Homem primata, capitalismo selvagem: consciência de classe e partido político a partir de um caso concreto na terra dos caetés

Nesse artigo, o supervisor judiciário do Tribunal de Justiça de Alagoas Lucas Farias, militante do PCB, demonstra que a face mais perversa da acumulação capitalista se exibe na superexploração e na degradação das condições de trabalho como formas de extração da mais-valia absoluta.

De acordo com ele, “a alienação e o estranhamento a que são submetidos os trabalhadores mistificam e fetichizam a relação que se estabelece entre eles e o fruto de trabalho que produzem. Todavia, há, nos trabalhadores, um germe inoculado, em estado de latência, prestes a explodir como pólvora na iminência da menor faísca que indique o caminho para o salto de consciência de classe e seu reconhecimento “para-si”. É nesse sentido que o problema concreto da universalidade da exploração capitalista deve ser concretamente respondido com a organização de uma estrutura político-partidária que atue de modo educativo e operacional, no campo das lutas cotidianas e da formulação teórica necessária, tendo por horizonte a libertação do trabalhador do jugo do capital na perspectiva de uma sociedade plena de possibilidades para a emancipação humana”.

A indenização eu não sei quanto é, mas o homem do Ministério do Trabalho está calculando. Ele disse que vai levar o caso ao juiz”, disse o trabalhador, segundo as limitações próprias de entendimento técnico e jurídico sobre sua situação, com o propósito de explicar a justeza de sua pretensão para obter os direitos que lhe são devidos, confiando para isso nos órgãos do Estado.

Em Alagoas, como se não bastasse a extração de mais-valia absoluta decorrente da degradação e da superexploração do trabalho como formas típicas do latifúndio monocultor canavieiro, as peculiaridades de nosso capitalismo agressivo se refletem na conduta parcimoniosa e hesitante dos órgãos e mecanismos de controle e vigilância do Estado Democrático de Direito – não raras vezes suavemente condescendentes com tais mazelas.

O caso alagoano dos operários da construção civil submetidos a condições de trabalho análogas às de um regime de escravidão expõe uma dupla perversidade: não bastasse o grau de exploração de sua força de trabalho elevado à enésima potência para erguer as casas de um programa governamental oficialmente de cunho social, é possível que muitos deles nem sequer possuam uma residência própria ou lar minimamente digno. Esse cenário denota outro aspecto da subordinação do trabalho à lógica do capital: não basta que o homem receba uma miséria como contrapartida pelo emprego de sua força criadora, é necessário incutir-lhe a ideia (errada, pois oriunda de falseamento ideológico) de que o fruto de sua ação não lhe pertence e, possivelmente, jamais lhe pertencerá, a não ser que se subordine a condições financeiras extorsivas, capazes de comprometer seu próprio sustento e o de sua família.

Há, no entanto, entre os trabalhadores, a protoforma de uma incipiente consciência de classe, decorrente de uma noção difusa sobre dignidade humana e do conflito entre trabalhador e patrão, racionalmente possível de ser alcançada, ainda que de modo precário, como reflexão empírica da realidade vivida com castigos físicos e dificuldades materiais objetivas.

Ora, um operário, ainda que sem formação acadêmica específica, sem uma leitura depurada capaz de identificar a base histórica do desenvolvimento das sociedades – a luta de classes, carente de elementos subjetivos mais refinados, entre outras coisas, terá, em estado de latência, ainda que de modo velado e sistematicamente ocultado pelo aparato ideológico dominante, duas percepções subjetivas básicas, inerentes à condição de trabalhador.

A um, ele tem a compreensão de que, uma vez despossuído dos meios necessários para reproduzir as condições materiais de sua existência, precisa vender sua força de trabalho para auferir uma dada quantia da unidade de valor universal suficiente para uma troca por bens de vida que lhe sejam ficcionalmente equivalentes.

O operário entende e aceita que é preciso viver da venda de si mesmo para obter essa moeda de troca, o dinheiro, mas desconhece que, à medida que o fruto de seu trabalho é apropriado por quem lhe remunera e devidamente setorizado numa cadeia de produção ordenada com o trabalho de outros operários, cessa-se a relação natural de pertencimento entre o agente (ele), que previamente idealiza a coisa para dar-lhe concretude, e o objeto entificado no trabalho (o bem produzido). E mais: a aparente necessidade de que seu trabalho seja apropriado por outro ser humano com o qual não se identifica, como contrapartida para a manutenção de suas condições de vida, estabiliza os obstáculos sociais que impedem a plena realização de suas potencialidades humanas – temos, então, grosso modo, o conjunto das facetas que definem a alienação.

A dois, ele sabe da universalidade de sua condição objetiva como reflexo do papel que desempenha nas relações econômicas de produção, moldura na qual se insere seu enquadramento político e social numa sociedade capitalista. Ou seja, não obstante seu condicionamento objetivo (expresso na necessidade de venda de sua força e na consequente negação do trabalho produzido) e ideológico (indicado na desidentificação humana com o proprietário-apropriador e na naturalização coisificada das relações produtivas), o operário sabe que há outros operários em idêntica situação, em determinado nível de generalidade e guardadas suas especificidades, que compartilham de semelhantes problemas e dissabores cotidianos em suas vidas.

É a partir desse aparente nó górdio que surge a importância da teoria e da práxis partidária. Trata-se, o partido, de instituição que pretende projetar-se universalmente, no amplo espectro dos trabalhadores e suas frações, com um programa estratégico fundado na tarefa inadiável de eliminação estrutural do capital (e de seus aparatos de dominação, como o Estado) e no estabelecimento de uma sociedade baseada no trabalho associado livre, com vistas à plena emancipação humana.

Diante desse panorama as funções político-pedagógicas e práticas do partido se revelam como fundamentais numa tríade de papeis inspirados na tradição leninista: a) organizador dos trabalhadores para que se identifiquem, a partir de suas lutas cotidianas, como sujeitos de uma mesma posição social e quadratura histórica, em contraposição à burguesia enquanto sujeito antagônico e classe dominante, que tem o Estado como seu aparato; b) educador capaz de traçar as linhas mestras que permitam a compreensão da dinâmica histórica da sociedade de classes, da relação capital e trabalho e do espírito internacionalista de unidade de classe; e c) mediador da unidade da ação política transformadora da classe trabalhadora para tomar os céus de assalto rumo ao socialismo como fase de transição para uma sociedade sem classes.

Os aspectos acima indicados não se manifestam por intermédio de modelos dogmáticos ou fórmulas pré-concebidas, tampouco reclamam uma incidência automática e vertical no campo da subjetividade da classe. O partido é um complexo de particularidades que se sente provocado a reelaborar e a reconstruir suas formulações teóricas e sua ação prática a cada movimento concreto das lutas sociais, na medida do fluxo de intervenções dos trabalhadores em seu interior e tendo em conta o modo como repercute sua atuação nos conflitos que impulsionam a marcha histórica.

Assim, o partido se encorpa, simultaneamente, de um lado, como instrumento de luta política efetiva e de ação prática concreta e, de outro, como um polo de acumulação teórica e de formulação programática a partir do florescimento intelectual de seus militantes orgânicos.

Para referendar esse entendimento sobre as especificidades das missões históricas do partido, cabe fazer um contraponto direcionado a algumas teorias revolucionárias que confundem, a título de exemplo, a natureza política dos sindicatos e superdimensionam sua estrutura organizativa (a propósito, tais são traços característicos de variadas tendências anarcossindicalistas). É que o partido não deve incorrer nestas duas limitações típicas do organismo sindical:

a) fracionar-se setorialmente na organização dos trabalhadores em função da aparente pluralidade da origem produtiva de sua exploração, de modo a ignorar a natureza comum ontológica do trabalho, o que termina por ensejar o rebaixamento de sua pauta para um nível meramente reivindicatório e economicista no plano institucional (aumento de salários ou vantagens pecuniárias para esta ou aquela fração de classe, disputa por assentos com poder de voto em órgãos específicos de gestão e deliberação do processo produtivo etc.);

b) pretender-se imediatista e plurívoco a ponto de abstrair a premência de um projeto de poder que aniquile, pela raiz, a própria divisão das relações produtivas e a formação de classes.

Ambos são caracteres da genética limitada de sindicatos e entidades de classe correlatas, fato que os torna incapazes de assumir as tarefas revolucionárias direcionadas por excelência aos partidos. Importante frisar que aquelas entidades de representação profissional, segundo Gramsci, encontrar-se-iam oscilando nos primeiro e segundo momentos de elaboração de uma consciência política coletiva, pois guardariam óbvias limitações decorrentes de sua gênese econômico-corporativa.

Em face dessas perspectivas devem os militantes se organizar em torno do partido político de estrutura universal e de unidade classista – e que sejam organizados tantos quanto necessários – como resposta concreta ao desafio concreto de articular os sentimentos individuais de cada trabalhador a uma consciência coletiva que os identifique e os faça reconhecer-se mutuamente enquanto tal, com o objetivo de apontar a natureza comum das diversas faces da alienação do trabalho do gênero humano e combater, numa ofensiva contra-hegemônica, a essência do modo de reprodução sociometabólico do capital e as vigas que lhe dão suporte.

O horizonte da unidade de ação dos trabalhadores num sentido revolucionário demanda inarredáveis tarefas educativo-organizacionais, gestadas na experiência concreta do polo aglutinador partidário e no trabalho incessante e dialético de evolução intelectual de seus quadros e da classe, tendo sempre por norte o momento da catarse gramsciana de uma consciência política classista universal.

As condições favoráveis para um evento revolucionário, como prefere denominar Alain Badiou, não são obra do acaso ou de uma fatalidade histórica provocada objetivamente pelo motor da luta de classes, em que todos se sentam (ou se prostram) confortavelmente até que, parafraseando Slavoj Žižek, os cavaleiros do apocalipse do fim dos tempos tropeiem suas cornetas.

A construção revolucionária é feita como obra humana historicamente lapidada nas sólidas e aparentemente impenetráveis rochas fundantes do modo de reprodução capitalista.

O novo horizonte da emancipação humana não se vislumbrará como um natural e fatídico pôr-do-sol, mas como uma consciente e articulada luta durante a escuridão de uma falseada noite sem fim, em condições objetivamente dadas suscetíveis à transformação humana subjetiva, rumo ao nascer do sol que, pouco a pouco e num incessante acúmulo de energia, irrompe-se do velho dia para um novo amanhecer.

*Post Scriptum – Algumas indicações para iniciar os estudos:

LÊNIN, Vladimir Ilitch Ulianov. Obras escolhidas – tomos I, II e III. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, s/d.

COUTINHO, Carlos Nelson. De Rousseau a Gramsci – ensaios de teoria política. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.

BADIOU, Alain. A hipótese comunista. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012.

ŽIŽEK, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012.

Lucas Farias também é acadêmico da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Alagoas. Estuda o Marxismo e o Direito, com desdobramentos no Direito Constitucional, Filosofia Jurídica, Sociologia Jurídica, Teoria Geral do Estado e Ciência Política.