As interações entre Jorge Amado e o PCB pós 1956

De acordo com o historiador Muniz Ferreira, integrante do Comitê Central do PCB, “as interações entre Jorge Amado e o Partido Comunista Brasileiro no período posterior à saída deste escritor do partido foram marcadas por aproximações e afastamentos, convergências e desencontros”.

Neste artigo, Muniz demonstrará que elas estão registradas em uma série de cinco textos publicados no semanário Novos Rumos, então jornal legal e de massas, do ilegal e clandestino PCB.

“I – A obra de Jorge Amado na crítica literária dos comunistas (NR de 28/7 a 3/8/1961):

Sob o título “As Novas Tendências na Obra de Jorge Amado”, o artigo assinado por Jacob Gorender apreciava duas obras publicadas pelo escritor itabunense após sua desvinculação do Partido Comunista, Gabriela Cravo e Canela e Os Velhos Marinheiros. Em uma abordagem implacável, os livros foram apresentados como expressões de um novo rumo (sem trocadilhos) que vinha tomando, naqueles últimos anos, a literatura de Amado. De acordo com o crítico comunista, estas novas tendências poderiam ser resumidas em três manifestações básicas: a) “… o abandono da inspiração revolucionária, que havia levado o romancista a criar uma obra de ressonância popular legitima e excepcional”; b) “… a centralização do interesse revelado pelo tratamento dos temas e dos personagens numa visão amoralista e carnavalesca das coisas humanas, visão que, afinal, se ajusta ótimamente à gente ociosa da alta roda e aos marginais desclassificados da sociedade”; c) “… queda do nível artístico, que se caracteriza bruscamente com a historieta de Vasco Moscoso de Aragão, incluída em Os Velhos Marinheiros.

Para Gorender, em Gabriela Cravo e Canela essa nova fase se apresentava em estágio embrionário. O articulista de Novos Rumos ainda identificava naquela obra méritos quando à concepção e à narrativa, que a alinhavam entre outras importantes obras do gênero na história da literatura brasileira: “Por suas características, Gabriela veio se alinhar entre os romances chamados de costumes, de que são exemplos no nosso passado literário, as Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, e a Casa de Pensão, de Aluízio Azevedo. Entretanto, a par disso, em Gabriela já desaparece o sentido revolucionário do conjunto das obras anteriores de Jorge Amado, os conflitos sociais são pouco profundos, os trabalhadores passam para um plano secundário e distante. O amoralismo, que indiretamente implica uma reconciliação confortadora com a sociedade existente, já se patenteava na própria personagem central, embora a sua espontaneidade, algo primitiva poeticamente pintada pelo autor, torne esse moralismo mais sutil. E enfim, se são inegáveis os seus méritos como realização do ponto de vista formal, não nos parece que Gabriela possa ser colocada no mesmo nível de Jubiabá, de Terras do Sem Fim, ou mesmo de Seara Vermelha”. Gorender também reconhece que a escrita de Gabriela superou o esquematismo presente em obras anteriores do escritor, nomeadamente, os Subterrâneos da Liberdade, o que valoriza positivamente. Porém, observa “E, de fato, seria de louvar tal superação, se se efetivasse sem mudança de direção ideológica. Foi, todavia, o que não se verificou.”

A avaliação de Jacob Gorender sobre o livro Os Velhos Marinheiros adotou critérios semelhantes. Reconhece inicialmente os méritos da narrativa amadiana: “A narração ainda é viva e colorida, alguns trechos tem sabor folclórico…”, entretanto, “… a substância social é tênue, resumindo-se numa sátira à respeitabilidade pequeno-burguesa, sátira ligeira e superficial, uma vez que realizada do ponto de vista do lumpenproletariado”, para, em seguida, criticar agudamente: “O amoralismo se apresenta, agora, francamente como um caminho bastante razoável para aceitar a sociedade vigente, embora vivendo á sua margem. Da retirante simples e analfabeta, puramente instintiva, o romancista nos conduz ao boêmio Quincas, funcionário aposentado que, aos cinquenta anos, resolve romper com o tédio da vida doméstica e ingressar no mundo da vagabundagem e da prostituição.”

A implacável crítica de Gorender à produção literária do Jorge Amado pós-comunista centra fogo em dois aspectos fundamentais: a) esmaecem as preocupações políticas e sociais do escritor em proveito do interesse pelos aspectos individuais, comportamentais e culturais das situações e personagens apresentados; b) o relaxamento de Amado no que concerne à moralidade das ações de seus personagens, segundo Gorender, abandonados agora a atitudes e desígnios destituídos de moralidade. A partir destes elementos, o crítico comunista imputa também à “nova fase” da literatura amadiana a perda do foco no comportamento e nos valores das classes populares, substituídas pelo amoralismo supostamente característico de setores decadentes da pequena-burguesia, bem como do lumpenproletariado.

Os fundamentos da abordagem da crítica de Jacob Gorender, assim como os objetivos por ela visados, ficam evidenciados nos elogios as obras amadianas da fase precedente, como Jubiabá, Seara Vermelha e Terras do Sem Fim, apresentadas como contraponto a Gabriela Cravo e Canela e Os Velhos Marinheiros. Confrontou assim o Amado comunista pré 56 e o Amado pós-comunistas dos anos seguintes. Como ele mesmo afirma:

“Não é que pensemos estar a sua obra anterior isenta de defeitos. Acima mencionamos o esquematismo e outros defeitos poderiam ser apontados, como, aliás, não faltou quem o fizesse. A questão é que aquela obra trouxe, em primeiro plano, no seu conjunto, grandes extraordinárias qualidades, sendo de esperar do romancista que fosse capaz, com o tempo e experiência de superar os seus aspectos débeis. Sem que abandonasse, mas talvez desenvolvesse a orientação ideológica revolucionária, razão maior de sua glória. Diante dos fatos entretanto, a crítica honesta reconhecerá que, ao afastar-se de tal orientação Jorge Amado não encontrou o caminho para o pleno florescimento de seu comprovado talento criador”.

Uma pergunta se impõe: por que Jacob Gorender? Publicista assíduo nas páginas das publicações comunistas desde o inicio da década de 1940, Gorender, entretanto, não se notabilizou como crítico literário, mas sim como um dos responsáveis pelo tratamento das questões de caráter ideológico. Por que coube a Gorender a realização desta tarefa em um periódico (Novos Rumos) que tinha entre seus colaboradores escritores conhecidos como Afonso Schmidt e Dalcídio Jurandir e um crítico literário com as credenciais de Astrojildo Pereira? Este foi o único dos cinco artigos localizados no jornal Novos Rumos acerca de Jorge Amado, que se concentrava na apreciação de sua obra literária.

II – Chocante atitude de Jorge Amado (NR 15 a 21/09/1961) – Box publicado na capa.

Crítica contundente ao envio de um telegrama por parte de Jorge Amado (aqui referido como “acadêmico Jorge Amado”) ao então governador da Bahia pela UDN, Juraci Magalhães, exortando-o para que aceitasse a indicação de seu nome para primeiro-ministro. Segundo o texto do telegrama citado, a presença de Magalhães à frente do Conselho de Ministros seria “a garantia do regime democrático e da paz interna”. Para os editores do jornal: “É profundamente chocante esta iniciativa do acadêmico Jorge Amado, escritor que por tanto tempo se identificou com as lutas do povo brasileiro por um regime verdadeiramente democrático.” E procurando uma explicação para o gesto, continuava o texto de NR: “Por que, a não ser por motivos pessoais essa exaltação do sr. Juraci Magalhães, político reacionário, conhecido precisamente por sua truculência, de que deu mostras agora mesmo na Bahia, espancando e prendendo os trabalhadores, estudantes e intelectuais que, num gesto de fidelidade à democracia, saíram as ruas e foram à greve para exigir o respeito à Constituição e a posse do Sr. João Goulart, contra as manobras dos golpistas de que o Sr. Juraci se fez cúmplice?” Como conseqüência, Jorge Amado foi associado, sem maiores cerimônias, aos representantes da reação brasileira: “E quem, a não ser o marechal Denys e o espancador Carvalho Pinto, aos quais se associou a voz solitária do acadêmico Jorge Amado, pediu a indicação de Juraci para primeiro-ministro?” A conclusão não é menos corrosiva: “É triste esse episódio: um escritor que exaltava a liberdade passando á sombria louvação de um golpista e espancador do povo.”

III – “Jorge Amado, os ‘burros’ de NR e os cães de Juraci” (NR, 13 a 19/10/1961)

A desavença acima descrita entre o autor e a imprensa comunista atingiu o apogeu numa matéria de capa, tréplica à resposta de Jorge Amado, comentando entrevista concedida ao semanário mineiro Binômio, no qual Amado classificava como “burrice” as críticas feitas pelos redatores de Novos Rumos. Adotando um estilo ao mesmo tempo irônico e contundente, NR retrucou chamando Juraci Magalhães de “caçador de mandatos dos parlamentares comunistas, inclusive de JA (Jorge Amado)”. Após lembrar o posicionamento do escritor no episódio, ao lado de Denys e Carvalho Pinto, Novos Rumos estabelece uma correlação “zoológica” entre a acusação de “burrice” que lhe fora imputada pelo escritor baiano e os métodos utilizados pelo governador da Bahia para a suposta defesa do “regime democrático e da paz interna”. Nas palavras do periódico: “Era tão zelosa a sua defesa que não se limitava a usar fuzis e cassetetes contra os operários e estudantes: até cães amestrados, que investiam furiosamente ao ouvir a palavra ‘comunista’ estavam sendo lançados contra o povo baiano. Naturalmente, se chegasse ao posto de primeiro-ministro teria o Sr. Juraci Magalhães, com o apoio das pessoas ‘inteligentes’, a oportunidade de aplicar em todo o país essa experiência, também zoológica.”

IV – “De Jorge Amado ao Congresso da Paz” (Novos Rumos, edição de 10 a 16 de agosto de 1962)

A publicação deste texto assinala o início do processo de reaproximação entre Jorge Amado e o PCB após as rusgas do ano anterior. De forma bastante curiosa e ao mesmo tempo emblemática, a circunstância que ofereceu oportunidade para o reencontro foi a realização, em Moscou, de um Congresso Mundial pelo Desarmamento e Pela Paz (de 9 a 14 de Julho daquele ano). Antigo dirigente do Movimento Mundial dos Partidários da Paz, Amado, conquanto se exima de participar do evento, envia uma saudação respeitosa e polida: “Saúdo o Congresso pelo Desarmamento e pela Paz Mundial, na certeza de que ele será importante contribuição para uma política de coexistência pacifica entra as nações e para a criação de condições que assegurem à humanidade uma era de paz e de progresso.”

V- Jorge Amado Apoia Candidatos Populares: Bahia (NR, 27 de setembro de 1962)

Registro da reconciliação e aparente superação do mal estar antes existente entre Jorge Amado e o PCB. Respondendo às indagações de amigos sobre os candidatos nos quais votaria caso tivesse domicílio eleitoral na Bahia (Jorge Amado votava no Rio de Janeiro), o escritor declara sua intenção de votar nos candidatos comunistas Fernando Santana (Câmara federal), Aristeu Nogueira (Assembléia Legislativa) e João Cardoso para a Câmara Municipal. A declaração de intenção de voto, realizada por escrito, traz referências elogiosas a cada um dos candidatos, em particular a Fernando Santana e em menor medida a Aristeu Nogueira, mencionado e recomendado apenas de passagem.

Seria este o registro efetivo da retomada das convergências entre Amado e seu antigo partido, ou apenas a manifestação de um comportamento orientado pelos laços de amizade e simpatia pessoal?

Aspecto curioso desta matéria é o fato de Amado ser mencionado como autor de Gabriela e Quincas Berro d’Água, só que agora, sem qualquer observação crítica ou reserva em relação a tais obras…

Conclusão

O exame dessa documentação revela que, nos anos que se seguiram ao seu afastamento das fileiras comunistas, o escritor Jorge Amado manteve com o PCB um relacionamento oscilante e problemático. Inicialmente marcado por divergências inconciliáveis relacionadas à avaliação de sua obra por parte do dirigente comunista Jacob Gorender, encarregado de realizar a tarefa, e aos distintos posicionamentos adotados pelo escritor e pelo partido em face da conjuntura política no período situado entre a renúncia de Jânio Quadros e a posse de João Goulart na presidência da República. Tais relações evoluíram para um quadro de convergências, quando da realização do Congresso Mundial pelo Desarmamento e Pela Paz de Moscou e culminou com uma aparente reconciliação no contexto das eleições de 1962. Depois do golpe civil-militar de 1964, Amado e o PCB voltariam a se encontrar nas mesmas trincheiras de defesa de um programa nacional e popular para nossa cultura e pela reconquista dos direitos democráticos do povo brasileiro.”