“O sistema monetário pós Bretton Woods pode ser caracterizado não como um padrão dólar, mas mais rigorosamente como um padrão petro-dólar”. Essa é a afirmação central de artigo de Prabhat Patnaik, economista responsável pela cadeira Sukhamoy Chakravarty na Universidade Jawaharlal Nehru, Nova Delhi, cujo original foi traduzido por Margarida Ferreira para o Resistir.info. Confira a seguir.
Um aspecto intrigante da nossa vida quotidiana é que uns pequenos pedaços de papel que intrinsecamente não valem nada, e a que chamamos dinheiro, pareçam ter valor e possam ser trocados por objectos úteis. O propósito deste livro é examinar a organização social subjacente a este facto. Embora esta organização social não seja mais do que toda a organização social subjacente ao capitalismo, há uma razão para começarmos a nossa investigação pelo “lado do dinheiro”. Isto porque uma parte importante da organização social, que nem sempre é aparente quando começamos pelo conceito de “capital”, surge com maior nitidez quando consideramos o dinheiro como ponto de partida para a nossa análise. Esta parte prende-se ao facto de o capitalismo não poder existir, e nunca ter existido, isolado como um sistema fechado, contido em si mesmo, conforme se pressupõe habitualmente em grande parte da análise económica. Por outras palavras, a melhor via para entender a totalidade da organização social subjacente ao capitalismo é começar por uma pergunta muito simples: O que é que insufla o valor a estes pedaços de papel que não têm qualquer valor intrínseco? Esta pergunta, por seu turno, faz parte duma pergunta mais abrangente: O que é que determina o valor do dinheiro, quer ele consista de bocados de papel sem valor intrínseco ou de metais preciosos? Para estas perguntas tem havido duas respostas básicas em economia. A primeira proposta deste livro é que uma dessas respostas, a que é dada pela actual economia “predominante” (mainstream), não resiste a uma avaliação lógica. Portanto vou começar com uma crítica da economia “predominante” e, em especial, da noção de “equilíbrio” que lhe é central.
Uma crítica da noção predominante de equilíbrio
A teoria económica predominante toma a compensação do mercado (market clearing) como ponto de referência. Na sua percepção, a flexibilidade de preços que caracteriza os mercados no tipo ideal de economia capitalista, garante a equiparação da oferta e da procura num conjunto de preços de equilíbrio. As dotações que uma economia dispõe e cuja propriedade é distribuída de determinada maneira entre os agentes económicos são plenamente utilizadas para produzir um conjunto de bens cuja oferta é exactamente igual à sua procura neste conjunto de preços de equilíbrio. Decorre daí que numa economia dessas não existe a questão de qualquer desemprego involuntário, no sentido de uma oferta excessiva de mão-de-obra à taxa salarial prevalecente, em equilíbrio. Gostos, tecnologia, a dimensão das dotações e a sua distribuição pelos agentes económicos e as “condições de frugalidade” (para usar uma frase de Joan Robinson), ou aquilo a que alguns chamariam a “preferência no tempo” dos agentes económicos, determinam os preços de equilíbrio e os produtos neste mundo de agentes “racionais”, onde as empresas maximizam lucros e indivíduos maximizam utilidades.
Mas esta noção predominante de equilíbrio só é logicamente sustentável num mundo sem dinheiro, razão por que não pode ser uma descrição logicamente válida para uma economia capitalista. Isto porque num mundo com dinheiro, de acordo com esta concepção, o mercado do dinheiro deve “compensar” a um determinado preço do dinheiro em termos dos bens não monetários. Isso só pode acontecer se o excesso na curva da procura de dinheiro tiver uma inclinação descendente em relação ao “preço do dinheiro”. Por outras palavras, para uma dada oferta de dinheiro a procura por dinheiro tem que variar em proporção inversa ao preço do mesmo. Sendo o preço do dinheiro a recíproca do nível de preço das mercadorias em termos de dinheiro, isso implica que a procura de dinheiro tem que variar em proporção directa com o nível do preço das mercadorias. A economia predominante considerava isto como garantido, porque via o dinheiro apenas como um meio de circulação, de modo que quanto maior fosse o valor dos bens que têm de circular, maior seria a procura de dinheiro. Logo, com a produção ao nível do pleno emprego, o valor dos bens (e portanto o valor dos bens a circular) depende do seu nível de preço, a procura por dinheiro tem de estar relacionada positivamente ao nível de preços.
O papel do dinheiro como meio de circulação assegurava isso. O problema, contudo, é que o dinheiro também é uma forma de riqueza. Ele não pode ser um meio de circulação sem ser uma forma de riqueza, visto que até mesmo o anterior papel exige que o dinheiro seja mantido, mesmo que fugazmente, como riqueza. E quando o papel do dinheiro enquanto forma-de-riqueza é reconhecido, torna-se claro que a procura de dinheiro também depende dos retornos esperados de outras formas de riqueza. Se a procura de dinheiro depende das expectativas quanto ao futuro, então não há nenhuma razão para que a curva da procura do dinheiro deva ser inclinada em sentido ascendente em relação ao nível de preços, conforme exigido pela teoria “predominante”, visto que qualquer alteração no nível de preços não pode deixar de alterar as expectativas.
Para sair deste atoleiro, a teoria predominante arranjou dois caminhos alternativos. Um deles é recusar, muito teimosamente, o papel do dinheiro como forma-de-riqueza e ver o dinheiro só como meio de circulação. O outro é reconhecer o papel do dinheiro como forma-de-riqueza mas assumir que as expectativas são sempre de um tipo que não cria qualquer problema à teoria, pelo menos no que se refere à existência e à estabilidade do equilíbrio. O primeiro é o caminho ortodoxo da constante k de Cambridge ou, o que de facto vem a dar na mesma, uma velocidade de circulação do dinheiro constante (sujeita a alterações autónomas a longo prazo), a qual é amplamente usada ainda hoje em trabalho empírico corrente do género monetarista. O segundo é o caminho do efeito de “equilíbrio real”, cuja validade depende, entre outras coisas, do pressuposto de expectativas de preços não elásticos.
No entanto, estes dois caminhos estão bloqueados por contradições lógicas. O caminho da constante-Cambridge está bloqueado pela contradição óbvia de que o dinheiro não pode ser assumido logicamente como um meio de circulação a não ser que também possa funcionar como forma de riqueza. E se pode, então não há razão para que não o faça. E se o faz, então não podemos assumir uma constante k de Cambridge. O segundo caminho está bloqueado pela contradição de que expectativas de preços não elásticos pressupõem uma certa fixação aos preços, ou seja, a existência de alguns preços que estão colados, e num mundo de preços flexíveis não há razão para que seja este o caso. Segue-se que pura e simplesmente não há forma logicamente sustentável de construir uma estrutura teórica em conformidade com a percepção “predominante” num mundo com dinheiro e portanto para uma economia capitalista.
Por causa disso existe uma tradição alternativa na economia, a que eu chamo a tradição “proprietarista” (“propertyist”), que sempre considerou o valor do dinheiro como sendo fixado fora do reino da oferta e da procura. A este valor, fixado fora do reino da oferta e da procura, indivíduos habitualmente mantêm saldos de dinheiro a mais para além do que é exigido para efeitos de circulação: O dinheiro constitui tanto um meio de circulação como uma forma de manter riqueza. Neste caso, é impossível manter a lei de Say. Se a riqueza pode ser mantida sob a forma de dinheiro, então surge a possibilidade de superproduçãoex-ante das mercadorias não monetárias. E esta superprodução ex-ante dá origem a uma verdadeira contracção da produção, não apenas das mercadorias não monetárias mas do dinheiro e das mercadorias não monetárias no seu conjunto, precisamente porque o preço do dinheiro em termos de mercadorias é fixado no exterior do reino da oferta e da procura, de modo que não se pode assumir que a flexibilidade do preço elimine essa sobreprodução ex-ante.
Segue-se, pois, que o reconhecimento do papel do dinheiro como forma de retenção de riqueza, o reconhecimento do facto de que o seu valor não pode ser determinado no interior do reino da oferta e da procura mas tem que ser fixado no exterior desse reino, e o reconhecimento da possibilidade de superprodução generalizada ou – o que vem a dar na mesma – do desemprego involuntário no sentido keynesiano, estão logicamente interligados e constituem a tradição proprietarista. Em contraste, a negação de cada um destes fenómenos também está interligada logicamente e constitui a tradição monetarista-walrasiana que se mantém predominantemente.
Dentro da tradição proprietarista, há duas contribuições principais. Uma é de Marx, que não só assinalou explicitamente a insustentabilidade de explicar o valor do dinheiro em termos de oferta e procura, mas também forneceu uma explicação alternativa para isso através da sua teoria do valor-trabalho. Sublinhou a existência em todas as épocas de uma “acumulação” (“hoard”) de dinheiro como forma de guardar riqueza numa sociedade capitalista, e reconheceu, contra Ricardo, que fora um crente na lei de Say, a possibilidade da superprodução generalizada ex-ante como consequência desse facto. Mas nem Marx nem os seus seguidores aprofundaram essa contribuição fundamental de Marx; preferiram, em vez disso, seguir exclusivamente a outra importante descoberta teórica de Marx, nomeadamente a que se relaciona com a sua teoria da mais-valia. É por isso que se passaram três quartos de um século antes de os mesmos temas terem voltado à superfície durante a revolução keynesiana através dos escritos de Kalecky e de Keynes, entre outros, que constituíram o segundo principal grupo de contribuidores dentro da tradição proprietarista.
Claro que houve diferenças importantes entre Marx e Keynes na especificação das suas teorias. Enquanto Marx invocava a teoria do valor-trabalho para explicar a determinação do valor do dinheiro, Keynes achava que o valor do dinheiro em relação ao mundo das mercadorias era fixado através da fixação do valor do dinheiro em relação uma determinada mercadoria, nomeadamente o poder da força-de-trabalho (para usar a expressão de Marx). O facto de o custo hora do trabalho ser fixado num período específico, que foi o foco de análise de Keynes, foi o que deu ao dinheiro um valor finito e positivo em relação a todo o universo das mercadorias. E a fixidez dos salários em dinheiro não foi a causa do fracasso do mercado, como se tem admitido genericamente, mas omodus operandi do próprio sistema de mercado numa economia capitalista que necessariamente usa dinheiro. A superioridade da tradição proprietarista ao analisar o funcionamento da economia capitalista sobre a tradição monetarista-walrasiana deriva pois não só do seu maior “realismo” (por exemplo, o facto de o capitalismo sofrer crises de superprodução) mas também de aquela estar liberta das debilidades lógicas que afectam o monetarismo walrasiano.
Uma crítica da noção de capitalismo enquanto sistema isolado
Este livro apresenta também uma segunda proposta. O proprietarismo, apesar da sua superioridade sobre o monetarismo, continua incompleto. Não apresenta nenhum mecanismo convincente para assegurar que o nível de actividade duma economia capitalista se mantenha dentro dos limites que a tornem viável. A propensão duma economia capitalista para a superprodução generalizada torna-a essencialmente um sistema de constrangimento da procura (em que o constrangimento da oferta só se torna relevante em períodos excepcionais duma procura excepcionalmente alta). Mas se o capitalismo é um sistema de procura constrangida, então o que é que garante o facto de ele se manter viável, ganhando genericamente uma taxa de lucro que os capitalistas considerem adequada? As operações espontâneas dum sistema de procura constrangida não vão assegurar que ele funcione genericamente acima de um determinado grau de capacidade de utilização, que constitui o limiar da sua viabilidade. Conforme mostrou a discussão harrodiana sobre o crescimento, uma economia capitalista, entregue aos seus próprios dispositivos, não tem os meios para voltar atrás se entrar numa desaceleração. E como mostrou Kalecki no contexto dum sistema de procura constrangida, de que o universo harrodiano foi um exemplo específico, a tendência a longo prazo num sistema desses, na ausência de estímulos exógenos, é zero, o que certamente minaria a viabilidade dessa economia.
Ora bem, uma economia capitalista isolada, funcionando espontaneamente, não tem nenhuns estímulos exógenos. A inovação, o principal estímulo exógeno realçado por autores tão diferentes como Schumpeter e Kalecki, não é verdadeiramente um estímulo exógeno, visto que o ritmo de introdução da inovação em si mesmo não é independente do crescimento esperado da procura. E as despesas estatais, o outro principal estímulo exógeno que pode surgir numa economia capitalista isolada, não fazem parte verdadeiramente do funcionamento espontâneo do capitalismo (para além de ser um fenómeno que só adquiriu importância especial nos últimos anos). Daí que, até mesmo o proprietarismo continua incompleto. Depois de reconhecer correctamente que o sistema capitalista é propenso a uma deficiência da procura agregada, não oferece qualquer explicação sobre como, apesar disso, o sistema conseguiu sobreviver e prosperar durante tanto tempo.
Há aqui uma segunda questão com ela relacionada. Para a esclarecer, esqueçamos por instantes a primeira questão. Aceitemos que um estímulo exógeno sob a forma de inovações consegue sempre manter o nível da procura e portanto o nível de actividade na economia capitalista que constitui o nosso universo. Ora bem, mesmo que o valor do dinheiro em termos de mercadorias não monetárias seja dado do exterior do reino da oferta e da procura em qualquer período, se esse valor continuar a variar de forma ilimitada ao longo de períodos, através, por exemplo, duma inflação acelerada, então a existência continuada duma economia monetária normal mais uma vez é inexplicável. E se o nível de actividade tiver que se ajustar para manter os movimentos de preços “ao longo de períodos” dentro de limites, então esse nível pode muito bem cair abaixo do limiar que torna viável a economia, apesar da presença do estímulo exógeno. Segue-se que uma economia monetária tem que ter não apenas uma determinação “exterior” do valor do dinheiro em qualquer período, mas também qualquer mecanismo, que não seja o de ajustamentos no nível de actividade, para manter os movimentos de preço ao longo de períodos dentro de limites estritos. Um mecanismo óbvio é a fixidez de algum preço não só dentro do período mas também ao longo de períodos. Ou, dizendo de outro modo, o preço que é dado do “exterior” em qualquer período também deve estar a mudar lentamente ao longo de períodos. O proprietarismo continua incompleto porque não apresenta nenhuma razão para que isso aconteça. Daí que, apesar da sua superioridade sobre o monetarismo e o walrasianismo, o proprietarismo, tal como se apresenta, também não está isento de problemas lógicos.
A única forma de ultrapassar todos estes problemas é conceber o capitalismo como um modo de produção que nunca existe isoladamente, que está obrigatoriamente ligado aos modos pré-capitalistas que o rodeiam e que se mantém continuamente viável por se intrometer nos mercados pré-capitalistas. A limitação do proprietarismo é que, apesar de rejeitar o monetarismo por razões perfeitamente válidas, se manteve refém do mesmo pressuposto, de uma economia capitalista isolada e fechada, que caracterizava o monetarismo. Em resumo, a sua rejeição da perspectiva predominante não foi suficientemente radical e exaustiva.
Dizer que a economia capitalista precisa de se intrometer em mercados pré-capitalistas não é o mesmo que dizer, como o fez Rosa Luxemburgo, que ela precisa de “realizar” toda a sua mais-valia em cada período através de vendas ao sector pré-capitalista. Na verdade, o papel dos mercados pré-capitalistas nem sequer tem que ser quantitativamente significativo. Durante a maior parte do tempo a economia capitalista pode crescer pelos seus próprios meios, enquanto puder usar os mercados pré-capitalistas como meio de poder funcionar sempre que estiver num movimento descendente. E mesmo para este funcionamento, a dimensão quantitativa de vendas aos mercados pré-capitalistas não precisa de ser significativa. Com efeito, em rigor, enquanto a disponibilidade dos mercados pré-capitalistas possa instilar nos capitalistas suficiente confiança para fazerem investimentos, qualquer abrandamento pode ser travado ou mesmo abortado, sem interferência visível nos mercados pré-capitalistas. Por outras palavras, o que logicamente se exige é a existência de mercados pré-capitalistas em que se possa intrometer e não uma real intromissão significativa nesses mercados. Em resumo, constituem “mercados de reserva” a par do exército de reserva da força de trabalho. E assim é porque os bens do sector capitalista podem sempre desalojar a produção local na economia pré-capitalista, provocando nela a desindustrialização e o desemprego.
Essa deslocação periódica deixa atrás de si uma massa empobrecida na economia pré-capitalista, que constitui para o sector capitalista um segundo exército de reserva, situado à distância, para além do que existe dentro do próprio sector capitalista. Esse exército de reserva situado à distância garante que o custo hora do trabalho dos trabalhadores situados no meio desse exército de reserva só varie lentamente com o tempo. Em resumo, esses trabalhadores são “aceitadores de preços” (price-takers) – ou, mais rigorosamente, as suas reivindicações ex ante de salários reais são esmagadas precisamente porque estão situados no meio de amplas reservas de mão-de-obra. Como os produtos que eles produzem entram nos custos de salários e matérias-primas do sector capitalista no seu âmago, desempenham o papel de “pára-choques” do sistema capitalista. Por causa deles, a economia capitalista mantém-se viável tanto no sentido de ter um nível de actividade que ultrapassa o nível do limiar que lhe fornece a taxa de lucro mínimo aceitável, como no sentido de que o seu sistema monetário pode ser sustentado sem qualquer receio de aceleração da inflação.
Em resumo, o modo de produção capitalista precisa de estar sempre rodeado por modos pré-capitalistas que não são deixados na sua pureza preservada, mas são modificados e alterados de um modo que faz com que sirvam melhor as necessidades do capitalismo. O carácter incompleto do proprietarismo pode ser ultrapassado através do reconhecimento de que o capitalismo tem sempre integrada esta condição.
Esta percepção, embora tenha alguma afinidade com a de Rosa Luxemburgo, difere da dela de modo crucial. Primeiro, conforme já referido, realça mais o papel qualitativo dos mercados pré-capitalistas do que o seu papel quantitativo, e evidentemente não os considera como o local para a realização de toda a mais-valia do sector capitalista em cada período. Segundo, não considera o sector pré-capitalista como sendo assimilado pelo sector capitalista e portanto desaparecendo com o tempo como uma espécie distante; pelo contrário, mantém-se como uma economia devastada e degradada, local duma ampla massa empobrecida de pequenos produtores desalojados, uma reserva de trabalho longínqua, que serve as necessidades do capitalismo garantindo a estabilidade do sistema monetário.
Relações sociais subjacentes ao dinheiro
Assim, subjacente a uma economia monetária moderna, existe um conjunto de relações sociais que são necessariamente desiguais e opressivas. A estabilidade do valor do dinheiro baseia-se na persistência dessas relações. Claro que isso não significa que cada economia capitalista utilizadora de dinheiro tenha que impor essas relações desiguais e opressivas em determinado segmento especial do seu ambiente pré-capitalista. Habitualmente essas economias capitalistas estão interligadas num sistema monetário internacional e a potência capitalista dominante na altura assume a tarefa de impor as relações desiguais requeridas ao mundo “exterior” das economias pré-capitalistas e semi-capitalistas. Assim, a estabilidade do valor do dinheiro fica ligada à estabilidade do sistema monetário internacional, assumindo sobretudo a forma da manutenção da confiança dos detentores da riqueza do mundo capitalista na divisa da economia dominante como um meio estável para a detenção da riqueza.
Nem sempre é óbvio que esse papel da divisa do país dominante decorra da sua capacidade de sustentar um conjunto de relações globais desiguais e opressivas. Por vezes pensa-se que esse papel decorre de a divisa dominante estar ligada a metais preciosos. Mas isso é um erro. A ligação aos metais preciosos, por si só, não pode ser sustentada na ausência de tais relacionamentos. A estabilidade do sistema monetário internacional durante os anos do padrão ouro verificou-se não devido ao apoio do ouro às divisas, incluindo em especial a libra esterlina, que era a divisa dominante da época; resultou de a Grã-Bretanha poder impor um conjunto de relações opressivas e desiguais sobre grandes faixas do globo que constituíam o seu império formal e informal. A manutenção da ligação ao ouro era um sinal para os detentores de riqueza de que essas relações continuavam. E quando essas relações foram desgastadas no período entre guerras, apesar de a libra esterlina estar formalmente ligada ao ouro novamente, essa ligação não pôde ser sustentada.
Segue-se daqui que, mesmo na ausência de qualquer ligação anterior a metais preciosos, enquanto a potência capitalista dominante puder estabelecer essas relações globais, a sua divisa continua a ser considerada “tão boa como o ouro”; ou seja, mesmo um padrão puro do dólar só pode constituir o sistema monetário internacional enquanto os Estados Unidos puderem estabelecer a hegemonia global exigida para instilar a confiança entre os detentores de riqueza do mundo capitalista de que a sua divisa é “tão boa como o ouro”. No entanto, uma pré-condição para isso é que o valor da sua força de trabalho, em termos da sua divisa, tem que ser relativamente estável (o que exclui uma inflação significativa, quanto mais uma inflação acelerada no seu próprio território); e, relacionado com isso, o valor das importações cruciais que entram no custo de salários e no custo dos materiais, também tem que ser relativamente estável. Com efeito, enquanto esta última condição se cumprir e as reservas de mão-de-obra internas forem suficientemente grandes para impedir qualquer aumento autónomo de salários, a inflação pode ser excluída como fonte de desestabilização do papel da sua divisa como meio estável de detenção de riqueza. Como a contribuição mais significativa é a importação do petróleo, um padrão dólar pode funcionar enquanto o preço em dólares do petróleo for relativamente estável. Portanto, o que parece à primeira vista ser um padrão dólar puro, se olharmos mais de perto tem que ser um patrão petro-dólar. O sistema monetário pós Bretton Woods pode ser caracterizado não como um padrão dólar, mas mais rigorosamente como um padrão petro-dólar. Segundo todas as aparências, o mundo pode ter acabado com o dinheiro mercadoria com a separação do dólar do ouro. Mas o ponto crucial da argumentação deste livro é que nunca pode ser assim. O valor do dinheiro, mesmo o dinheiro papel ou crédito, deriva da sua ligação ao mundo das mercadorias.
A procura mundial de petróleo e gás natural que ocorre presentemente, liderada pelos Estados Unidos, não é alimentada apenas pelo desejo de adquirir estes recursos para utilização. É alimentada muito mais fortemente pela necessidade de preservar o padrão petro-dólar. Até Alan Greenspan reconheceu abertamente que a invasão do Iraque foi feita para assumir o controlo sobre as suas imensas reservas petrolíferas; sem dúvida há motivos semelhantes subjacentes à ameaça de acção contra o Irão. Uma percepção comum é que essa aquisição do controlo é necessária aos Estados Unidos e a outros países avançados porque são os principais consumidores deste recurso, que actualmente está em mãos alheias. Pode ser que assim seja. Mas um motivo extremamente significativo que quase invariavelmente é esquecido é que o controlo do petróleo é essencial para a preservação do actual sistema monetário internacional.
Isto à primeira vista pode parecer estranho porque a tentativa desse controlo tem sido acompanhada por um aumento maciço do preço em dólares do petróleo. Mas isso é porque a invasão do Iraque não ocorreu de acordo com o planeado. E, de resto, o aumento do preço do petróleo, per se, não é desestabilizador se não provocar persistentemente uma inflação mais alta e se não der origem a expectativas de aumentos persistentes no preço do petróleo ou no nível de preços em geral no país dominante. Os obituários ao sistema monetário internacional dominante, relativos à hegemonia do dólar, são prematuros. Mas, embora possa ser assim, há a importante sensação de que o mundo capitalista está cada vez mais acossado por dificuldades.
O capitalismo na maturidade
Rosa Luxemburgo extraiu da sua análise a conclusão de que o sistema capitalista estava confrontado com a inevitabilidade do “colapso”, quando todo o sector pré-capitalista fosse assimilado ao sector capitalista. Essa conclusão não se segue da argumentação apresentada neste livro; e nenhuma conclusão assim pode ser retirada validamente acerca do capitalismo. O capitalismo contemporâneo, porém, está confrontado com graves dificuldades, muitas das quais surgem do avanço do próprio capitalismo.
São óbvias duas consequências da maturidade. Primeiro, o peso do sector pré-capitalista, e portanto do mercado pré-capitalista, diminui ao longo do tempo em relação à dimensão do sector capitalista, de modo que já não consegue desempenhar o mesmo papel de fornecer um estímulo exógeno ao sector capitalista como fazia anteriormente. Segundo, o declínio na quota das importações (excluindo o petróleo) das mercadorias primárias no valor bruto da produção da metrópole capitalista, em si mesmo uma herança do esmagamento dos produtores primários, implica que qualquer outro esmagamento se torna cada vez mais infrutífero. A compressão das reivindicações ex ante desses produtores deixa de ser uma arma potente para impedir a aceleração da inflação no nível de actividade prevalecente.
O primeiro destes problemas pode ser ultrapassado através da “gestão da procura” pelo estado. Mas com a globalização da finança, nem todos os estados podem fazer isso, visto que esse activismo estatal assusta os especuladores. O governo do país capitalista dominante, os Estados Unidos (cuja divisa é considerada “tão boa como o ouro”) ainda consegue aguentar um défice fiscal para estimular a procura mundial, e um défice corrente em relação às potências capitalistas suas rivais por lhes oferecer um mercado maior. Em resumo, pode agir como estado mundial substituto, expandindo o nível de actividade na economia capitalista mundial.
Há dois obstáculos óbvios para isso. Primeiro, o governo dos EUA, que pode agir como estado mundial substituto, é apesar de tudo um estado nação. Dificilmente se pode esperar que venha a ser suficientemente altruísta para estimular o nível de actividade no mundo capitalista no seu conjunto, e não unicamente dentro das suas fronteiras, aumentando a dívida externa da sua economia (que essa intervenção expansionista provocaria). Segundo, mesmo a um nível de actividade relativamente baixo no mundo capitalista, a economia dos EUA já está a ficar cada vez mais endividada. Dificilmente se pode esperar que este problema se agrave ainda mais por razões altruístas, o que implica que o estímulo da procura no mundo capitalista, e daí a tendência da taxa de crescimento, continuará a manter-se baixa.
A crescente dívida dos EUA, mesmo ao actual nível de actividade, representa uma ameaça potencial para a sua hegemonia, e é na verdade um desenvolvimento único. A ideia de a potência capitalista dominante ser também a mais endividada representa uma situação sem precedentes na história do capitalismo. A bem dizer, a principal potência capitalista, a fim de preservar o seu papel de liderança satisfazendo as ambições das potências suas recém industrializadas potências rivais novamente, tem necessariamente numa determinada fase da sua carreira que gerir um défice de transacções correntes com elas. A Grã-Bretanha, a potência capitalista dominante no seu tempo, teve que fazer o mesmo nos finais do século XIX e início do século XX, um período de difusão significativa do capitalismo. Mas a Grã-Bretanha não se endividou nesse processo; pelo contrário, tornou-se a mais importante nação credora do mundo exactamente durante esse mesmo período. Hoje, o caso com os Estados Unidos é exactamente o oposto.
A principal razão para essa diferença é que a Grã-Bretanha usou as suas colónias e semi-colónias tropicais para encontrar mercados para os seus produtos, que estavam a ser cada vez mais desdenhados na metrópole; e como as mercadorias primárias produzidas por essas colónias e semi-colónias eram procuradas pelas suas rivais recém-industrializadas, eram produzidas para ganhar um excedente de exportação em relação a estas últimas, o qual não só equilibrou o défice de contas correntes da Grã-Bretanha com elas, mas ainda forneceu uma quantia extra para exportação de capital para essas economias recém-industrializadas. A Grã-Bretanha não teve que pagar por essa quantia extra, uma vez que se apropriava pura e simplesmente de graça de uma parte da mais-valia produzida nessas colónias e semi-colónias que financiava essas exportações de capital. Hoje aos Estados Unidos faltam tais colónias; e, conforme já mencionado, a importância relativa em termos de valor de exportações de mercadorias primárias para a metrópole diminuiu de tal forma que tal arranjo já não funcionará por muito tempo. O controlo político sobre os países ricos em petróleo oferece algumas perspectivas de ressuscitar com êxito o antigo arranjo colonial ao estilo britânico para pagar as contas correntes sem ficar endividado. E é isso, conforme já vimos, exactamente o que os Estados Unidos tencionam obter.
Assim, o que se perfila no horizonte é um prolongado período de crescimento lento para a metrópole capitalista, o crescente endividamento da principal potência capitalista e a ameaçadora incerteza quanto à continuação do padrão petrodólar e quanto à saúde geral do sistema monetário internacional. Tudo isto está a suceder em meio a “abertura” do terceiro mundo ao movimento desenfreado da finança globalizada e das operações sem restrições das corporações multinacionais, e de tentativas da potência capitalista dominante para a reconquista política dos países do terceiro mundo ricos em petróleo. Na ausência de um esforço consciente para transcender esta situação, a humanidade ficará presa nas garras viciosas de uma dialéctica de engrandecimento imperialista, tanto engendrando como derivando legitimidade a partir de um terrorismo destrutivo como contrapartida. Ninguém pode acreditar honestamente que é este o destino final da humanidade. Para ultrapassar esta conjuntura, contudo, temos primeiro de nos libertar das viseiras da teoria económica dominante.