Neste artigo de novembro de 2009, o secretário-geral do PCB, Ivan Pinheiro, relembra a figura de “Dona Dolores”, falecida mãe de Zuleide Faria de Melo, e sua contribuição para a manutenção do PCB em inícios dos anos 1990. Merecida homenagem a esta doce figura, que engrossa as fileiras dos milhares de heróis anômimos que ajudaram a manter o PCB de pé nesses 90 anos.
Faleceu esta semana a Dona Dolores. Desconhecida da imensa maioria dos militantes do PCB, foi uma das figuras mais importantes na luta em defesa do Partido, nos anos 80 e 90 do século passado. Teimosa, esperou fazer 100 anos para nos deixar. Não queria fazer por menos.
Quando sua dileta filha Zuleide estiver recebendo em março do ano que vem a Medalha Dinarco Reis – que lhe foi atribuída pela aclamação do XIV Congresso Nacional do PCB – Dona Dolores também estará presente na memória de todos aqueles que tivemos o privilégio de conhecê-la ainda jovem, no vigor de seus oitenta anos.
A Zuleide teve a quem sair. Sua mãe era inquebrantável. Sem exagero, é difícil imaginar a epopéia da manutenção do PCB sem o suporte material e afetivo que Dona Dolores nos assegurava. E não era apenas porque sua filha era a timoneira desta luta; ela tinha consciência política e simpatia pelo Partido.
O apartamento aconchegante da Praia de Botafogo, onde as duas guerreiras moravam, deveria ser tombado ao patrimônio histórico do PCB. Antes do nono Congresso do Partido, que se deu em 1991, foi um “aparelho” de articulação política e, depois do Congresso, a sede de fato do Movimento Nacional em Defesa do PCB.
Foi ali que começaram as primeiras “conspirações do bem”, ainda em 1989, depois que ficou claro que a maioria do Comitê Central – aproveitando-se da crise do processo de construção do socialismo – queria acabar com o PCB, após uma década de conciliação de classes. Entre um cafezinho e outro, servidos por Dona Dolores, ali conspiravam alguns membros minoritários do CC dispostos a resistir. De início, eram dois eminentes professores (Horácio e Zuleide) e um bancário.
A ampliação gradual deste núcleo, antes do nono Congresso, teve um marco importante quando esta articulação veio à luz do dia com o manifesto “Fomos, somos e seremos comunistas!”, assinado por diversos camaradas do RJ.
O movimento ganhou grande impulso quando, quase simultaneamente, torna-se pública uma outra “conspiração do bem” que vinha se desenvolvendo em São Paulo, por coincidência, comandada por dois eminentes professores (Edmilson e Mazzeo) e uma bancária. Com outros camaradas do Comitê Municipal de SP, divulgam o manifesto denominado “Plataforma da Esquerda Socialista”.
A decisão sobre a organização do que veio a ser chamado mais tarde Movimento Nacional em Defesa do PCB, se deu poucas semanas antes do nono Congresso, numa reunião quase clandestina entre os “conspiradores” paulistas e cariocas, na então sede do Comitê Municipal do PCB em São Paulo, numa madrugada de sábado para domingo, no porão da casa, para que as luzes não fossem vistas de fora por algum simpatizante do liquidacionismo. Com a militante cumplicidade do camarada Waldomiro, que nos abriu a sede, onde morava como segurança e zelador, varamos a madrugada organizando nossa atuação no Congresso e os desdobramentos. A partir deste momento, a articulação se nacionalizou, fincando raízes, de forma heterogênea, na maioria dos Estados brasileiros.
O resultado é que conseguimos, com intenso trabalho entre os delegados, derrotar a maioria do CC, que havia apresentado ao Congresso uma tese pelo fim do PCB e por uma “nova formação política”. Nos discursos anteriores à votação, um dos liquidacionistas chegou a dizer que “o PCB era um cadáver fétido e insepulto, que precisava ser enterrado”. Ganhamos esta votação por cerca de 52% dos votos. No entanto, surpreendentemente, elegemos menos de um terço do Comitê Central.
Instalada oficialmente a luta interna para as próximas batalhas, precisávamos de uma sede nacional.
É nessa hora que se agigantam as duas alagoanas de aparência frágil. Sua residência se transforma na prática na sede do Movimento Nacional em Defesa do PCB. Graças ao decisivo suporte de Dona Dolores, Zuleide coordena diuturnamente as ações de um movimento que, aos poucos, vai se transformando no próprio PCB. Foi na casa de Dona Dolores que foram adotadas todas as principais decisões e providências do comando informal do Movimento.
Era ali que funcionava o telefone, o fax, a máquina de escrever; onde ficavam os arquivos, o material de expediente. Havia um quarto de hóspedes para os camaradas que vinham de fora, uma sala para reuniões e refeições e uma cozinha que funcionava a pleno vapor.
Ali funcionavam, portanto, o que corresponde às Secretarias de Organização, Finanças, Comunicações e, por incrível que pareça, Relações Internacionais. Era ali também que recebíamos camaradas do movimento comunista internacional, o que me permitiu conhecer, em dias diferentes, os dois portugueses que mais me orgulham da minha dupla nacionalidade: Álvaro Cunhal e Miguel Urbano Rodrigues.
Era nesses dias de gala da “sede nacional”, que mãe e filha se superavam e se completavam, em educação, simpatia, capacidade de trabalho.
Eu, que fui certamente o maior freqüentador daquele generoso ambiente, onde me sentia em família, nunca vi nenhuma das duas reclamar de nada, nem do trabalho nem das despesas que aquela militância consumia das duas.
Quando tive a honra de homenagear a Zuleide, no ato em que ela recebeu a Medalha Abreu e Lima, da Casa da América Latina, disse que ela é um exemplo de militante comunista, de intelectual orgânico. Quantas vezes a ouvi em brilhantes palestras; quantas vezes a vi na rua, panfletando. Tudo enquanto Dona Dolores, que praticamente não saía de casa, zelava pela nossa sede nacional, para que pudéssemos seguir na luta.
O PCB deve muito a elas.
Companheira, Amiga e Camarada Dona Dolores, presente!