A questão dos transportes nas grandes cidades

São longas distâncias, ônibus cheios (e em mau estado de conservação), duas ou até mais horas para chegar ao trabalho. Nas grandes cidades brasileiras, este tormento faz parte do dia-a-dia da maioria dos trabalhadores.

As diversas razões que explicam este quadro começam pela tendência universal de crescimento das cidades, causada, principalmente, pelo processo de mecanização da agricultura, que força os trabalhadores rurais a buscar emprego nas cidades. Vão se formando, também, as megacidades, como Bombaim (mais de 13 milhões de habitantes), Karachi (mais de 12 milhões), Nova Delhi e São Paulo (mais de 11 milhões), Moscou (mais de 10 milhões), Rio de Janeiro já tem cerca de 7 milhões, onde a escala do problema da mobilidade se torna ainda mais elevada.

A ocupação do solo nas cidades, nos países capitalistas, segue o padrão da propriedade privada e dos interesses das camadas de alta renda – socialmente dominantes –  que ocupam, em geral, as áreas mais centrais e valorizadas e deslocam os trabalhadores de baixa renda para regiões distantes do centro urbano e dos bairros nobres (onde tendem a se concentrar a oferta de postos de trabalho, de serviços urbanos como iluminação pública, água encanada, saneamento, e de serviços sociais como educação, saúde, cultura). Como alternativa a morar longe do centro e das áreas de alta renda, resta a ocupação de encostas, a moradia precária e perigosa, construída  sobre solos degradados ou alagados e nas margens dos rios e canais, opção que gera danos à saúde e enormes riscos, como bem demonstraram a tragédia do morro do Bumba, em Niterói, Estado do Rio de Janeiro, de Nova Friburgo, no mesmo Estado, e o grande número de desabrigados gerados pelas recentes inundações ocorridas em São Paulo.

Predomina, no Brasil, de forma quase absoluta, o modo rodoviário de transporte. Este fato tem origem nos anos 50, quando, em meio ao intenso debate sobre os possíveis caminhos para o desenvolvimento do Brasil que então se apresentavam, o governo JK decidiu pela implantação, da grande indústria automobilística, com a vinda de empresas trans e multinacionais produzir, no país, os caminhões, carros de passeio, ônibus e demais veículos automotores que, em sua maior para, eram importados, até então. Os baixos preços do petróleo, a rapidez em que se daria o início da produção (as fábricas vinham praticamente prontas) e a facilidade maior da construção de estradas (em comparação com as ferrovias) foram elementos decisivos para esta decisão, no espírito da modernização capitalista acelerada que seria a tônica daquele período. A ênfase à produção de automóveis deveu-se, também, à intenção de dar privilégio ao transporte individual, reforçando-se a idéia de modernidade e criando-se a imagem de um novo padrão de vida – e de “status” – para as camadas médias e de alta renda.

O grande crescimento da produção automobilística e das cidades, a mudança nos preços do petróleo e seus derivados – com destaque para o óleo Diesel e a gasolina –  que se deu a partir dos anos 70 e o agravamento da questão ambiental criaram uma situação explosiva, em que os grandes congestionamentos diários e os elevados custos sociais assim incorridos (as horas de trabalho, estudo e descanso perdidas, as doenças causadas pela poluição gerada pela fumaça dos motores, os gastos com a construção de viadutos, pontes e pavimentação de ruas e estradas, entre outras) são insuportáveis.

Os números impressionam: na cidade de São Paulo há cerca de 7 milhões de carros particulares, e esse número tende a crescer,  alimentado pela política de crédito facilitado ao consumidor (e, até recentemente, pela isenção de IPI sobre a venda de carros). A frota de ônibus paulista é igualmente enorme: são quase 15.000. No Rio de Janeiro, são 1,8 milhões de carros (serão mais de 3 milhões em 2020, segundo estudo da UFRJ) e cerca de 8.000 ônibus, pertencentes a 48 empresas, transportando 2,7 milhões de passageiros por dia. O mais grave é que, no Rio, os sistemas de trens urbanos (Supervia), metrô e barcas (Rio – Niterói) transportam, hoje, menos passageiros do que há 10 anos. Em São Paulo, a expansão dos trens e metrôs é também mais lenta do que seria necessário para superar o esgotamento do modo rodoviário. Como complemento ao sistema, há um número bastante elevado de “Vans” e veículos similares circulando, a maioria irregularmente e sem horários fixos.  Os preços das tarifas de ônibus, nas cidades brasileiras médias e grandes, variam de R$ 1,80 (Juiz de Fora, MG) a R$ 3,0, em São Paulo (capital).

Uma pesquisa recente divulgada pelo IPEA mostrou que o meio de transporte mais utilizado nas grandes cidades é o transporte público, com 60,05% dos entrevistados (seguido pelo carro (22,55%), e a moto (7,02%, tendo esse número praticamente dobrado nos últimos 10 anos). No transporte público, predominam os ônibus, na maioria dos casos,  estando os sistemas de trens suburbanos e de metrô, em geral, estagnados ou crescendo bem abaixo do ritmo de crescimento da população urbana.

Há uma relação direta entre esses números: além da falta de um correto planejamento urbano voltado para a superação das desigualdades entre os bairros e regiões das cidades, para a facilitação da mobilidade urbana e para uma maior racionalidade do sistema de transportes, a natureza privada da exploração dos transportes públicos e do transporte rodoviário – predominante – e a enorme força política das empresas de ônibus – que, em geral, atuam em monopólios ou duopólio nas ligações entre bairros e entre os bairros e o centro e fazem uso de longos trajetos, não apenas garantem para elas boas margens de lucro – pela forma como são feitos os contratos – e outras garantias diversas das prefeituras, como também impede, na prática, o crescimento dos sistemas ferroviários e aquaviários, certamente muito mais eficientes e de operação mais limpa e barata, pelo exercício de seu enorme poder de pressão econômica e política, exercido de forma direta, por dentro do Estado (que, por sua vez, atende, prioritariamente, aos interesses das empresas) ou na forma de apoio a campanhas de vereadores, entre outros artifícios.

A natureza privada da operação dos sistemas de transporte leva à acomodação e ao descaso – uma vez que os ganhos são garantidos – os demais modos, e faz com que as empresas atuem sempre buscando gastar o mínimo possível, mesmo que à custa da eliminação do transporte noturno, da precarização e da superexploração do trabalho dos motoristas de ônibus (com a extinção dos cobradores e a adoção da bilhetagem eletrônica), dos ônibus lotados em certos horários e da manutenção de condições precárias e até desumanas de transporte para os passageiros.

O capitalismo, por sua natureza, não vai jamais proporcionar boas condições de vida para a maioria da população. Mas mesmo no capitalismo – tanto em países desenvolvidos quanto em países em desenvolvimento – há inúmeros exemplos de bons sistemas públicos e gratuitos de educação, saúde, de transporte urbano barato e até gratuito.  Os casos das grandes cidades da França, da Espanha, do Canadá, do Japão, da Rússia, da Argentina e de outros países mostram que é possível atender a enormes demandas por transporte com soluções tecnicamente superiores – como os metrôs e Veículos Leves sobre Trilhos em linhas de superfície, subterrâneas e elevadas.

As soluções mais comumente apresentadas para a melhoria do transporte público nas grandes cidades são a melhoria fiscalização sobre as empresas e da “gestão” do sistema,  com a adoção do “bilhete único”, a demarcação de “corredores” expressos para ônibus e de “conjuntos articulados” de ônibus – os BRTs, e a oferta de gratuidades para idosos e estudantes. Ainda que estas soluções possam amenizar um pouco as condições difíceis e os custos, para os passageiros, do transporte urbano, elas certamente não apontam para um salto de qualidade efetivo na oferta de transporte público.  A exigência de renovação das frotas vem fazendo com que a idade média dos ônibus venha caído, ainda que, em muitas linhas, essa medida não seja respeitada. É fato, também que muitos ônibus sem as mínimas condições operacionais são repassados para as cidades do interior, como é o caso de Campos, no Rio de Janeiro.

Para que isso aconteça, no Brasil, será necessário produzir-se um modelo de desenvolvimento que tenha como objetivo a justiça social, o oferecimento de emprego, moradia, educação, saúde, transporte de qualidade para todos. É imperativo que estes sistemas sejam estatais, para que, sem os lucros privados, se possa  reduzir significativamente as tarifas (nosso cálculo aponta para uma redução imediata de mais de 50%).

Será necessário mudar a natureza do Estado atual, para que, num Estado de novo tipo, controlado diretamente pelos trabalhadores, se possa planejar o desenvolvimento da sociedade com a participação de todos, dando ênfase à solução dos problemas mais essenciais dos trabalhadores. E o caminho para que tudo isso avance é a luta, a organização dos trabalhadores em suas associações profissionais, seus sindicatos, em seus locais de moradia, em um grande movimento pela estatização e o controle popular sobre os transportes.