Afonso Costa
O mundo nunca mais foi o mesmo. A publicação de “Que Fazer?” em março de 1902 “marca uma nova etapa que deixa tudo pra trás. De sua edição em diante, a Rússia não seria o cenário da transmutação pura e simples do marxismo em movimento revolucionário triunfante. Nascia o marxismo-leninismo como teoria revolucionária e como prática revolucionária organizada”, definiu Florestan Fernandes na sua apresentação desta grande obra de Lênin em uma coleção organizada pelo próprio historiador durante a ditadura militar no Brasil, intitulada “Pensamento Socialista”.
“Que Fazer?” é o aprofundamento de um artigo de Lênin publicado em 1901, “Por Onde Começar?”. Por meio dele, é desenvolvida a teoria de estruturação do partido revolucionário, da organização da revolução a partir do entendimento de que deveriam ser enfrentados os problemas de agitação, propaganda e organização dos comunistas.
Para tanto, o autor enfrenta a luta política com a burguesia – que ele define como a contrarrevolução –, com o esquerdismo e as forças atrasadas da socialdemocracia russa, em particular o economicismo. Já o terrorismo ele define de forma mais simples, ao afirmar tratar-se de um movimento que “desorganiza não as forças governamentais, mas as forças revolucionárias”.
A grande preocupação de Lênin em sua obra é mostrar qual o papel dos revolucionários na organização e conscientização do proletariado. Em determinado trecho de sua obra aponta: “Não é suficiente esclarecer os operários sobre sua opressão política… é necessário fazer a agitação a propósito de cada manifestação concreta dessa opressão… como esta opressão manifesta-se nos mais diversos aspectos da vida e da atividade profissional, civil, privada, familiar, religiosa, científica etc. … De fato, para fazer a agitação sobre as manifestações concretas da opressão, é preciso denunciar essas manifestações…”.
O grande líder da revolução bolchevique combate uma visão sonhadora e artesanal de como alcançar o socialismo, predominante no final do século XIX e que até hoje vemos em algumas organizações. Propõe a preparação do processo revolucionário como um todo, fugindo às saídas imediatas e superficiais, comuns à vanguarda esquerdista de seu tempo, acostumada a pensar a revolução como um assalto ao poder desorganizado, quase um golpe de Estado. Seria preciso muito mais do que isso: a organização de um Estado dentro do Estado burguês, a alternativa do anti-Estado capitalista. Superando as soluções fáceis do radicalismo pequeno-burguês e do reformismo, assim como a opção imprevisível e descontrolada do terrorismo, ele “introduz a dialética na esfera da ação política direta e do movimento de massas pelo socialismo”, nas palavras de Florestan.
Agitação e propaganda
São dois temas abordados de forma científica. Lênin mostra a diferença entre a agitação e a propaganda e qual papel cada uma dessas atividades deve desempenhar. Parte do pressuposto de que é preciso conscientizar a classe operária: “A consciência da classe operária não pode ser uma consciência política verdadeira se os operários não estiverem habituados a reagir contra todo abuso, toda manifestação de arbitrariedade, de opressão e violência, quaisquer que sejam as classes atingidas; a reagir justamente do ponto de vista social-democrata (o partido revolucionário à época). A consciência das massas operárias não pode ser uma consciência de classe verdadeira se os operários não aprenderem a aproveitar os fatos e acontecimentos políticos concretos e de grande atualidade, para observar cada uma das outras classes sociais em todas as manifestações de sua vida intelectual, moral e política; se não aprenderem a aplicar praticamente a análise e o critério materialista a todas as formas de atividade e da vida de todas as classes, categorias e grupos da população.”
Para alcançar essa conscientização da classe operária, Lênin aponta as tarefas do partido revolucionário. Dessa forma explica: “Em uma palavra (o propagandista, ressalva minha) deve explicar a natureza capitalista das crises, mostrar o que as torna inevitáveis na sociedade moderna, mostrar a necessidade da transformação dessa sociedade em sociedade socialista etc. … Tratando da mesma questão, o agitador tomará o fato mais conhecido de seus ouvintes, por exemplo, uma família de desempregados morta de fome, a indigência crescente etc. e apoiando-se sobre esse fato conhecido de todos, fará todo o esforço para dar à ‘massa’ uma única ideia, da contradição absurda entre o aumento da riqueza e o aumento da miséria; esforçar-se-á para suscitar o descontentamento, a indignação da massa contra essa injustiça gritante, deixando ao propagandista o cuidado de dar uma explicação completa dessa contradição. Por isso, o propagandista age principalmente por escrito e o agitador de viva voz”.
O partido e o papel do jornal
“As massas jamais aprenderão a conduzir a luta política, enquanto não ajudarmos a formar dirigentes para essa luta, tanto entre os operários instruídos como entre os intelectuais. Ora, tais dirigentes apenas podem ser educados iniciando-se na apreciação cotidiana e metódica de todos os aspectos de nossa vida política, de todas as tentativas de protesto e de luta das diferentes classes e por diferentes motivos … Não se pode começar o trabalho político vivo senão através de uma agitação política viva, o que é impossível sem um jornal para toda a Rússia, que apareça frequentemente e seja difundido de forma regular… A elaboração de um jornal político para toda a Rússia deve ser o fio condutor: seguindo-o poderemos desenvolver ininterruptamente essa organização, aprofundá-la e alargá-la.”
Mais adiante esclarece: “O jornal não é apenas um propagandista coletivo e um agitador coletivo: é também um organizador coletivo… É preciso que encorajemos todos aqueles que nos comuniquem os fatos, mesmo os mais corriqueiros, na esperança de que isso aumente o número de nossos colaboradores nesse campo, e que nos ensine a todos, a escolher, afinal, os fatos verdadeiramente relevantes… Se queremos nos unir não apenas em palavras, é preciso que cada círculo local imediatamente reserve, digamos, um quarto de suas forças para a participação ativa na obra comum. E o jornal mostrará prontamente os contornos gerais, as proporções e o caráter dessa obra…” Em poucas palavras, “o plano de um jornal político para toda a Rússia… é o plano mais prático para que possamos nos preparar para a insurreição, imediatamente e de todos os lados, sem que o trabalho normal e cotidiano seja esquecido por um instante.”
As citações deste artigo são da tradução francesa das Editions Sociales Paris, 1969, da quinta edição russa, tomo 5, das Obras Completas de V. Lênin. Entretanto, gostaria de terminá-lo com base em uma edição do Partido Comunista Português da década de 70, de que não recordo a editora, mas na qual destacam-se as tarefas consideradas por Lênin como primordiais para todo revolucionário: “Organizar e estudar, estudar e organizar”.