Neste artigo, Dênis de Moraes vai afirmar que as relações entre a intelectualidade e a política no Brasil através da figura de Graciliano Ramos.
As relações entre a intelectualidade e a política no Brasil têm se caracterizado por tensões entre três quadros cíclicos: a) cooptação de segmentos da elite pensante pelas esferas de poder; b) contestações de escritores e artistas às estruturas hegemônicas, com diferentes estratégias e táticas de ação; c) interferências ideológicas sobre a criação cultural. Em qualquer dos cenários, os intelectuais equilibram-se numa corda bamba entre os ideários estéticos, as convicções filosóficas e as dificuldades de sobrevivência em um país onde suas atividades prosperam em torno da vida acadêmica, da mídia e de órgãos e apoios governamentais.
Empenhados em revelar e interpretar sentidos para a existência, os intelectuais procuram traduzir projetos individuais, anseios coletivos e utopias. Mas, quase sempre no olho do furacão, não escapam de percalços e turbulências. Ora veem-se enredados pelos arranjos das classes dominantes para deter uma participação popular mais intensa nas mudanças sociais, ora enfrentam pressões para adequar seus propósitos a circunstâncias políticas. No curso dessas reviravoltas, o espaço de manobra oscila entre a proximidade com o aparelho do Estado, a insubmissão ao status quo e os dilemas para conciliar produção simbólica e ideologia.
A geração de talentos artísticos de que fez parte o escritor Graciliano Ramos vivenciou contradições típicas de uma sociedade civil desorganizada e frágil, em face da qual o Estado se agigantou como sujeito das iniciativas voltadas à conservação de hegemonias. A experiência de cooptação incluiu a atração pela burocracia do Estado Novo da fina flor da literatura e das artes. Na lógica pragmática do Palácio do Catete, importava atrair competências para legitimar e conduzir projetos de modernização cultural. A meta era cultivar mitos e tradições dentro da visão burguesa, transmitindo-os às outras classes pelo sistema escolar e pelos meios de comunicação. Nas palavras de Getúlio Vargas, empossado em 1943 na Academia Brasileira de Letras, era chegado o momento de os intelectuais se juntarem ao governo “numa campanha tenaz e vigorosa em prol do levantamento do nível mental e das reservas de patriotismo do povo brasileiro, colocando as suas aspirações e as suas necessidades no mesmo plano e na direção em que se processa o engrandecimento da nacionalidade” [1].
Escritores detestavam a ditadura Vargas e o fascismo, mas recebiam dos cofres públicos por serviços prestados ao Ministério da Educação, comandado habilmente por Gustavo Capanema, com o auxílio de seu chefe de gabinete, Carlos Drummond de Andrade. Capanema nomeou, como inspetores federais de ensino secundário, Graciliano Ramos, Manuel Bandeira, Marques Rebelo, Murilo Mendes, Henriqueta Lisboa e Abgar Renault. Designou Augusto Meyer e Sérgio Buarque de Hollanda, respectivamente, para o Instituto Nacional do Livro e a Biblioteca Nacional; Rodrigo Melo Franco de Andrade para o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (concebido a partir de projeto encomendado a Mário de Andrade, que também contribuiu com o Instituto Nacional do Livro). Oscar Niemeyer e Lúcio Costa detalharam o projeto de Le Corbusier para o novo prédio do MEC no Rio de Janeiro, um clássico do modernismo arquitetônico. Cândido Portinari pintou, com beleza incomparável, os murais daquele edifício.
Graciliano trazia azedume na língua ao falar da situação marginal dos escritores que ingressavam no serviço público: “Como a profissão literária ainda é uma remota possibilidade, os artistas em geral se livram da fome entrando no funcionalismo público”. De fato, com o mercado editorial restrito a capitais do Sudeste e do Sul, viver de direitos autorais era uma miragem. O clássico Vidas secas (1938) demorou nove anos para chegar à segunda edição e 14 à terceira. Para cobrir as despesas familiares, Graciliano desdobrava-se: escrevia pela manhã, trabalhava à tarde como inspetor federal de ensino e à noite, de 1947 em diante, como redator do Correio da Manhã. A imprensa, com efeito, foi abrigo protetor para intelectuais, principalmente para aqueles que traziam no sangue, além da paixão por palavras e teclas, o cheiro de tinta inconfundível das redações. Os grandes jornais do Rio de Janeiro ofereciam empregos estáveis ou bicos a uma galáxia de escritores-jornalistas como Antonio Callado, Otto Lara Resende, Francisco de Assis Barbosa, Otto Maria Carpeaux, Franklin de Oliveira, Álvaro Lins, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga.
Incumbido da propaganda do regime e da censura, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) neutralizava as empresas jornalísticas com subsídios mensais, a título de publicidade. Em suas publicações, pagava por cinco laudas 100 mil réis (cerca de R$ 300,00), enquanto nos principais jornais o salário de um bom redator não ultrapassava 800 mil réis. Não é difícil entender por que Graciliano, José Lins do Rego, Vinicius de Moraes, Érico Veríssimo, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Gilberto Freyre, Murilo Mendes, Tristão de Athayde, Cecília Meireles, Adalgisa Nery e tantos outros escreviam para publicações governamentais. Oportuno registrar que, na maioria dos casos, a natureza da colaboração não se confundiu com cumplicidade ou adesismo. Antonio Candido, com sabedoria, separa os intelectuais que “servem” dos que “se vendem”, para que não surjam juízos apressados sobre casos distintos na órbita do poder [2]. Os intelectuais integravam-se à máquina estatal na condição de “funcionários subalternos das superestruturas” [3] e não tinham poder de definir políticas públicas nem de formular premissas ideológicas.
Graciliano jamais renunciou a uma literatura de forte teor crítico, a despeito de revisar textos e redigir crônicas sobre costumes nordestinos para a revista Cultura Política, do DIP, entre abril de 1941 e agosto de 1944. A necessidade financeira obrigava-o a aceitar estes encargos cumulativamente com os de inspetor de ensino. Cultura Política reunia intelectuais de diversas tendências, como Nelson Werneck Sodré, Marques Rebelo, Luís da Câmara Cascudo, Herberto Sales, Guerreiro Ramos, Peregrino Júnior e Gilberto Freyre. A sustentação doutrinária competia a nomes identificados com o Estado Novo, como Azevedo Amaral, Cassiano Ricardo, Almir de Andrade, Menotti Del Picchia e Francisco Campos.
Basta consultar as crônicas de Graciliano no livro póstumo Viventes das Alagoas para constatar a ausência de uma frase sequer de loas ao autoritarismo ou a Vargas. Do mesmo modo, é possível verificar a ironia corrosiva com que aborda mazelas sociais que persistiam sem solução, apesar da retórica redentora que permeava o discurso oficial. Embora o exercício de um cargo técnico não o exima do paradoxo de ingressar num governo que o encarcerara dez meses e dez dias, sem culpa formada, cabe considerar que se tratava de uma função inexpressiva, com salário modesto. Ex-preso político e fichado na Polícia Política como “suspeito de exercer atividade subversiva”, ele odiava o Estado Novo a ponto de cuspir no chão toda vez que alguém se referia à ditadura na roda literária da Livraria José Olympio. “É o nosso pequenino fascismo tupinambá”, praguejava.
Escritores e artistas estiveram na linha de frente contra o nazifascismo. Em junho de 1942, 100 intelectuais — entre os quais Graciliano, Moacir Werneck de Castro, Astrojildo Pereira, Hermes Lima e Samuel Wainer — assinaram manifesto descrevendo a guerra como “nada mais do que o choque histórico decisivo entre as forças progressistas que visam ampliar e consolidar as liberdades democráticas e as forças retrógradas, empenhadas em manter e alargar no mundo inteiro os regimes de escravidão”. Nos estertores do governo Vargas, o Primeiro Congresso dos Escritores, realizado em janeiro de 1945 em São Paulo, bradou por liberdade de expressão, anistia, eleições diretas e desenvolvimento econômico.
Após a derrocada do Estado Novo, boa parte da intelectualidade mergulhou de corpo e alma na política — uns na UDN, outros no Partido Socialista Brasileiro, muitos no Partido Comunista Brasileiro, que enfim ganhava direito à legalidade. A ideia de que, com a vitória dos Aliados na Segunda Guerra, o futuro imediato poderia ser repensado em bases igualitárias identificou-se com as propostas socialistas. A tarefa do artista consistia em produzir obras comprometidas com as causas populares, e que elevassem o nível cultural das massas.
Dessas certezas partilhavam Graciliano Ramos e os escritores Jorge Amado, Aníbal Machado, Astrojildo Pereira, Álvaro Moreyra, Caio Prado Júnior, Dyonélio Machado e Dalcídio Jurandir; os artistas plásticos Cândido Portinari, Di Cavalcanti, Carlos Scliar, Djanira, José Pancetti, Quirino Campofiorito, Bruno Giorgi, Abelardo da Hora e Israel Pedrosa; os jornalistas Moacir Werneck de Castro e Aparício Torelly; os dramaturgos Oduvaldo Vianna, Dias Gomes e Joracy Camargo; os maestros Francisco Mignone e Guerra Peixe; o pianista Arnaldo Estrela; os arquitetos Oscar Niemeyer e Vilanova Artigas; o crítico de cinema Alex Viany; os economistas Alberto Passos Guimarães e Ignacio Rangel; os atores Mário Lago e Eugênia Álvaro Moreyra, entre outros que aderiram ao PCB.
Mas o que aguardava por esses cérebros privilegiados não seria a relativa independência que marcou a convivência ambígua com o Estado Novo. A partir de 1947, com o agravamento do conflito entre Estados Unidos e União Soviética, as bandeiras das superpotências demarcavam o campo de conflitos entre capitalismo e socialismo. A repercussão da guerra fria no plano interno não tardou. O PCB foi perseguido pelo governo Eurico Gaspar Dutra e pelas forças conservadoras, que criaram, com apoio da imprensa, atmosfera favorável à suspensão do registro do partido em maio de 1947 e à cassação dos mandatos de seus parlamentares em janeiro de 1948, em sequência ao rompimento diplomático com a União Soviética. Acossados pela repressão, os comunistas abandonaram a política de frente democrática, que estimulara 200 mil filiações ao PCB entre 1945 e 1947, e passaram a pregar a via insurrecional. O resultado foi desastroso, com o partido isolando-se na opinião pública e perdendo muitos adeptos.
Tornou-se problemático resguardar as peculiaridades artísticas do assédio dos ditames ideológicos. Como levar adiante a índole imaginativa sem se curvar às formas consentidas de expressão? Como evitar as demandas imperiosas de um sistema articulado de valores, significados e crenças? Na essência, o dilema da intelectualidade comunista era conseguir situar-se na zona de interseção entre o pensamento livre, as atitudes válidas de contestação e a divulgação extensiva de ideias.
Enquanto Washington e seus satélites se aferraram ao anticomunismo doentio — do qual o macarthismo no front cultural foi um dos emblemas mais repugnantes —, Moscou impôs aos PCs aliados o realismo socialista como paradigma estético. A “arte proletária e revolucionária” deveria concorrer para o triunfo do socialismo, enaltecendo os feitos do regime e cultuando a personalidade de Josef Stalin. As diretrizes sectárias redundaram em obras medíocres e, pior ainda, alvejaram figuras notáveis da cultura soviética, como o cineasta Sergei Eisenstein, os escritores Fiódor Dostoievski e Boris Pasternak e os compositores Sergei Prokofiev e Dimitri Shostakovitch. A arte moderna, rotulada de “burguesa e degenerada”, precisava ser combatida sem tréguas. Os objetos artísticos caíam na emboscada percebida por Theodor W. Adorno: o doutrinarismo visa arrancá-los de seus contextos originais e submetê-los a contingências absolutas [4].
Graciliano Ramos representou uma exceção à regra no clima de adesões automáticas. Homem de partido (filiou-se ao PCB em 18 de agosto de 1945, a convite do secretário-geral, Luiz Carlos Prestes), ousou dissentir da chamada “linha justa”. E o fez por rigorosa coerência: grande artista da palavra, não hesitou em defender a integridade intelectual. O próprio ecletismo das suas predileções literárias evidencia o alto grau de autonomia. Admirava Tolstoi e Dostoievski, um degrau abaixo vinham Tchekov e Eça de Queiroz; recitava de cor poemas de Manuel Bandeira e Paul Verlaine; tinha queda indisfarçável por Émile Zola e pelos personagens de Balzac; considerava Fogo morto, de José Lins do Rego, e Terras do sem fim, de Jorge Amado, “grandes romances”.
Mesmo nas leituras do marxismo, Graciliano foi clarividente e ousado. De acordo com seu filho, o escritor Ricardo Ramos, em fins da década de 1940 Graciliano leu, em italiano, textos de Antonio Gramsci. Não apenas leu como sublinhou a extraordinária contribuição de Gramsci ao pensamento marxista, a partir de seu compromisso de buscar respostas teóricas aos problemas concretos da vida dos homens e das sociedades. Ricardo depõe: “Um dia, comentando artigo de Carpeaux sobre Gramsci, larguei uma frase infeliz, aligeirada, de que saíra de moda o teórico italiano. Meu pai veio com quatro pedras, defendendo o autor de Os intelectuais e a organização da cultura, mencionando o muito que ele esclarecera sobre o papel do escritor. Provavelmente, já trabalhando nas Memórias do cárcere, tivesse acordadas as antigas leituras dos cadernos e cartas da prisão. Ou apenas reagisse, pois lera em italiano a maior parte de sua teoria política. […] Ele falou com respeito incomum” [5].
Em várias ocasiões Graciliano ressaltou as ligações dos intelectuais com as questões de sua época. “Não há arte fora da vida, não acredito em romance estratosférico. O escritor está dentro de tudo o que se passa, e se ele está assim, como poderia esquivar-se de influências?”, declarou a Ernesto Luiz Maia (pseudônimo do jornalista Newton Rodrigues), em entrevista publicada em maio de 1944 pela revista Renovação. Em carta à irmã Marili Ramos, de 23 de novembro de 1949, escreveu: “Só conseguimos deitar no papel os nossos sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue, é carne. Além disso não há nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o que somos”.
Graciliano debruçava-se no cotidiano de escassez das classes subalternas em meio ao processo de consolidação capitalista em um país periférico. Para ele, as análises sobre o sistema social estariam comprometidas se deixassem de apreciar fatores econômicos centrais para a hegemonia burguesa entre nós. Recriminava os romancistas que não se detinham nas imbricações entre a dimensão política e infraestrutura material. Mas não resvalava no discurso determinista do marxismo vulgar, que reduz as criações culturais a simples reflexos da base econômica. O distanciamento da realidade traduzia, no entender de Graciliano, um tipo de literatura “que só se ocupa de coisas agradáveis, não se molha em dias de inverno e por isso ignora que há pessoas que não podem comprar capas de borracha, […] acha que tudo está direito, que o Brasil é um mundo e que somos felizes”. E prosseguia acusando de “insincera” a literatura “exercida por cidadãos gordos, banqueiros, acionistas, comerciantes, proprietários, indivíduos que não acham que os outros tenham motivo para estar descontentes” [6]. Ao silenciar sobre conflitos decorrentes de uma lógica produtiva perversa, os escritores abriam mão de questionar a força das classes dominantes na fixação das pautas do poder.
Isso me faz lembrar da objeção de Gramsci ao intelectual que se exime de sentir, explicar e justificar “as paixões elementares do povo” em determinada situação histórica, porque supõe, equivocadamente, que sua bagagem cultural o destaca do universo do povo-nação e o desobriga de estreitar laços com os desvalidos. Gramsci observa: “O erro do intelectual consiste em acreditar que se possa saber sem compreender e, principalmente, sem sentir e estar apaixonado (não só pelo saber em si, mas também pelo objeto do saber) […]; não se faz política-história sem esta paixão, isto é, sem esta conexão sentimental entre intelectuais e povo-nação. Na ausência deste nexo, as relações do intelectual com o povo-nação são, ou se reduzem, a relações de natureza puramente burocrática e formal; os intelectuais se tornam uma casta ou um sacerdócio (o chamado centralismo orgânico)” [7].
Quando uma obra se enclausura em temas subjetivos, o ficcionista, segundo Graciliano, tende a compor “criações mais ou menos arbitrárias, complicações psicológicas, às vezes um lirismo atordoante, espécie de morfina, poesia adocicada, música de palavras” [8]. No desengajamento intencional, transparece o desejo de ficar a distância medida da violência social e dos choques de interesses na arena política.
Da infância atormentada em Pernambuco à maturidade no Rio de Janeiro, passando pelos dois profícuos anos como prefeito de Palmeira dos Índios, Graciliano convivera de perto com os sofrimentos que provinham da opressão econômica. A história de vida extravasa e se mescla com a inspiração artística, relativizando as fronteiras entre experiência e escrita. “Nunca pude sair de mim mesmo. Só posso escrever o que sou. E se as personagens se comportam de modos diferentes, é porque não sou um só”, confidenciou ao escritor Homero Senna [9].
Vidas secas expõe, sem meias verdades, o entorno de brutalidades no sertão nordestino, numa perfeita simbiose de elementos diversos: o homem, a paisagem, a terra, os bichos, a fome, a humilhação, a seca e os destinos errantes. “O que me interessa é o homem, e homem daquela região aspérrima. […] Procurei auscultar a alma do ser rude e quase primitivo que mora na zona mais recuada do sertão, observar a reação desse espírito bronco ante o mundo exterior, isto é, a hostilidade do meio físico e a injustiça humana. Por pouco que o selvagem pense — e os meus personagens são quase selvagens —, o que ele pensa merece anotação” [10]. Nada há de fortuito no fato de o latifúndio, o coronelismo e os conflitos agrários terem sido retratados com fôlego interpelativo. Sua opção preferencial é denunciar as exclusões sem o travo dos preconceitos. Em carta a Cândido Portinari, de 15 de fevereiro de 1946, ele acentua o vínculo transcendente de ambos com o povo humilde dos grotões. “Você fixa na tela a nossa pobre gente da roça. Não há trabalho mais digno, penso eu. Dizem que somos pessimistas e exibimos deformações; contudo as deformações e a miséria existem fora da arte e são cultivadas pelos que nos censuram.”
Em abril de 1937, três meses depois de sair da cadeia, Graciliano atacou os críticos passadistas (“criaturas empalhadas em bibliotecas”) que menosprezavam autores comprometidos com as temáticas sociais: “Os inimigos da vida torcem o nariz diante da narrativa crua, da expressão áspera. Querem que se fabrique nos romances um mundo diferente deste, uma confusa humanidade só de almas, cheias de sofrimentos atrapalhados que o leitor comum não entende. Põem essas almas longe da terra, soltas no espaço. Um espiritismo literário excelente como tapeação. […] A miséria é incômoda. Não toquemos em monturos. […] São delicados, são refinados, os seus nervos sensíveis em demasia não toleram a imagem da fome e o palavrão obsceno. Façamos frases doces. Ou arranjemos torturas interiores, sem causa. […] E a literatura se purificará, tornar-se-á inofensiva e cor-de-rosa, não provocará o mau humor de ninguém, não perturbará a digestão dos que podem comer. Amém”.
Em confronto aberto com o conservadorismo, ele elogiou o ciclo regionalista de 1930, por recriar a aridez do Nordeste esquecido por elites gananciosas: “Os autores tiveram o cuidado de tornar a narrativa, não absolutamente verdadeira, mas verossímil. Ninguém se afasta do ambiente, ninguém confia demasiado na imaginação. […] Esses escritores são políticos, são revolucionários, mas não deram a ideias nomes de pessoas: os seus personagens mexem-se, pensam como nós, sentem como nós, preparam as suas safras de açúcar, bebem cachaça, matam gente e vão para a cadeia, passam fome nos quartos sujos duma hospedaria” [11].
À revista Renovação, Graciliano enfatizou que “mesmo a literatura ‘torre de marfim’ é trabalho social, porque só o fato de procurar afastar os outros dos problemas é luta social”. Mas pontuou que “os chamados romances sociais não atingiram as massas, apenas a pequena burguesia”, argumentando que “a massa é muito nebulosa, é difícil interpretá-la e saber de que ela gosta”. E acrescentou: “Se fôssemos conceituar romance social como romance dos problemas do povo, só haveria um romance social quando escrito pelo próprio operário, como já ficou dito. Um escritor pode escrever para a massa e o operário nem o ler. Eu já tentei isso quando escrevi São Bernardo, mas o povo não leu e continuo sem saber por quê. De qualquer modo, o romance social terá que ser sentido e é preciso que o personagem seja o próprio autor. Gênero popular é o folhetim, que a massa vai aceitando como entorpecente”.
Graciliano não disfarçava o desprezo pela literatura apologética. Em 1935, escreveu ao crítico mineiro Oscar Mendes: “Acho que transformar a literatura em cartaz, em instrumento de propaganda política, é horrível. Li umas novelas russas e, francamente, não gostei. O que é certo é que não podemos, honestamente, apresentar cabras do eito, homens da bagaceira, discutindo reformas sociais. Em primeiro lugar, essa gente não se ocupa com semelhante assunto; depois os nossos escritores, burgueses, não poderiam penetrar a alma dos trabalhadores rurais”. Não aceitava constrangimentos ao trabalho autoral, nem tolerava que escritores e artistas se reduzissem a meros porta-vozes de grupos de pressão. Queria proteger as palavras ameaçadas pelo apetite devorador dos preceitos ideológicos.
Na entrevista a Ernesto Luiz Maia, Graciliano foi taxativo ao rejeitar concessões ao dirigismo ideológico: “Eu não admito literatura de elogio. Quando uma ala política domina inteiramente, a literatura não pode viver, pelo menos até que não haja mais necessidade de coagir, o que significa liberdade outra vez. O conformismo exclui a arte, que só pode vir da insatisfação. Felizmente para nós, porém, uma satisfação completa não virá nunca”. A raiz da equação, portanto, era entrelaçar arte e ideologia, sem que uma subjugasse a outra.
A aversão ao panfletarismo ficou evidente numa conversa com o jornalista Heráclio Salles. “Esse troço não é literatura. A gente vai lendo aos trancos e barrancos as coisas que vêm de Moscou. De repente, o narrador diz: ‘O camarada Stalin…’ Isto no meio de um romance?! Tomei horror”. Salles perguntou se algum livro inspirado no realismo socialista lhe agradara. Graciliano não titubeou: “Até o último que li, nenhum. Eu acho aquele negócio de tal ordem ruim que não aceitei ler mais nada“. Não seria possível purificar o estilo? “Não tem sentido”, respondeu. “A literatura é revolucionária em essência, e não pelo estilo do panfleto” [12].
Aos amigos que prestigiavam as feijoadas de domingo em sua casa, ele repetia a avaliação sobre Andrei Jdanov, executor da política cultural de Stalin: “É um cavalo!” Paulo Mercadante, jovem discípulo que não perdia os memoráveis encontros, registrou em seu diário da época: “Graça não aceita um dirigismo ideológico, pois o escritor não deve a priori definir um objetivo. Os pressupostos que Gorki realçava são os mesmos dos grandes romancistas, independentemente de convicções políticas. A verdade deve ser o instrumento, e ao arrepio da história e de um modo concreto de vê-la, tudo é artificial”.
O atrevimento de burlar os gabaritos acabou lhe valendo incompreensões e infortúnios. Os epígonos do stalinismo acusavam-no de ter estagnado no “realismo crítico” e reprovavam os “excessos de subjetivismos” em seus romances, em detrimento de “análises objetivas”. As impugnações dentro do partido aborreciam-no. “Eu só sei fazer o que está nos meus livros”, defendia-se, sem esconder a amargura. Segundo Mercadante, Graciliano respeitava a intervenção ideológica quando a produção literária trazia, como em Balzac, as circunstâncias socioeconômicas de seu tempo. Afora isso, não via razão para introduzir, no essencial dos personagens, arroubos retóricos que artificializavam os sentimentos.
O patrulhamento persistiu no tocante a Memórias do cárcere. Por que a antológica reconstituição do submundo dos cárceres getulistas incomodou tanto? Em primeiro lugar porque Graciliano fez restrições ao levante comunista de novembro de 1935 que serviu de pretexto para a onda repressiva desencadeada por Vargas: “uma bagunça”, “um erro político”. O insucesso da rebelião era tabu dentro do PCB. Em segundo lugar, os perfis de dirigentes presos na Frei Caneca não se coadunavam com a mitologia revolucionária. Graciliano não escamoteou o militarismo autoritário de ex-tenentistas que aderiram ao PCB na esteira do levante. Mas a reação hostil dentro partido foi sem dúvida desproporcional. Como aponta Alfredo Bosi, a despeito das estocadas, há no livro ausência de discussão ideológica. Graciliano não se coloca como intérprete das razões e dos desdobramentos da rebelião; limita-se, “como observador arredio e perplexo”, a criticar o voluntarismo que cegou uma correta análise da correlação de forças naquele momento histórico. “O autor simplesmente não se propôs olhar e, menos ainda, avaliar os seus companheiros enquanto sujeitos de um drama político” [13].
Próceres partidários quiseram ler os originais de Memórias do cárcere, mas Graciliano os repeliu: “Se eu tiver que submeter meus livros à censura, prefiro deixar de escrever”. A reação digna custou-lhe o dissabor de ser qualificado de “revisionista”, ofensa grave no vocabulário stalinista.
O caso do livro Viagem, o último escrito por Graciliano e publicado postumamente em 1954, ilustra sua habilidade para desviar-se de precipícios. Ele não escondia o desejo de conhecer o país que liderava a construção de uma nova sociedade. Estávamos longe de 1956, quando o Relatório Kruschev denunciaria os crimes da era Stalin. O fascínio de todo comunista pela União Soviética era reforçado pelo mito do “guia genial dos povos” e pela natural curiosidade pelo que lá se passava. Faltavam informações confiáveis, porque a imprensa ocidental se encarregava de enquadrar os países do Leste Europeu na ótica falsa e distorcida do anticomunismo.
Graciliano poderia formar um juízo sobre o bastião do socialismo, sem o capricho das idiossincrasias e dos fanatismos. A seu ver, as paixões e os ódios embaçavam as lentes dos viajantes. Ou endeusavam as conquistas, ou as inutilizavam, sem meio-termo. “Preciso ter a certeza de que o socialismo existe na União Soviética”, comentou com sua mulher, Heloísa Ramos.
Ao regressar ao Brasil depois de 56 dias no exterior, Graciliano não afogou a razão crítica na glorificação do regime soviético. Apesar das impressões favoráveis sobre educação, saúde, cultura e assistência a crianças e idosos, seu relato em Viagem não freia desconfortos. A começar pela peregrinação ao túmulo de Lenin: “É uma procissão a que os moscovitas se habituaram, como se cumprissem um dever. Estranhamos não se haverem cansado de repetir há mais de vinte anos a marcha regular, monótona”. Reprova o abundante policiamento nas ruas e a desconfiança para com os turistas; entedia-se com os sucessivos espetáculos das “duas artes infalíveis aqui: dança e teatro”; e por pouco não abandona o interminável desfile militar em comemoração ao Dia do Trabalhador, exasperado com os vôos rasantes de aviões. Embora se refira a Stalin como “o estadista que passou a vida a trabalhar para o povo, e nunca o enganou”, faz reparos aos insistentes louvores à sua personalidade, dizendo que “a demonstração de solidariedade irrestrita não impressionava bem o exterior” [14].
Os guias tiveram que engolir aquele escritor comunista que, sem papas na língua, indagou se os proprietários das terras confiscadas para a coletivização haviam sido indenizados. Não satisfeito, quis saber por que não se achavam, nas bibliotecas da Geórgia, obras de Dostoievski. Uma gafe tremenda, pois Dostoievski era persona non grata pelo regime. “Não há Dostoievski aqui porque ele não é georgiano”, justificou o presidente da União dos Escritores Georgianos. Graciliano replicou a uma plateia atônita: “Mas Tolstoi não é georgiano e no entanto está aí…”
Em síntese, Graciliano avaliou que a União Soviética progredira, porém a propaganda às vezes não correspondia aos fatos. Se sublinhava méritos nos programas sociais, não se furtava a apontar excessos autoritários na execução de metas governamentais. Nem por isso deixou de afirmar categoricamente, em entrevista ao Imprensa Popular, órgão do PCB, em 5 de março de 1953 (15 dias antes de morrer): “Tudo o que vi reforçou a minha confiança no socialismo, na causa da paz”.
Tal como Memórias do cárcere, Viagem desagradou à cúpula partidária. Não duvido que o mal-estar tenha aflorado nas linhas iniciais, com esta magistral pintura do que o aguardava do outro lado do planeta: “Embrenhei-me numa aventura singular: fui a Moscou e a outros lugares medonhos situados além da cortina de ferro exposta com vigor pela civilização cristã e ocidental”. Deve ter provocado irritação ao alertar, no prólogo, que não cantaria loas ao governo soviético: “Pretendo ser objetivo, não derramar-me em elogios, não insinuar que, em trinta e cinco anos, a revolução de outubro haja criado um paraíso com as melhores navalhas de barba, as melhores fechaduras e o melhor mata-borrão” [15].
Dois dirigentes do PCB foram à casa do romancista inteirar-se do conteúdo do livro, provavelmente para vetá-lo. Entravam outra vez em ação os “comissários da alma”, definidos por Karel Kosik como militantes que deturpam sua intenção de reformar o mundo vigiando os sujeitos criadores, a fim de atrelá-los a mandamentos intocáveis [16]. Com duas frases evasivas, Graciliano cortou o diálogo: “Tudo está em manuscrito. Ainda tenho que mexer muito”. Pena que os comissários não estivessem no Correio da Manhã para vê-lo, orgulhosamente, presentear os mais chegados com canetas fabricadas pela nova indústria russa.
Graciliano preferiu caminhar no fio da navalha, entre a fidelidade conceitual ao socialismo e a oposição às teses sectárias, sem manchar o ímpeto inventivo com o utilitarismo político. Não abandonou o ideário marxista nem discrepou publicamente do PCB [17]. A lealdade à causa, entretanto, fugia à bitola da subserviência, assinala Moacir Werneck de Castro: “Graciliano Ramos estava longe de ser um ‘bom comunista’, segundo os manuais. Não se enquadrava na rigidez dos estatutos. Sentia-se desconfortável numa engrenagem partidária a cujos cânones de literatura e estética tinha horror. Mas ai do reacionário que viesse tentar confundir as suas restrições e ‘desvios’ com a infidelidade ao socialismo, com qualquer tipo de conformismo e aceitação da cruel injustiça vigente, ainda hoje, na sociedade brasileira. Responderia com palavrões a quem buscasse atraí-lo para o regaço ideológico dos opressores” [18].
Em 1951, a pedido do partido, Graciliano assumiu a presidência da Associação Brasileira dos Escritores. A entidade se esvaziara após a crise para a eleição de sua diretoria em 1949, quando comunistas e liberais disputaram a liderança a tapas e impropérios. Com os antagonismos ideológicos, o convívio intelectual perdera o ecumenismo de outrora. Os ataques grosseiros atingiram inclusive companheiros de viagem. Carlos Drummond de Andrade (membro do comitê diretor de Tribuna Popular, em 1945) e Sérgio Buarque de Hollanda constaram da lista de 20 “intelectuais que traíram o povo” divulgada pela revista Para Todos, mantida pelo PCB, em abril de 1950 [19].
Ao tomar posse na ABDE, Graciliano apelou à concórdia entre os pares. Era um dos poucos intelectuais aptos a fazê-lo, pois não se envolvera nas cisões. Continuava fumando cigarros Selma sentado no banco de carnaúba que ocupava na confraria da José Olympio. No IV Congresso da ABDE, realizado em Porto Alegre em setembro de 1951, Graciliano exortou os escritores a se associarem às aspirações populares e a pugnarem pela democratização cultural e pela coexistência pacífica entre os povos. No discurso de encerramento, pregou o combate ao imperialismo e à guerra, bem como a mobilização pela soberania nacional. “Não admitimos que um estrangeiro chegue aqui e nos diga, com o dedo ameaçador, como ouvi, há pouco tempo, num banquete: ‘Façam isto, façam aquilo’. Não. Faremos o que acharmos razoável fazer. Seremos inimigos desse homem que nos vem dar ordens, em língua estranha? De nenhum modo. Apenas desejamos que ele não nos dê ordens. Já não somos crianças. Queremos viver em paz com todas as criaturas […]” [20].
Graciliano não esmoreceu na tentativa de harmonizar a mensagem tecnicamente perfeita com o fogo da paixão social que o empolgava desde a mocidade. Orientava-o um pensamento regulado por razão, técnica e emoção, em proporções simétricas. Se percebia intenção de rebaixar o padrão literário em prol da eloquência tendenciosa, disparava torpedos. Como nesta fala de Luís da Silva, protagonista de seu romance Angústia: “’Proletários, uni-vos.’ Isto era escrito sem vírgula e sem traço, a piche. Que importavam a vírgula e o traço? […] Aquela maneira de escrever comendo os sinais indignou-me. Não dispenso as vírgulas e os traços. Quereriam fazer uma revolução sem vírgulas e sem traços? Numa revolução de tal ordem não haveria lugar para mim”.
Por mais alinhados que sejam aos oprimidos, escritores e artistas não podem sufocar suas inquietações, nem se conformar que o partidarismo lhes indique as ferramentas do ofício. O intelectual que se rende aos dividendos políticos abre mão da prerrogativa de contribuir para o esclarecimento dos enigmas da cotidianidade. A rarefação da autonomia intelectual em nome do engajamento implica aprisionar-se nas paredes ocas do dogmatismo. Os postulados dogmáticos baseiam-se em pontos de vista que, em certa época, constituíram a base espiritual para a existência, mas que, em outro contexto, ofuscam a percepção dos movimentos de renovação do ambiente sociopolítico [21]. A criação cultural passa a ser condicionada por teoremas que subestimam as variações dos processos históricos, atravessados por linhas de continuidade e descontinuidade que põem em xeque o sonho intangível de uma vida linear.
Para que a dialética prevaleça na elaboração intelectual, é essencial afugentar a ameaça de subtração das ideias em nome do jogo das conveniências, como também sedimentar a liberdade que assegura a explicitação do novo. Lucien Goldmann argumenta que o grande valor da dialética “é não julgar moralmente e não dizer apenas: queremos a democracia, é necessário introduzi-la; queremos a revolução, é necessário fazê-la — mas perguntar-se quais as forças reais de transformação, qual a maneira de achar na realidade, no objeto, na sociedade, o sujeito da transformação, para tentar falar na sua perspectiva e assegurar, sabendo perfeitamente quais são os riscos do malogro, o caminho para…” [22].
Georg Lukács sustenta que a arte como forma de conhecimento não pode ser reduzida a um cálculo político efêmero. No ensaio “Arte livre ou arte dirigida” (1947), o filósofo húngaro diz que o estilo de um autor não é modulado por decisões impostas de fora, e sim pela evolução do próprio artista e de seu modo de pensar. Como o mundo está em constante ebulição, as perspectivas também se modificam, interferindo na forma e no conteúdo das obras de arte. Contudo, essas transformações devem ser voluntárias, fundadas em convicções profundas, e não guiadas por princípios burocráticos que sufocam “as possibilidades do futuro ainda em germe” [23].
A resistência à racionalidade dominadora nada tem a ver com apatia ou deserção frente ao poder da hora. “O escritor ‘engajado’ sabe que a palavra é ação: sabe que desvendar é mudar e que não se pode desvendar senão tencionando mudar”, salienta Jean-Paul Sartre, para quem a função do intelectual é despertar consciências, impedindo que os homens se alienem ou se resignem diante das interrogações à sua volta [24].
Penso que o equilíbrio alcançado por Graciliano se deve ao compromisso superior com os valores humanistas. Ele coloca-se do ponto de vista dos grupos sociais marginalizados; grupos que sinalizavam o anseio latente de romper o cerco das desigualdades. Em seu horizonte ficcional, projetam-se vozes que clamam pelo alargamento do nível de consciência da totalidade concreta da sociedade, em particular dos setores subalternos sobre os quais recaem as conseqüências deletérias do capitalismo. Carlos Nelson Coutinho observa, lucidamente, que as visões de Graciliano se baseiam em uma temporalidade social e histórica determinada, com suas possibilidades objetivas e seus campos de tensão [25]. Ao mesmo tempo que descarta teses e concepções apriorísticas, o romancista funda a coerência interna da obra ao perceber os reflexos do real sobre as relações sociais, correlacionando o universal e o particular, os dramas sociais e as dores íntimas, a preocupação ética e a grandeza moral.
Graciliano reivindicava uma efetiva transformação social, sem em nenhum instante negociar a substância estética da revelação da realidade. Recusava o esteticismo desprovido de significação humana, com sensibilidade adicional para entender que, numa obra literária digna deste nome, forma e conteúdo evidenciam as tomadas de posição artísticas e ideológicas do autor — posições definidas pelas distinções que as unem e as separam no espaço da criação.
Ao solidarizar-se com as vidas degradadas por discriminações e pelas estruturas espoliadoras do trabalho, Graciliano está nos propondo que o resgate da dignidade depende da nossa capacidade de intervir na cena pública da política com norte reformador. Para isso, concebe uma arte irredutível à retórica, a salvo de ilusões ingênuas, as comprometida organicamente com as batalhas culturais pela emancipação. O seu lendário ceticismo diante dos acontecimentos imediatos jamais o impediu de vislumbrar a superação dialética das realidades adversas, com esperança ativa na construção de um outro mundo.
Graciliano Ramos encarnou o intelectual crítico que se opõe ao consenso das elites dominantes e zela para que o discurso da utopia não degenere em crença messiânica. “O artista deve procurar dizer a verdade. Não a grande verdade, naturalmente. Pequenas verdades, essas que são nossas conhecidas”, esclarecia ele. Em seus romances, contos, crônicas e memórias, afrontou as injustiças sem recorrer ao ouro falso dos slogans e das fórmulas propagandísticas. Precisou apenas de folhas de papel e frases enxutas para lançar um facho de luz sobre os contornos precários de um mundo alienado. “A arma do escritor é o lápis”, ensinava.
Notas
[1] Getúlio Vargas, citado em Cultura Política, n. 18, p. 104.
[2] Antonio Candido. “Prefácio”. In: Sergio Miceli. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 74.
[3] Ao referir-se aos intelectuais como “funcionários subalternos das superestruturas”, Sartre reconhece inspiração na categoria de “funcionários das superestruturas” proposta por Antonio Gramsci em sua teoria dos intelectuais. Conforme o pensador italiano, o intelectual, enquanto funcionário das superestruturas, não só trabalha no sentido de fazer com que o grupo social de que proveio seja uma verdadeira classe consciente da sua função histórica, mas também pode suscitar o consentimento das grandes massas às orientações dadas, pela classe hegemônica, à vida socioeconômica, incluindo, não poucas vezes, formas de disciplina social e neutralização de dissensos. Ver Jean-Paul Sartre. Em defesa dos intelectuais. São Paulo: Ática, 1994, p. 52; Antonio Gramsci. Cadernos do cárcere(v. 2). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 11-53.
[4] Theodor W. Adorno, citado por Terry Eagleton. A ideologia da estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, p. 256.
[5] Ricardo Ramos. Graciliano: retrato fragmentado. São Paulo: Siciliano, 1992, p. 79.
[6] Graciliano Ramos. Linhas tortas. São Paulo: Martins, 1962, p. 94.
[7] Antonio Gramsci. Cadernos do cárcere (v. 1), ob. cit., 1999, p. 221-2.
[8] Graciliano Ramos. “O fator econômico no romance brasileiro”. In: José Carlos Garbuglio, Alfredo Bosi e Valentim Facioli (Orgs.). Graciliano Ramos. São Paulo: Ática, 1987, p. 124-5.
[9] Graciliano Ramos, citado por Homero Senna. República das letras: entrevistas com 20 grandes escritores brasileiros. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996, p. 207.
[10] Carta de Graciliano Ramos a João Condé, jul. 1944.
[11] Graciliano Ramos. Linhas tortas, ob. cit., p. 139.
[12] Ver Dênis de Moraes. O Velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992, p. 263-4.
[13] Alfredo Bosi. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 222.
[14] Graciliano Ramos. Viagem. São Paulo: Martins, 1952.
[15] Ib., p. 11, 14 e 15.
[16] Karel Kosik. “A dialética da moral e a moral da dialética”. In: Galvano Della Volpe et alli. Moral e sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969, p. 111.
[17] É importante ressaltar que, após a denúncia dos crimes de Stalin no XX Congresso do PCUS, o PCB rompeu com a política sectária em vigor desde 1948 e alterou sua linha programática. Na Declaração de Março de 1958, o partido propugnava por um governo nacionalista e democrático. O caminho pacífico para a revolução antiimperialista e antifeudal seria alcançado por uma frente única que englobasse o proletariado, o campesinato, a pequena burguesia e “os setores da burguesia ligados aos interesses nacionais”. No campo intelectual, iniciou-se uma tentativa de renovação do pensamento marxista. Um fértil debate sobre as deformações da era Stalin ocupou as páginas da imprensa partidária. Infelizmente, Graciliano não estava mais vivo para avaliar as críticas e autocríticas à imposição irracional e à aceitação passiva da arte panfletária, durante um tempo de paixões exacerbadas pela guerra fria.
[18] Moacir Werneck de Castro. A máscara do tempo: visões da era global. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996, p. 50.
[19] Consultar Dênis de Moraes. O imaginário vigiado: a imprensa comunista e o realismo socialista no Brasil (1947-1953). Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.
[20] Graciliano Ramos. “Convocação ao IV Congresso da ABDE”. In: José Carlos Garbuglio, Alfredo Bosi e Valentim Facioli (Orgs.), ob. cit., p. 85.
[21] Ver Lucien Goldman. Crítica e dogmatismo na cultura moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1973, p. 33.
[22] Lucien Goldman. A criação cultural na sociedade moderna. São Paulo: Difel, 1972, p. 117.
[23] Georg Lukács. Marxismo e teoria da literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 274-5.
[24] Jean-Paul Sartre. Que é a literatura? São Paulo: Ática, 1993, p. 20-1.
[25] Carlos Nelson Coutinho. Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre idéias e formas. Rio de Janeiro: DP&A, 2000, p. 159 e 216.
Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.