Reboquismo e dialética – resenha de Antonio Carlos Mazzeo

Confira resenha de Antonio Carlos Mazzeo sobre a obra Chvostimus und Dialektik, que pode ser traduzida comoReboquismo e dialética”, de György Lukács. Publicado originalmente na terceira edição da revista Novos Temas.

“Este é um ensaio inédito de György Lukács, que até bem pouco tempo era desconhecido, tanto que o próprio Lukács pensava que havia sido destruído. Um grupo de pesquisadores descobriu recentemente este texto, escrito em meados dos anos 1920, abrindo os arquivos do Komintern seção do PCUS (Partido Comunista da União Soviética) em Moscou, com o título em alemão Chvostimus und Dialektik (que poderia ser traduzido como Reboquismo e Dialética – onde o autor parafraseia a expressão de Lenin, em seu livro Que Fazer, para indicar as tendências espontaneístas do movimento operário russo que se recusavam aceitar o papel da vanguarda e da necessidade do partido revolucionário).

A edição húngara, em língua alemã, é datada de 1996, publicada pela Áron Verlag de Budapeste, sob responsabilidade de Lázlo Illés. A edição italiana de 2007, publicada como Coscienza di Classe e Storia – Codismo e Dialettica, nos facilita o acesso a esse livro escrito imediatamente após o surgimento das críticas, do hoje clássico texto de fi losofi a marxista, História e Consciência de Classe, de 1923, para rebater as vozes das críticas sectárias, como as de Abraham Deborin e por seu camarada do PC húngaro Lászlo Rudas, expostas nos números IX, X e XII da revista Arbeiterliteratur, além da realizada por Zinoviev que praticamente “escomunga” História e Consciência de Classe, no V Congresso do Komintern, vociferando contra o “revisionismo teórico dos professores”.

Chvostimus und Dialektik percorre criticamente os temas centrais de HCC fazendo uma serrada autodefesa do signifi cado do método dialético, contrapondo-o ao mecanicismo de viés positivista e ao determinismo de seus críticos, principalmente em relação à problemática da dialética da natureza e à questão da “consciência adquirida”.

Apesar de ser um texto distinto e com fisionomia própria, Chvostimus und Dialektik está umbilicalmente ligado à HCC quer pela temática afrontada, tanto na defesa intransigente de elementos chaves desenvolvidos em HCC, como por sua disposição de colocar Marx e o marxismo no campo do debate filosófico, inclusive denunciando as críticas de vezo mencheviques e as abordagens rebaixadas, como as realizadas respectivamente por Deborin e Dunker. De modo que impossível falar de Chvostimus und Dialektik sem que nos remetamos à História e Consciência de Classe.

Para situar o contexto histórico e a relevância de Chvostimus und Dialektik, é importante ressaltar que História e Consciência de Classe constitui um marco na história do marxismo do século XX e segundo alguns autores, inaugura o que chamam de “marxismo ocidental” – definição essa bastante problemática porque já em sua essencialidade é redundante, se atentarmos que o marxismo por suas origens é resultado de um radical produzido no próprio ocidente.

De qualquer modo, HCC sacudiu não somente o marxismo mas também o conjunto do pensamento filosófico e político do século XX, impactando inclusive autores não marxistas, como Martin Heidegger, Sartre e Merleau-Ponty, entre outros. Inegavelmente, o processo revolucionário desencadeado com a Revolução de 1917 obrigou à teoria social confrontar-se com a realidade e com “verdades estabelecidas” no plano das análises societais. Especialmente no campo do marxismo estimulou jovens intelectuais revolucionários a elaborar interpretações inovadoras e instigantes para o movimento comunista e socialista revolucionário como, além do próprio Lukács e de Karl Korch, Ernst Bloch e Antonio Gramsci.

Mas aqueles eram anos de confrontos e de revoluções que proporcionaram explosões criativas na teoria social marxista, e ao mesmo tempo paixões e sectarismos nos meios intelectuais revolucionários. No contexto de um mundo já hegemonizado pela fase imperialista do capitalismo era fundamental compreender teoricamente os elementos complexos das realidades concretas das particularidades sociais capitalistas1. A angústia de se rebater o sectarismo teórico presente no movimento comunista sofria, muitas vezes, a contrapartida de pressupostos utópico-messiânicos dos jovens intelectuais revolucionários de extração pequeno-burguesa, como no próprio caso de Lukács2.

Mas se, de fato, HCC possuía um núcleo inegavelmente idealista, onde aflora sua repulsa ao cientificismo socialdemocrata, o livro ainda que permeado pelo dinamismo do devir e pelo “frenesi da prática”, como bem define Tertulian3, resgatava para o marxismo e já com grandes mediações teóricas, após decênios de olvido, as grandes conexões e as relações antitéticas do marxismo com a tradição hegeliana, além de recolocar na ordem do dia as obras de juventude de Marx. Como observa o próprio Lukács, em seu conhecido prefácio de 1967, nem todas as ideias contidas em HCC eram falsas4, como é patente no artigo O Que é Marxismo Ortodoxo (conceito que se contrapõe fortemente à visão dogmática do marxismo) que evidenciava as infinitas possibilidades analíticas da realidade postas pelas categorias dialético-materialistas presentes no conjunto da teoria social marxiana, exatamente centradas em seu “método”.5

Mais ainda, nota-se em HCC, um grande esforço para expor as categorias da dialética em suas objetividades e em seus reais movimentos e que, segundo Lukács, já apontavam para o entendimento da ontologia marxiana do ser social, quando expõe a fundamental categoria da mediação, elemento central para a superação das meras imediaticidades do empírico.6 HCC recoloca, ainda, no centro do debate teórico marxista o problema da alienação (Entöusserung) e do estranhamento (Entfremdung), mesmo que muito permeado pela Weltanschauung hegeliana, justamente ao enfatizar o estranhamento não como resultado de relações sociais objetivas, mas como condition humaine.

Além dessas questões fundamentais para o necessário avanço da teoria social marxiana, problemas conceituais como coisificação e o reflexo nas formas de conhecimento são abordados e esboçados em HCC, mesmo que desvirtuados por uma visão que priorizava o “praticismo”, isto é, a conexão imediata entre prática e teoria, ou no dizer de Lukács, a fragmentação do nexo dialético-ontológico entre imediaticidade e mediaticidade. História e Consciência de Classe é um grande manancial intelectual do filósofo marxista húngaro, um laboratório teórico-filosófico onde podemos ver seu caminho em direção à teoria social de Marx, onde se evidenciam a gênese de suas obras mais brilhantes, as monumentais Estética e a Ontologia do Ser Social.

Pode-se dizer ainda que, em Chvostimus und Dialektik (Reboquismo e Dialética), “pequena grande” obra de autodefesa, escancaram-se as debilidades do jovem Lukács em relação à teoria social de Marx, mas por outra parte, verificam-se continuidades e rupturas com HCC evidenciando o aprofundamento da transição intelectual do filósofo húngaro, principalmente a que está em processo na imediata pós-publicação de HCC, em que também já arrolando elementos de autocrítica7, retoma e defende aspectos fundamentais da teoria marxiana que foram desenvolvidos em HCC, como a teoria do reflexo (Abbildtheorie) o problema da reificação (Verdinglichung), e a questão da totalidade como elemento analítico nodal para conhecer e transformar a realidade objetiva e a problemática da subjetividade revolucionária, temas que serão revisitados mais adiante, já sob a luz das leituras dos Manuscritos Econômicos Filosóficos de 1844 de Marx, descobertos nos arquivos de Marx e Engels nos inícios dos anos 1932, em Moscou.

Só nos resta, agora, aguardar ansiosamente pela edição brasileira.”

1 Como acentua Lukács, “Uma gigantesca transição histórico-universal estava, então, pugnando por encontrar expressão teórica. Quando uma teoria, ainda sem expressar a essência objetiva da grande crise, formulava pelo menos uma atitude típica em relação a seus problemas básicos, poderia conseguir certa importância histórica. Eu creio que isso ocorreu com História e consciência de Classe.”, György Lukács, Historia y Consciencia de Clase, México, Grijalbo, 1969, p. XXVI, Prefácio do autor de 1967.

2 Veja-se idem, p. XVII. Sobre essa questão, ressalta José Paulo Netto: “[…] O messianismo revolucionário de que estava imbuído o filósofo conduziu-o a um utopismo radical e a tomadas de posição tais que Lenin não hesitou em considerá-lo “esquerdista”: messianismo e utopismo, por outra parte, que se colavam teoricamente numa particular leitura da obra de Rosa Luxemburg” […]” José Paulo Netto, Sobre Lukács e a Política, In: http://pcb.org.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=2426:sobre-lukacs-e-a-politica &catid=34:marxismo&Itemid=30. Acesso em 11 de março de 2011.

3 Cf. Nicolas Tertulian, Georg Lukács: etapas de seu pensamento estético. São Paulo: Ed.Unesp, 2008, p. 45.

4 G. Lukács, op. cit., p. XXVII.

5 “Assim, o marxismo ortodoxo não significa reconhecimento acrítico dos resultados da investigação marxiana, nem ‘fé’ em tal ou qual tese, em interpretação de uma escritura ‘sagrada’. Em questões de marxismo a ortodoxia refere-se exclusivamente ao método.”, ibidem, p. XXVIII.

6 Como enfatiza Lukács em seu prefácio, de 1967, veja-se ibidem.

7 “[…] eu mesmo, no prefácio do livro [Lukács refere-se ao prefácio da primeira edição de História e Consciência de Classe] o caracterizei expressamente como livro para discussão. Penso que alguns de seus aspectos necessitem ser corrigidos; muitas coisas as formularia hoje em modo bastante diverso.” G. Lukács, Coscienza di Classe e Storia – Codismo e Dialettica, Roma, edizioni Alegre, 2007, p. 17.