do que simplesmente recorrer a ideias malucas ou sem sentido.
Essas palavras têm sem dúvida um fundo de verdade, se as interpretamos simplesmente como afirmações enérgicas da necessidade de que o cientista — quando constata os limites de uma etapa do conhecer, ou seja, de teorias construídas com as categorias características dessa etapa — saiba se libertar, com o antidogmatismo coerente de que falamos no último parágrafo, da pesada carga da tradição científica e filosófica, introduzindo conceitos e princípios que se afastam radicalmente dos tidos como rígidos e imutáveis pelas gerações precedentes.
O que, no entanto, nos deixa perplexo é o outro aspecto, num sentido mais geral, que parece presente nas palavras citadas acima. Referimo-nos à afirmação de que o desenvolvimento em profundidade de nossos conhecimentos, em particular dos conhecimentos científicos, sendo fruto da livre criação, seria um processo que escaparia, por principio, a qualquer enquadramento racional.
Se levarmos em conta o fato de que os epistemólogos mais modernos, que se dedicam à passagem de uma teoria a outra na história da ciência — por exemplo, Popper, que tem se ocupado várias vezes expressamente com a criação de uma nova teoria quando as precedentes foram declaradas falsas –, estão de acordo no essencial com a afirmação de Einstein citada um pouco antes, devemos concluir que tal passagem escapa efetivamente de todo tipo de racionalidade. Ora, o materialismo dialético se recusa a fazer tão danosa concessão ao irracionalismo. Longe disso afirma que, se é verdade que a passagem em questão escapa à lógica formal com os seus aparelhos metodológicos, ela não escapa, porém, à lógica dialética (Omelyáriovski).
Não negamos que o recurso a esse tipo novo de lógica possa suscitar muitas dúvidas, mesmo naqueles que, com Engels, aceitaram o caráter dialético — e, assim, dinâmico — da realidade e do conhecimento. A lógica dialética, invocada pelo materialismo dialético para evitar danosas concessões ao nacionalismo, na realidade parece comportar riscos tão grandes quanto os oferecidos pelas concessões contra as quais precatar-nos. Basta pensar no perigo de cair na lógica hegeliana, tristemente célebre por suas três fórmulas abstratas e errôneas. Entretanto o fato é que esse perigo pode ser evitado, quando nos limitamos a interpretar a lógica dialética como uma tentativa — a única conhecida até agora — de captar uma forma de racionalidade no devir, mesmo quando este se afigura irredutível a um movimento mecânico puro e simples.
É fato conhecido: uma tentativa desse gênero consiste essencialmente na atribuição de uma função nova e muito particular à contradição existente os diversos momentos do devir, no fato de considerá-la como uma ligação que, de dois momentos, por meio de suas contradições, faz surgir um novo momento, o qual, em se situando num plano mais elevado, elimina os aspectos contraditórios dos dois momentos precedentes. A racionalidade posta em evidência, em última instância, na unidade estabelecida entre dois aspectos que pareciam incompatíveis.
Por maiores que sejam as dúvidas suscitadas em nós pela lógica dialética, devemos sinceramente reconhecer que ela parece se adaptar admiravelmente àquilo que é possível constatar concretamente nas fases mais delicadas do desenvolvimento do conhecimento científico. Pensemos, por exemplo, na física dos primeiros anos de nosso século, quando se viu face a duas teorias da luz — a ondulatória e a corpuscular — , tanto uma como a outra demonstradas por experiências inatacáveis. Ninguém pode contestar o surgimento naquela situação de um caráter inteiramente paradoxal; como ninguém poderá contestar que foi justamente a ampliação desse paradoxo — fenômenos luminosos nos raios materiais — por exemplo, os feixes de elétrons — que fizeram surgir a mecânica quântica, resolvendo a contradição, em modificando radicalmente as teorias antigas — de objeto físico, de causalidade etc. — e abrindo assim o caminho para um aprofundamento muito importante de nossos conhecimentos científicos. Quem poderá negar que nesse caso e em muitos outros, foi justamente o paradoxo descoberto dentro de uma disciplina (ou seja, a contradição surgida entre duas teorias igualmente dignas de aceitação) que permitiu avançar até um novo grau de aprofundamento? Omelyánovski chega a sustentar que é quando um paradoxo põe os pesquisadores em oposição suficientemente radical às ideias dominantes da época que ele se revela verdadeiramente em condições de lhes indicar de que maneira tais ideias poderão ser modificadas.
Se as coisas se passam efetivamente assim — e a história da ciência parece no-lo confirmar por muitos exemplos –, a introdução de novos conceitos e princípios de base não se nos apresenta mais como o produto de uma livre criação do espírito ou de uma imaginação maluca demais, mas como o efeito de uma autêntica lógica interna ao desenvolvimento da ciência. O cientista militante, que se deixa guiar unicamente pela introspecção, pode enganar-se quanto à possibilidade de por acaso chegar a certas inovações; mas o filósofo, que se esforça por compreender globalmente o processo da pesquisa, capta as motivações mais profundas, inatingíveis através de um simples exame de ordem psicológica.
Mais uma vez, compete ao estudo daquilo que efetivamente surge no desenvolvimento concreto da ciência de servir de guia para o materialismo dialético. Mas trata-se de um estudo conduzido sem limitações preconcebidas e, em particular, sem a presunção dogmática de que a racionalidade só se exprime na lógica formal. Os adversários de boa fé do materialismo dialético deveriam meditar sobre o fato de que, se a utilização da lógica dialética está em condições de revelar urna ligação racional nos casos em que as considerações adialécticas nada veem senão o caos parece justo renunciar a priori a esse tipo de lógica.
VII Até aqui só aludimos à categoria da totalidade, que detém um lugar de primeiro plano na concepção usual da dialética. É conveniente, portanto, submetê-la a um exame mais atento com uma referência particular à maneira pela qual o materialismo dialético trata do problema geral do conhecimento científico e dos problemas específicos que lhe são conexos. Por outro lado, com referência à aplicação de uma tal categoria à concepção do mundo, limitamo-nos a discuti-lo brevemente no primeiro parágrafo. Considerar o vasto circulo de processos do conhecimento em sua totalidade, significa sublinhar que eles constituem um continuum no qual não encontramos separações estanques entre um processo e outro, mesmo quando conservam as suas diferenças; por exemplo, não se encontra a separação apriorística entre categorial e pré-categorial, que já examinamos no segundo parágrafo, ao criticar a fenomenologia.
Desse continuum não estão excluídas, dado o seu caráter dialético, as modificações, mesmo rápidas, pelas quais se realiza o processo de aprofundamento dos conhecimentos científicos, definido nas páginas precedentes. O fato é que a conquista de um conhecimento mais profundo decorre justamente — como procuramos explicar anteriormente — da radicalização dos paradoxos surgidos nos níveis precedentes da evolução do conhecimento; radicalização que constitui uma ligação efetiva, autêntica, entre o antigo e o novo, e não uma separação estática entre eles. Ademais sabe-se que, segundo a teoria do aprofundamento, um conhecimento superior não anula os precedentes, mas os engloba, permitindo-nos descobrir por que eram válidos, dentro de certos limites, mas não além deles.
A aplicação da categoria da totalidade aos processos do conhecimento nos mostra que a garantia do conhecer deve ser buscada justamente no quadro global (em perpétuo desenvolvimento) desses processos, ou seja, no próprio tipo de dinâmica que os caracteriza, sem privilegiar uni em relação aos outros. Para ilustrarmos os equívocos decorrentes da recusa, por parte de certos filósofos desse gênero de garantia global ou dialética, julgamos oportuno considerar por uni instante as consequências extremamente graves que se podem deduzir, num caso particularmente significativo, duma tal recusa e da atribuição de uma validade efetiva unicamente às categorias primordiais ou intuições do saber comum, e não às mais acuradas e mais amplas, elaboradas a partir destas, por meio de pesquisa científica. O exemplo que pretendemos examinar diz respeito à noção de causa.
Quem tem o hábito de privilegiar os níveis mais baixos do conhecimento considera evidente que a verdadeira significação da causa é aquela que encontramos na vida cotidiana significação que, se aceita, virá travestida e deformada, seja da noção mecanicista de causa à qual recorreu durante séculos a física clássica, seja ainda, em grande medida, da noção da causalidade probabilística introduzida pela mecânica quântica, seja, enfim, da noção de interação comumente utilizada nos mais recentes desenvolvimentos da teoria dos campos — noção estritamente conexa à de totalidade –. Para esclarecermos a atitude nitidamente antidialética de quem assim pensa, tentemos imaginar um dialogo entre ele e um físico moderno, focalizado no problema da causalidade.
Suponhamos que o físico em questão tenha explicado ao nosso sujeito os métodos pelos quais conseguiu calcular com muita precisão a probabilidade de certos acontecimentos subatômicos: por exemplo, a emissão de partículas pelos átomos de uma substância radioativa. Depois de ter seguido atentamente a exposição de seu interlocutor, o antidialético fará a seguinte pergunta: Qual é a verdadeira razão pela qual, entre dois acontecimentos que, segundo os cálculos, têm a mesma probabilidade, um se verificará num tempo t e o outro no tempo T, muito diferente de t ? Corno o físico não lhe vai responder, ele concluirá Tua impossibilidade de responder à minha indagação demonstra que a mecânica quântica é incapaz de captar a autêntica realidade que se esconde sob a aparência probabilística do fenômeno.
Sem negarmos que esta conclusão seja o esboço de uma exigência justa — ou seja, a de buscar teorias mais profundas que a da mecânica quântica –, parece-nos claro que demonstra muito bem os limites metafísicos da antidialética, decorrentes justamente de sua recusa de aceitar, com suas consequências, a tese da flexibilidade das teorias, bem como da pretensão de poder dar uma significação ao conceito de causa tomado isoladamente, fora do contexto histórico no qual é utilizada.
O que lhe oporá o materialista dialético? Opor-lhe-á que a noção comum de causa não reflete total e diretamente uma ligação existente no mundo objetivo : de fato, como as noções mais complexas de causa, elaboradas gradualmente pela ciência, ela não possui, por si mesma, nenhuma significação imediata evidente. Sua significação deriva inteiramente do fato de que ela está inserida numa teoria bem determinada, da qual parece independente por estarmos habituados a enfrentar tal contexto histórico inconscientemente. Mais precisamente ela se insere num sistema centrado na ideia de geração, que não goza de nenhum direito a priori de ser privilegiada em relação a outras ideias.
C. B. Bazenov escreveu a esse respeito : Não há nenhuma razão para considerar a estrutura intuitiva da geração como urna parte fundamental da realidade por ela mesma: é preciso, pelo contrário, tomá-la pelo que ela é efetivamente: uma descrição aproximadamente verdadeira dessa realidade. Sem dúvida alguma, a categoria de causalidade subentende a presença de um mecanismo interno determinado de ligação entre estados e sua simples sucessão. Mas, se nas primeiras etapas do conhecimento cientifico um mecanismo foi imaginado justamente sob a forma de uma estrutura intuitiva de geração, já hoje não é assim; não há nenhuma razão para confundir esse mecanismo interno com a estrutura constitutiva do processo de geração. Fazer dessa estrutura uma característica integrante da causalidade é um ato simplesmente dogmático. É fruto da ação de privilegiar o saber primitivo e a incompreensão da teoria do aprofundamento por aproximações sucessivas.
VIII Neste ponto da discussão, surge urna questão de certa forma desconcertante: se a significação de termos corno causa é sujeita a variação de uma etapa ou de outra de nosso conhecimento, o que será da tese da objetividade das leis da natureza (leis em cuja formulação se emprega muito frequentemente a noção de causa?
Para dar urna resposta, é necessário refletir com uma certa atenção sobre a noção mesma de objetividade das leis naturais. Se no materialismo mecanicista essa noção foi utilizada para indicar que as leis naturais conseguiriam formular com urna certa exatidão absoluta uma parte fundamental da realidade — compreendida como um sistema rígido de seres, no qual não seriam possíveis outras transformações a não ser a resultante de movimentos mecânicos –, no materialismo dialético, ao contrário, ela possui uma significação bem diferente: na realidade ela serve para indicar que as leis da natureza constituem descrições aproximadamente verdadeiras da realidade – compreendida como um sistema não mais rígido, mas essencialmente fluido –, descrições cujo grau de aproximação varia de urna fase a outra da evolução de nossos conhecimentos. Nessa perspectiva, objetividade significa somente capacidade de refletir qualquer estrutura do real, não de esvaziá-la totalmente; indica a existência de uma relação efetiva — não ilusória — com o mundo objetivo, mas uma relação que não é absoluta, mas sim passível de modificações constantes, de integrações, de aprofundamentos.
Vários metodólogos modernos, de orientação neopositivista, exprimem sua recusa à antiga interpretação mecanicista das leis da natureza, afirmando que elas não têm valor de hipóteses. Trata-se de uma tese que, examinada sem preconceitos, não parece muito diferente — em substância — da dos materialistas dialéticos (centrada, como já vimos, numa significação nova da noção de objetividade). É preciso, no entanto, reconhecer que a dos materialistas dialéticos parece preferível sob três pontos de vista:
1 – porque essa tese reconhece a legitimidade das aspirações, presentes em todos os cientistas militantes, de buscarem uma forma de objetividade
2 – porque ela é compatível com a atribuição de um grau, mesmo limitado, de objetividade dos próprios conhecimentos pré-científicos, na medida em que eles se revelam adequados para formular, por intermédio de suas categorias rudimentares e pouco precisas, as estruturas encontradas nos primeiros (menos profundos) níveis da realidade; e
3 – porque ela consegue dar um sentido claro ao progresso cientifico, entendido como a passagem de um conhecimento, adequado a um certo nível da realidade a outros conhecimentos adequados a níveis mais profundos.
O verbo refletir foi aqui usado no sentido de reflexão ativa. Para esclarecer os nossos argumentos, pode ser útil lembrar uma assertiva de Bazenov sobre a relação entre o inundo objetivo e as categorias a que recorremos para dar uma imagem cada vez mais aproximativa: Essas categorias — escreve ele — são um reflexo da realidade, mas a realidade em si não é uma corporificação das categorias de que dispomos.
O significado dessas palavras é evidente: qualquer que seja o estágio de nosso conhecimento, dispomos de categorias bem determinadas para formular uma imagem do mundo — categorias que se podem qualificar de reflexo da realidade, na medida em que elas estão próximas da imagem em questão — ; errado seria sustentar que a realidade é uma corporificação dessas categorias, considerando sempre possível poder dar uma imagem cada vez próxima, recorrendo a categorias ulteriores mais precisas e mais refinadas. Ou seja: as categorias são bem objetivas, mas somente de uma objetividade relativa, não absoluta.
Para explicar o significado do conceito imagem do mundo, alguém já propôs relacioná-lo à noção — tirada da lógica moderna — de modelo, afirmando que o mundo pode ser refletido por várias imagens, assim como as teorias matemáticas não categóricas podem ser representadas por vários modelos. Todavia, convém salientar que essa analogia negligencia a tese mais característica do materialismo dialético, que fala também da multiplicidade de imagens, mas com um sentido totalmente diferente: considera de fato que a existência de várias imagens em suas isomorfias é uma questão de pouco interesse, na medida em que o importante é reconhecer a existência de uma sucessão de imagens — não isomorfas — próximas da realidade, ou seja, construídas por meio de categorias progressivamente mais refinadas, e por isso mesmo mais aptas a descrever, com crescente profundidade, as estruturas do real.
Os materialistas dialéticos afirmam, às vezes, a situação, delineada por Bazenov, fazendo, límpida, embora complexa distinção entre “mundo físico” e “mundo objetivo”. O inundo físico é — para quem aceita essa forma de se expressar — a representação do mundo objetivo elaborado pouco a pouco pela física — no sentido mais amplo — representação que consiste num sistema de conceitos e proposições, logicamente ligados entre si. E é evidente que em tal sistema, toda lei terá um lugar bem determinado, não mutável sem a modificação do sistema inteiro, se bem que será justo, desse ponto de vista, de atribuir-lhe uma validade absoluta.
Entretanto, examinando o desenvolvimento histórico das pesquisas científicas, verificamos que a física muitas vezes revolucionou seu próprio mundo, como, por exemplo, quando a física não clássica foi substituída pela física clássica. Não nos surpreenderá que, em casos semelhantes, ela mude mesmo as leis da natureza, para compatibilizá-las com o novo sistema de conceitos e de proposições que vinha elaborando.
O inundo objetivo é, pelo contrário, a realidade que nos esforçamos por captar, construindo mundos físicos mais próximos dela. Com relação ao mundo objetivo, não faz sentido falar de leis imutáveis, porque elas mudam com a passagem de um mundo físico a outro.
A objetividade das leis não fica de qualquer modo perturbada pelo fato de poderem se transformar. Na realidade ela não pode ser comparada a uma pretensa imutabilidade, ou ter um caráter absoluto. A objetividade reside unicamente no fato de que os sistemas de conceitos ou de proposições, nos quais as leis em questão estão inseridas, não são simplesmente convencionais mas são autênticas aproximações cada vez mais profundas do mundo objetivo.
IX Desenvolvidos estes esclarecimentos, agora podemos finalmente empenhar-nos, com muita prudência, no difícil debate sobre as relações teoria-prática, limitando-nos a examinar um aspecto muito atual: será possível justificar racional e praticamente o amplo e sistemático emprego que a tecnologia faz das descobertas da pesquisa científica ?
Não é difícil evidenciar tratar-se de um problema que suscita muita dúvida e perplexidade. Uma pergunta surge espontaneamente: se as leis científicas não são absolutas como o admitem tanto os neopositivistas como os materialistas dialéticos, que valor se pode atribuir às indicações que nos são fornecidas acerca do desenvolvimento efetivo dos fenômenos? Se, empregando a inquietante expressão de Bazenov, elas não são corporificadas pela realidade, quem pode recorrer a elas justamente para agir sobre essa realidade?
Fazer ver que questões como essa são puramente abstratas e capciosas, tem pouco valor; podemos tranquilamente compreendê-lo referindo-nos à medicina como biologia aplicada. Nesse caso, na realidade, essas questões transformam-se imediatamente em interrogações dramáticas: quem nos assegura que os medicamentos produzidos hoje, com base nas descobertas mais modernas da química e da biologia, serão verdadeiramente eficazes? Quem nos garante que, à luz dos conhecimentos científicos que abordaremos mais tarde, eles não se revelarão inúteis ou simplesmente nocivos?
Do ponto de vista do materialismo dialético, as dúvidas expressas por tais questões, são extremamente instintivas, porque elas esclarecem quais erros podemos identificar em razão de conceder um caráter absoluto à objetividade, ou seja, da incompreensão fundamental da tese leninista segundo a qual admitir a presença de um elemento ativo do nosso conhecimento (teoria do reflexo ativo) não significa negar a sua capacidade de se pôr em contato — mesmo incompleto — com o mundo objetivo.
Já nos esforçamos várias vezes, em páginas precedentes, por refutar, no plano teórico, a identificação da objetividade com o caráter absoluto. Propomo-nos a mostrar agora como são insustentáveis as consequências que podem ser tiradas (e que, realmente o são por diferentes autores) no plano prático. É possível resumi-las assim: quando queremos agir por bem sobre a realidade, devemos — senão em palavras, pelo menos por atos — abstrair o máximo possível daquilo que a ciência pretenderia nos ensinar a respeito.
Examinemos então as bases possíveis desta conclusão. Para justificá-la de alguma forma, só vemos dois caminhos: ou negar qualquer valor a um conhecimento somente parcial do mundo objetivo, ou sustentar que o resultado de nossos atos sobre o mundo não depende de nosso conhecimento dele mesmo, mas exclusivamente da paixão com a qual nos apressamos a executá-los.
Negar qualquer valor a um conhecimento que se declara simplesmente aproximativo do mundo objetivo conduz, no plano da pratica, à tese seguinte: a verdadeira racionalidade deveria consistir na interdição de qualquer ato enquanto não se esteja de posse de um conhecimento completo e absoluto do mundo sobre o qual se pretende agir. Ou seja: deveríamos considerar como racional o fato de se nos abstermos de agir hoje a fim de podermos agir melhor amanhã.
Como todos percebem, trata-se da bem conhecida tese, característica de todas as formas de atentismo. Os perigos dessa atitude são largamente conhecidos, sendo inútil aqui enumerá-los. O ponto que, no entanto, é menos conhecido, e no qual vale a pena fixar nossa atenção. é que o atentismo decorre justamente da negação da dialética, em nome da exigência de um saber absoluto — não aproximativo e sem estar em contínua mudança –. Trata-se de uma exigência aparentemente nobre e sedutora: mas o fato de engendrar o atentismo esconde a sua verdadeira natureza. Ela não passa de uma miragem uma miragem que nos desvia do presente, fazendo-nos esquecer, por meio de fantasmas, as nossas responsabilidades cotidianas de homens.
A face reversa do supracitado dilema — ou seja, a afirmação de que o resultado de nossos atos efetivos e concretos sobre o mundo não dependeria daquilo que conhecemos dele, mas somente da paixão com a qual o consideramos — nos parece ter hoje um considerável numero de defensores. Trata-se de uma atitude, frequentemente adotada de boa fé, que se exprime na seguinte tese: a condição essencial para conseguir transformar o mundo é efetivamente querer transformá-lo, ou seja, ter bem claro na mente o objetivo que se pretende perseguir com essa transformação. Não há duvida de que tal atitude pode ensejar atos heroicos, incontestavelmente meritórios do ponto de vista pessoal: não há dúvida igualmente, como a história nos ensina, de que ela sempre foi, ou quase sempre foi, essencialmente estéril.
Para realmente conseguir transformar o mundo, não bastam as boas intenções é necessário saber escolher os meios que, numa situação dada, serão os mais adequados para atingir o objetivo fixado. A pretensão de poder prescindir disso desemboca inevitavelmente no subjetivismo, no voluntarismo e, às vezes, no misticismo.
Vale a pena observar que essa atitude decorre também, em última instância, exatamente como o atentismo, de unia incompreensão fundamental da dialética. Para se convencer disso, é suficiente considerar a base em que ela se apoia: é a afirmação de que os meios de nossos conhecimentos (científicos ou não) não seriam de nenhuma utilidade real para a ação, por não oferecerem uma garantia absoluta de sucesso. A esse argumento, o materialista dialético poderá comodamente responder: o erro que se esconde na raiz dessa presunção é o de confundir a racionalidade com o caráter absoluto, negando dogmaticamente todo valor, por um lado, dos conhecimentos somente aproximativos, e por outro, dos instrumentos de ação que não permitem uma garantia absoluta.
Além dos atentistas e dos voluntaristas, mais ou menos conscientes, existe ainda uma terceira categoria de pessoas que sustentam, por motivos mais aceitáveis, que o apelo aos conhecimentos científicos não representa algo de essencial para a ação. Os conhecimentos científicos — dizem — podem certamente ser úteis para tornar as nossas ações mais eficientes, mas não lhes conseguem impor um sentido. Esse sentido não pode provir senão de uma visão global do mundo, que, só ela nos pode ajudar a compreender e a dimensionar a verdadeira importância de nossas ações dando-nos unia plena e total consciência das decisões a tomar em favor da nossa ação.
Não negaremos a validade dessa exigência, ou seja, dessa vontade de ter em conta o mais possível a função primeira atribuída, sobre o plano da prática, à uma visão global do mundo. Acrescentaremos ainda que essa visão possui sem dúvida alguma uma função essencial no plano do conhecimento, mesmo ultrapassando os limites dos conhecimentos científicos. Não e raro que se cometa, a propósito desse enfoque, um grave erro: o de considerar que seja possível ter uma visão global de mundo satisfatória, percorrendo um caminho totalmente independente dos conhecimentos científicos, erro que decorre, em primeiro lugar, da incapacidade de distinguir entre relação de simples impropriedade e relação de independência efetiva, e em segundo lugar, de uma concepção muito restrita, rígida e mecânica tanto quanto à estrutura dos conhecimentos científicos, como da estrutura da filosofia — compreendida precisamente como elaboradora de visões globais de mundo –.
Uma vez evitado esse erro, fica claro que os conhecimentos científicos tornam a ter — de pleno direito — uma significação maior para a prática, não só na medida em que sejam capazes de fornecer meios que permitam uma maior eficiência de nossos atos, mas também por estarem ligados por uma relação muito articulada de interações com a filosofia — interpretada no sentido definido ainda há pouco –. De fato, uni exame rigoroso da história das Pesquisas científicas e filosóficas nos mostra que em quase todas as épocas a ciência e a ‘filosofia exerceram uma profunda influência uma sobre a outra, da mesma forma que sobre a cultura em geral e, por meio desta, sobre os debates em torno das orientações a dar à ação dos indivíduos e dos povos. A pretensão de encerrar as diferentes atividades do homem em compartimentos estanques, isolados uns dos outros, é urna das heranças mais perigosas da metafisica tradicional ; herança que deve ser combatida com tenacidade, opondo-se lhe uma concepção unitária e dinâmica do inundo natural e humano. Urna das contribuições mais importantes do materialismo dialético nessa batalha constitui justamente a sua teoria do conhecimento, centrada na defesa de um novo tipo de racionalismo realista, antidogmático e aberto, visando a eliminar tanto da ciência corno da filosofia tudo o que se pretenda absoluto.