João Saldanha e a Revolução Chinesa

Reproduzimos, a seguir, trecho do livro Quem derrubou João Saldanha, de Carlos Ferreira Vilarinho, no qual o autor descre as peripécias de João Saldanha para acompanhar a vitória da Revolução Chinesa.

“No ano de 1949, Gaspar Dutra completou seu penúltimo ano de governo, marcado por desastrosa gestão (energia, minérios, concessões, investimentos, Amazônia, etc.). Em janeiro de 1946, o Brasil possuía mais de 320 milhões de toneladas de ouro nos cofres. Em dezembro de 1948, tais reservas caíram para cerca de 281 milhões. Um patrimônio dilapidado pelo crescimento da importação de equipamentos industriais em geral (não substituídos durante a guerra) e de bens de consumo (geladeiras, automóveis, uísque, etc.). Nos anos 1947-1949, o rombo no balanço de pagamentos superou US$335 milhões, que o superávit comercial (1948-1949) não pôde cobrir. Os compromissos foram então cumpridos com empréstimos e a entrada de capitais estrangeiros, formando um círculo vicioso. Criminosa foi a solução aceita para receber os créditos com Inglaterra e França, então cerceadas pelo Plano Marshall. A Inglaterra liquidou seus débitos vendendo empresas ferroviárias sucatadas ao Brasil em condições absolutamente vantajosas (para ela). A Duperial (leia-se Orquima, ou Augusto Frederico Schmidt) exportava areias monazíticas para os EUA, comprometendo a segurança nacional.

Em política externa, Dutra atrelou o Brasil aos EUA, cuja propaganda brandia a quimera de que a defesa da paz, núcleo da política externa da URSS, servia tão somente para “ganhar tempo”. Em julho de 1941, Truman, então senador, declarara: “Se virmos que a Alemanha está a vencer, temos de ajudar a Rússia, mas se for a Rússia que estiver a vencer, então temos que ajudar a Alemanha e, assim, eles que se matem o mais possível”. Em março de 1946, discursando nos EUA, Churchill defendera uma “guerra política” à URSS. Então, em dezembro do mesmo ano, Inglaterra e EUA fundiram as zonas alemãs sob seu controle. Em poucos meses, a França fez o mesmo. Em junho de 1948, os três países reformaram o marco de surpresa, objetivando abrir uma crise na zona soviética, objeto de transformações socialistas. Não tardou a surgir a República Federal da Alemanha (setembro de 1949), consumando a divisão do país. Em 1951, seria reconstituído o exército alemão, violando os acordos da Conferência aliada de Potsdam (julho-agosto de 1945). Em 1954, numa outra violação, a RFA ingressaria na Organização do Tratado do Atlântico Norte.

A OTAN foi fundada em 4/04/1949, numa ampliação do Pacto de Bruxelas (1948). Nela ingressaram EUA, Itália, Canadá, Noruega, Dinamarca, Islândia e Portugal. A formação do bloco militar anti-soviético significou a travessia do Rubicão nas relações internacionais no pós-guerra. Em março de 1949, Truman afirmou: “A liberdade é mais importante do que a paz”. No mês seguinte, em 7 de abril, ele admitiu o uso da bomba atômica para “preservar a paz”. Eclodiu então uma onda de protestos contra a gestação da III Guerra.

No dia 9, no Distrito Federal, foi realizado o 1° Congresso Brasileiro de Defesa da Paz, na sede da UNE, por iniciativa da Organização Brasileira de Defesa da Paz e da Cultura. De sua direção faziam parte, entre outros: Alvaro Moreyra, Aparício Torelli, Astrojildo Pereira, Caio Prado Júnior, Cândido Portinari, Érico Veríssimo, Graciliano Ramos e Oduvaldo Vianna. Paulo Cavalcanti também participou do ato, caindo vítima da repressão policial: “À última hora, já a UNE repleta de delegações de fora, seu auditório pequeno para tanta gente, veio a notícia de que o presidente da entidade, o estudante Genival Barbosa, estava preso no gabinete do ministro da Educação, Clemente Mariani. As autoridades federais queriam forçá-lo a mandar evacuar a sede da organização, desautorizando a reunião dos partidários da paz. Como não o conseguissem, deram ordens à polícia política para dissolver a manifestação. Eu estava na mesa diretora dos trabalhos, mal iniciada a sessão de abertura, quando o grande salão da UNE foi invadido pelo Delegado Cecil Borer e seus policiais. Reconhecido pelos cariocas, Borer sacou do revólver e dirigiu-se à presidência dos trabalhos, então entregue ao médico Mário Fabião. Nesse momento, a massa começou a vaiar Borer e seus agentes. Soaram os primeiros tiros, a multidão comprimindo-se entre as cadeiras, procurando sair do alcance das balas”.

No dia seguinte, o Jornal do Brasil divulgou a versão de que compareceram ao ato “trezentas pessoas entre as quais conhecidos comunistas e tidos pelas autoridades como perigosos elementos de agitação”. Tratava-se de ato subversivo “organizado por elementos comunistas ou simpatizantes ao qual aderiram inúmeras pessoas de boa-fé. Sua finalidade, sob o disfarce de ser feita intensa campanha para evitar uma nova guerra, outra não era senão obedecer às ordens do Kominform de agitar as massas contra o recente pacto do Atlântico, fazendo a Rússia Soviética e seus satélites passarem como vítimas de um suposto complô internacional, visando fazer-lhes a guerra”.

O JB ignorava que os EUA aprovaram, em 3/11/1945, o plano de bombardeamento da URSS, sob o título “20 alvos atômicos da União Soviética”? O plano recomendava: “A principal característica da arma atômica é a capacidade de liquidação de grandes aglomerações, particularidade que deve ser utilizada, bem como outras qualidades desta arma”. Nas cidades listadas viviam 13 milhões de pessoas. Mas em 25/09/1949, a agência soviética TASS noticiaria que a URSS testara sua primeira bomba atômica. A política ianque “desde posições de força” não teria mais qualquer base real. O JB alegava que os pacíficos policiais (total de 31) foram agredidos de surpresa com cadeiras, socos e pontapés por uma “guarda de choque comunista” e, por causa disso, foram obrigados a disparar balaços para todos os lados. Baseado nos informes da polícia política, o JB relacionou alguns dos feridos, um deles, João Saldanha, contundido no tórax. Após o massacre, foram presas cerca de cem pessoas.

Sigamos o relato do próprio Saldanha: “O cara deu um tiro à queima-roupa, nas costas. A bala calibre 32 bateu na ponta da costela do lado esquerdo. O cara tentou dar no coração, mas a bala resvalou no osso, atravessou a parte côncava da coluna fazendo risco preto, e foi se alojar na pleura do pulmão direito. Meu instinto de sobrevivência foi maior: pulei pela janela dos fundos, caí num terreno baldio. Pulei um muro, mas não agüentei: fiquei estatelado no chão, ensopado de sangue, aos pés da polícia. Semiconsciente, ouvi: Leva este para o Pronto-Socorro. (…) Quatro, cinco horas depois de eu levar o tiro, me colocaram numa sala de cirurgia. Tiraram uma radiografia, e nada de operar. Apesar dos remédios, eu estava lúcido, vendo uma porrada de guardas com cara feroz. Pensava: Vão sumir comigo. Era no andar de cima e fui num carrinho. A camisa estava furada e ficou lá na Emergência, mas o paletó, com um baita furo nas costas, foi pendurado na maca. Subi e fui para a sala de raios X. Depois, novamente fui para a sala de cirurgia. Mexeram na coisa, mas sem tocar na bala ou no pulmão. Nesse meio tempo, nova radiografia. Apareceu um cara e disse que voltava. Na porta ficou um tira. Mas havia uma janela que dava para uma varanda do segundo andar. Ou era o terceiro. Senti o drama, pois já sabia do resultado do entrevero. Pulei da maca e doeu um pouco as costas. Mas não era dor muito forte. Eu estava meio escabreado, pois passei as mãos pelo ferimento e senti o buraquinho. Como não tinha saída pelo lado da frente, percebi que a bala estava pelas costas. Onde, eu não sabia. Mas sangrava um pouco. A dor era fraca e resolvi sair da maca e ver a tal janela. Abri devagar para não atrair o sentinela que estava do lado de fora no corredor da frente. A janela dava para a varanda que circundava, lá por cima, o pátio interno. Não vacilei e me mandei por ali, fazendo a volta na tal varanda. Fui até o outro lado. Havia uma escada de ferro, dessas em caracol. Fui descendo até o térreo e tentei fugir pela saída das ambulâncias. Mas lá estava coalhado de soldados do Exército e de tiras, comandados por um general, Zenóbio da Costa, que gritava muito com o povo que estava na rua. Dei para trás, e no pátio havia um muro não muito alto”.

Na primeira metade da década de 50, o Pronto-Socorro sofreu uma completa reforma, originando o atual Souza Aguiar. A atual Emergência fica no 1° andar (térreo), a sala de raios X, no 2° andar, e a sala de cirurgia, no 3° andar, como em abril de 49. Ainda não existia o prédio do HEMORIO, separado do Pronto-Socorro justamente pelo muro mencionado.

João prossegue: “Não tive dúvida: pulei o tal muro e mais um outro que dava nos fundos de uma casa velha que era ao lado do Souza Aguiar. Na tal casa havia uma porta que estava fechada. Tive a idéia e bati na porta umas duas vezes e bem forte. Veio um homem, abriu e perguntou de onde eu saíra. Olhei para dentro e vi que era uma casa funerária e que estava preparada para um velório. (…) Entrei por um corredor cheio de caixões e dei na rua. Mas fui me mandando e o cara atrás, fazendo psiu, psiu, ei…”. A Capela Funerária Santa Terezinha ainda está lá, separada do Hospital por dois muros. João virou à direita, entrou pela Rua Visconde do Rio Branco e sumiu na Rua Gomes Freire: “Eu estava com o paletó, mas sem a camisa, o que dava uma aparência estranha. Mas que remédio? Era a roupa que eu tinha. A camisa um pouco ensangüentada tinha sido garfada no hospital. Praxe da casa. Então fui na direção de um táxi. O chofer ainda olhou meio apalermado, mas dei a ordem firme: Toca para o Flamengo, Rua Paissandu. Dei a ordem assim como marginal e acho que ele achou melhor obedecer e tocou para o Flamengo. Meti a mão no bolso e achei uma nota de vinte. O táxi foi doze e dei quinze para o chofer. Então fui à casa de um amigo ali na rua Barão do Flamengo, arrumei outra camisa e um médico que veio examinar o ferimento”.

O doutor Nova Monteiro foi quem extraiu a bala: “Tirei esta bala com anestesia local na casa dele. A bala bateu no osso e ficou ali mesmo. A Hilda telefonou e eu fui lá. Tirei a bala em casa. Peguei a caixinha de ferro. Anestesia local e tirei em casa”.

João Saldanha tornou-se o que, no jargão partidário, chama-se funcionário: “Saí pela Argentina, Chile, México. Na cidade mexicana de Vera Cruz peguei um navio rumo à França, passando pela Espanha”. Ao chegar, foi contratado pela agência de notícias de Aldo Savério: “O objetivo inicialmente seria o da chegada do exército de Mao em Pequim. Mas me atrasei um pouco na viagem. Saí de Paris para Praga. De lá a Moscou e daí, pelo Transiberiano, até perto de Mukden, capital da Manchúria. Como havia sido uma zona conflagrada, o trem parava às vezes vários dias em um local qualquer. Entrei na China pela Mongólia Interior, onde fica Chita. Dali, parando e andando de trem para Po-He-tu, Tsar-Lan-dum, Tsi-Tsi-har. Até Harbin o trem foi relativamente rápido. (…) Na Sibéria chegou a ter uns trinta vagões e mais os de carga. Mas quando pulamos para a Mongólia, numa bitola bem mais estreita, não passava de cinco ou seis carros. (…) Não aconteceu nada de anormal e fomos tomar um ônibus velho, já perto de Chang-chun, que, aliás, estava bem destruída: as casas e edifícios da bela cidade seriamente danificados. (…) E, caramba, já tínhamos passado por várias cidades grandes, principalmente na Manchúria, que estavam praticamente intactas. Harbin, importante entroncamento ferroviário, Mukden, uma cidade moderna. Dali, nós demos um pulo até a península da China, que dá para o Mar da China, e pude ver Port Arthur e Dairen. (…) Ouso dizer que Dairen, por exemplo, cidade de um milhão de habitantes na época, era muito parecida com Porto Alegre. (…) Tínhamos três intérpretes muito bons. Chegamos a ser quinze, mas normalmente não passávamos de seis. Os outros foram até Pequim, no dia 2 de outubro de 49, e se mandaram de volta. Os intérpretes falavam bastante bem o Francês e o Inglês. Um deles falava Russo. (…) A chegada em Pequim das tropas de Mao foi muito bem programada. Quando lá aportamos, no dia 2 de outubro, eles já estavam lá há muito tempo e Chiang Kai-shek tinha escapado para Hainan, ilha perto de Cantão, no extremo sul”.

Saldanha não queria perder a Copa do Mundo. Seu trabalho na China estava concluído. Então não teve dúvida: “Resolvi por conta própria dar um pulo no Brasil. Com o fim da Copa, voltei para a França”.”