A reorganização do Partido na ‘Conferência da Mantiqueira’, por Dinarco Reis

 

 

Reproduzimos a seguir trecho do livro A Luta de Classes no Brasil e o PCB na qual Dinarco Reis relata os acontecimentos da Conferência da Mantiqueira, que teve início em 27 de agosto de 1943.

 

 

 

 

 

 

 

 

 


“A entrada dos Estados Unidos na guerra ao lado das forças aliadas, em fins de 1941, e o desmoralizante fracasso das hordas nazistas nas proximidades de Moscou, foram os principais fatores externos que determinaram a mudança da posição do governo ditatorial de Getúlio Vargas.

Sem dúvida, porém, foi o grande êxito dos exércitos soviéticos em Stalingrado e o torpedeamento dos navios brasileiros pelos submarinos alemães que ocasionaram a mais completa mudança na posição política nacional, que iria culminar com o envio das forças armadas brasileiras para participarem da guerra, na frente da Itália.

O Partido, que até 1942 achava-se sob a mais dura repressão policial, com sua organização articulada em pequenos grupos em uns poucos estados, procurou aproveitar o ascenso da pressão de massas pelas liberdades democráticas e contra o fascismo, para se rearticular nacionalmente.

No presídio da Ilha Grande encontravam-se presos numerosos dirigentes do Partido cumprindo longas condenações. Prestes prosseguia em rigorosa incomunicabilidade na Casa de Correção, na Guanabara. Os comunistas constituíam a maioria dos brasileiros exilados no Prata.

Estes últimos, quando em 1942 a opinião pública brasileira passou a pressionar Vargas a romper relações com o “eixo” fascista e mesmo a lhe declarar guerra, decidiram se apresentar às autoridades brasileiras, em manifestação de apoio a essa posição do povo brasileiro.

Foi assim que, no final de 1942, a totalidade desses exilados resolveu regressar ao Brasil, a fim de colaborar na campanha contra o fascismo. Vargas, porém, os mandou encarcerar na Ilha Grande, onde juntaram-se aos demais presos políticos que ali se encontravam cumprindo pena. Entre os exilados, nem todos eram comunistas. Mas todos tiveram o mesmo destino, inclusive o general Flores da Cunha, ex-governador do Rio Grande do Sul, deposto por Vargas com o golpe de 1937.

Os comunistas, os que se encontravam em liberdade, lançaram-se entusiasticamente à tarefa de reorganizar o Partido nacionalmente. Nessa tarefa, como é óbvio, encontraram inúmeras dificuldades, além das que a própria reação policial apresentava. Mesmo porque, se a situação evoluía favoravelmente, a “caça às bruxas”, no entanto, prosseguia, se bem que já um tanto desmoralizada.

Entre as dificuldades surgidas destacava-se a determinada pela existência de vários pequenos círculos de camaradas que se propunham a reorganizar o Partido. Entre esses grupos havia, entretanto, os que possuíam orientação equivocada e outros que poderiam contar com prováveis infiltrações policiais, dado o critério pouco responsável adotado no recrutamento de militantes.

Entre os primeiros, situava-se o grupo orientado por Fernando Lacerda (ex-secretário geral do Partido no período anterior a 1934), do qual participavam vários revolucionários de certo prestígio como Silo Meireles, Costa Leite, Rosa Meireles, Ferro e outros.

O fato de Fernando Lacerda haver regressado há pouco de Moscou, conferia-lhe bastante autoridade para o desempenho de seus intentos. A posição dessa corrente, sem dúvida formada por pessoas possuidoras de passado abonador, consistia “em que não era justo reorganizar o Partido na ocasião”, pois isso poderia acarretar nova onda de repressão, assim como a organização partidária seria inevitavelmente infiltrada por policiais, como já havia acontecido anteriormente.

Propunham como solução organizar apenas uma ampla frente democrática e antifascista, da qual, futuramente, poderia emergir o Partido. Fernando Lacerda publicou no semanário “Diretrizes”, de Samuel Wainer, um manifesto com esta orientação (Fernando foi membro do Comitê Central do Partido a partir de 1945).

Outro grupo que se propunha a reorganizar o movimento comunista foi o da CNOP (Comissão Nacional de Organização Provisória), constituído em sua maioria por um pequeno conjunto de jovens estudantes, em cuja frente encontravam-se, entre outros, Maurício Grabois e Amarílio Vasconcelos.

Esse grupo, ao tomar conhecimento do trabalho de reorganização do Partido empreendido por dirigentes mais credenciados, se auto-dissolveu e seus componentes passaram a colaborar individualmente na tarefa de reorganização do movimento comunista em escala nacional.

A ação reorganizativa do Partido esbarrou com outra dificuldade séria, ao procurar o apoio dos camaradas presos na Ilha Grande. Ali achavam-se concentrados numerosos quadros ex-dirigentes do Partido. Estes estavam, porém, divididos entre si por motivos vários de relacionamento entre eles próprios e em relação à administração do presídio.

Efetivamente, a maioria desses camaradas declarou-se contrária à reorganização do Partido naquelas circunstâncias, alegando igualmente o perigo de infiltração policial na organização a ser criada, ou de verificação das costumeiras provocações políticas contra os comunistas. Somente uns poucos camaradas concordaram com a posição dos camaradas em liberdade que se propunham ao trabalho de reorganização. A maioria dos presos assumiu a posição de não reconhecer qualquer direção do Partido que surgisse naquelas circunstâncias, organizada pelos que se encontravam em liberdade.

Entretanto, prosseguiu o trabalho pelos que se propunham à reorganização imediata do Partido. Foi por estes tomada a decisão de constituir uma comissão de organização composta por três camaradas para orientar essa tarefa em âmbito nacional, sob o seguinte plano de trabalho: procurar estabelecer contato com os camaradas ou organizações existentes nos Estados e estruturá-los; manter maior contato com os camaradas presos, informando-os dos trabalhos realizados, e procurar ganha-los para esse empenho; tentar estabelecer contatos com o camarada Prestes em sua prisão, realizar reuniões periódicas com os camaradas residentes na Guanabara, com vistas a preparar um conferência nacional do Partido.

A principal atividade partidária consistiu no estabelecimento de contatos na maioria dos Estados, Esse trabalho, iniciado em fins de 1942, permitiu realizar a conferência prevista, em agosto de 1943. Essa foi a denominada Conferência da Mantiqueira. O nome deriva de ela ter sido realizada na fazenda de um camarada, situada na serra da Mantiqueira, no Estado do Rio de Janeiro.

À Conferência compareceram 25 camaradas (salvo pequeno engano), representando cerca de um milhar de militantes já organizados. Estiveram presentes à mesma os seguintes camaradas: José Militão Soares (cozinheiro); Ivã Ribeiro (ex-militar); Celso Cabral (ex-marinheiro); Waldir Duarte (jornalista); Francisco Chaves (ex-marinheiro); Francisco Leivas Otero (ex-militar); Dinarco Reis (ex-militar); Mano (funcionário); Júlio César (funcionário); Amarílio Vasconcelos (jornalista); Maurício Grabois (jornalista); Mário Alves (estudante); Diógenes de Arruda Câmara (ex-fiscal do Ministério do Trabalho); João Amazonas (guarda-livros); Jorge Herlein (operário); Armênio Guedes (jornalista); Draga (operário); Milton Caires de Brito (médico); Lindolfo Hill (operário); Francisco Gomes (operário); Vitorino Antunes (garçom); Vanderlei (operário); José Medina de Azevedo (estivador); Álvaro Ventura (estivador); Pedro Pomar (jornalista).

Em sua ordem do dia a Conferência tratou, na parte internacional, de dar todo o apoio à luta da União Soviética e dos aliados na guerra contra o nazi-fascismo, o que deveria ser feito publicamente, de acordo com os meios disponíveis.

Em relação à situação nacional, a Conferência decidiu, principalmente, pressionar o governo de Getúlio Vargas a participar diretamente da ação militar na Europa, com o máximo empenho possível das forças armadas brasileiras, já que Vargas havia declarado guerra aos agressores fascistas. “Dar todo apoio à política de guerra de Vargas”, foi a positiva palavra de ordem lançada pelo Partido. Desenvolver ao máximo a luta do Partido e das massas pela libertação dos presos políticos e pela anistia geral. Realizar ampla campanha pela redemocratização e extinção do Estado Novo.

Internamente, foi decidido: reorganizar o Comitê Central, assim como os Comitês Estaduais onde houvesse condições, centrando, porém, na estruturação das organizações de base. O Comitê Central foi reestruturado com a maioria dos camaradas presentes à reunião, assim como foi aclamado seu secretário geral, o camarada Prestes (ausente), pois se encontrava preso, mas que assumiria assim que fosse libertado.

Alguns dos dirigentes que ainda estavam nas prisões foram incluídos como suplentes a serem efetivados quando fossem soltos.

O Comitê Central foi estruturado com 15 membros efetivos e 17 suplentes, e um secretariado de 5, ou seja: Medina, 1.° secretário; Arruda Câmara, secretário de organização; Pedro Pomar, secretário de agitação e propaganda; Mauricio Grabois, do trabalho de massas; Jorge Herlein, secretário sindical.

A reunião da Conferência foi realizada numa pequena cafua de telha-vã e chão de terra, com sala, quarto e cozinha, local bastante exíguo para tantas pessoas. A alimentação, nos quatro dias que durou a reunião, consistiu, sobretudo, em carne de novilho abatido para esse fim pelo dono do local, arroz, feijão e frutas. Café e leite à vontade. Dormíamos no chão de terra forrado por sacos e jornais. À noite, o frio castigava duramente, pois era inverno nessa região bastante alta.

A primeira sessão da reunião durou dois dias e duas noites sem interrupção, com intervalos apenas para a alimentação. Somente na terceira noite foi decidido interromper os trabalhos por algumas horas, pois estavam todos tão extenuados a ponto de se tornar impossível prosseguir sem alguns momentos de sono reparador. Essa pressa em terminar os trabalhos era determinada pela necessidade de preservar ao máximo a segurança da reunião.

Quase todos os que ali se encontravam reunidos sofriam rigorosa perseguição policial e havia, portanto, a possibilidade de algum dos presentes ter trazido um “rabo” em sua vinda para a reunião, isto é, ter sido seguido. Ademais, esta preocupação fazia parte do método rotineiro do trabalho do Partido na dura ilegalidade que então enfrentava.

A Conferência da Mantiqueira representou, sem dúvida, importante papel, não só na reorganização do Partido nacionalmente, como também, por haver elaborado uma positiva orientação política, acertada no fundamental para a conjuntura em desenvolvimento, tanto no plano nacional como no externo.

Os trabalhos da Conferência foram Concluídos normalmente. Logo depois começaram a produzir seus frutos. O processo de reorganização do Partido intensificou-se em todo o país, do mesmo modo que se ampliou bastante sua atividade política e de massas.

Mas, se a Conferência constituiu importante êxito, também teve aspectos negativos, que iriam se revelar mais adiante e foram causas de sérios prejuízos ao Partido, tanto no aspecto político como no orgânico e, principalmente, no ideológico.

O oportunismo e o carreirismo, difíceis de serem localizados nessas circunstâncias, dado que o espírito dos presentes à reunião estava totalmente voltado para a consecução de seus objetivos essenciais foram, no entanto, posteriormente tomados evidentes.

O Comitê Estadual da Bahia, na época regularmente organizado, esteve representado na Conferência pelo jovem estudante Mário Alves, que se encontrava ocasionalmente no Rio, participando de reunião de estudantes. Foi, no entanto, apresentado como sendo delegado credenciado e enviado por esse Comitê Estadual à Conferência, quando isso não correspondia à verdade. O Comitê Estadual da Bahia sequer havia tomado conhecimento da realização da Conferência.

O dirigente Diógenes Arruda Câmara, um dos mais empenhados na montagem da reunião, foi o responsável por essa manobra. O próprio Mário Alves foi envolvido nessa decisão.

Lamentavelmente, a bem da verdade, é necessária esta referência a dois revolucionários já desaparecidos e que se portaram dignamente ao serem submetidos às mais desumanas torturas nos tenebrosos cárceres da reação fascista no poder a partir de 1964.

O primeiro, Diógenes Arruda Câmara, foi um dos maiores responsáveis pela orientação dogmática e sectária aplicada pelo Comitê Central em sua política de organização, durante um período de cerca de 12 anos (1945 a 1957), no qual esteve à frente da direção. Quando nos referimos a esse período voltaremos a tratar dessa questão.

Afastado do Partido no VI.” Congresso, em virtude de sua equivocada posição política, Mário Alves, que depois iria fundar o PCBR, portou-se como valente revolucionário ao ser assassinado em 1970, sob as mais bestiais torturas nas masmorras da ditadura. Sofreu mortal lesão nos intestinos, provocada pela introdução nos mesmos de instrumento perfurante (cabo de vassoura), conforme relato de companheiros de prisão que presenciaram os fatos.

Pessoa de elevada cultura e força de caráter, Mário Alves não possuía as características carreiristas de Arruda Câmara. Sua atuação como dirigente do Partido, até que dele divergisse e se incompatibilizasse, foi a de um dirigente capaz, dedicado e íntegro.

A aplicação das decisões da Conferência da Mantiqueira determinou vários êxitos na atividade do Partido, tanto no terreno de sua Organização, quanto na orientação e aplicação de sua linha política.

É possível destacar os seguintes aspectos positivos dessa reunião: conforme previa a decisão política da Conferência, a guerra contra o nazifascismo desenvolvia-se vitoriosamente, sobretudo com as sucessivas e esmagadoras vitórias das forças armadas soviéticas e aliadas sobre as agressoras hordas nazistas; o povo brasileiro manifestava crescente entusiasmo ante as vitórias das forças aliadas. Com isto desenvolvia-se, em todo o mundo, total repúdio ao regime totalitário, inclusive ao Estado Novo ainda vigente no Brasil. Mas, ao mesmo tempo, o povo brasileiro apoiava a política de guerra de Vargas, já inclinado a enviar um contingente das forças armadas nacionais para participar no conflito mundial ao lado das nações aliadas.

O Partido, nesse período, concentrou todos os seus esforços na conscientização e mobilização das massas populares em apoio à política de guerra do governo, particularmente à formação e ao envio de uma força militar brasileira ao campo de combate na Europa contra o nazi-fascismo.

Desempenhou importante papel nessa ação a Liga de Defesa Nacional, então sob a direção de um grupo de personalidades democráticas e antifascistas. A campanha de ajuda ao contingente militar destinado a seguir para a Europa a fim de participar na guerra, recebia crescente e entusiástico apoio das massas populares.

A coleta de cigarros, agasalhos e outras utilidades da campanha de solidariedade destinada aos pracinhas efetuou-se em todo o país. Infelizmente, sob a orientação do general Eurico Dutra, então ministro da Guerra, esse material não só não chegou às mãos dos pracinhas, como foi incinerado e destruído, sob a alegação que essa campanha era articulada pelos comunistas”.