Ricardo Costa
A contribuição teórica do pensador marxista italiano Antonio Gramsci destaca-se por sua concepção dialética da história, ao privilegiar o estudo dos conflitos no processo histórico, evidenciando o papel ativo do sujeito na construção das relações humanas e na promoção das mudanças sociais. Compreendendo a divisão da sociedade em dominantes e dominados como resultado de um processo histórico de lutas, não natural, portanto, rechaça toda tentativa de explicar a dominação como um fenômeno perene e previamente dado, fundado na pretensa existência de uma “vontade de poder” ou de “prestígio” inerente aos homens e às nações, uma explicação tautológica e a-histórica a querer constatar, de forma acrítica, a ideia de o poder ser algo enraizado na “natureza humana”, conforme defendiam os pensadores tradicionais da política, os chamados “teóricos das elites”. Para um estudo aprofundado das relações de poder, o revolucionário italiano entendia ser necessária uma crítica inscrita na análise da totalidade histórica. Resgatando-se o princípio marxiano de totalidade, a perceber a realidade como a síntese de múltiplas determinações, a esfera política não pode ser pesquisada isoladamente do conjunto das relações sociais.
A socialização da política
Ao produzir uma obra teórica marcada pela idéia da centralidade da política na ação humana transformadora, Gramsci realizou uma profunda renovação do materialismo histórico, mas sem abandonar os seus princípios fundamentais, as determinações anteriores de Marx e Lênin sobre as relações sociais e políticas no capitalismo. Priorizou a análise das superestruturas na sociedade capitalista moderna por entender que a grande novidade surgida com o século XX teria sido a proliferação dos movimentos de massa, através do fortalecimento e crescimento dos sindicatos, associações corporativas, partidos políticos, etc. Tais “fatos novos” constituiriam um processo de “socialização da política”i, fator que se, por um lado, teria garantido uma maior estabilidade do Estado burguês, por outro, também permitiria a organização da resistência a ele.
Gramsci desenvolveu a teoria ampliada do Estadoii, ao estabelecer a diferenciação entre sociedades organizadas nos moldes “orientais” ou “ocidentais”. Não se trata de conceitos geográficos ou geopolíticos, mas indicadores de diferentes tipos de formação econômico-social, em função da relação existente, em cada modelo, entre a sociedade política, entendida como o conjunto dos aparelhos estatais de coerção (os mecanismos pelos quais a classe dominante impõe sua dominação, por deter o monopólio da força, tais como o aparato burocrático executivo e as forças da repressão policial e militar) e a sociedade civil, formada pelos aparelhos privados de hegemonia (os organismos sociais responsáveis pela formulação e circulação das diferentes ideologias, tais como os partidos políticos, os sindicatos, a Igreja, as escolas, os meios de comunicação de massa, etc.).
Nas sociedades “orientais”, como aquelas vivenciadas concretamente por Marx e Lênin em seu tempo, a dominação burguesa é exercida essencialmente através da violência policial controlada pelo Estado. Já Gramsci conheceu a realidade de uma sociedade “ocidental”, no sentido de uma sociedade de capitalismo avançado, onde ocorrem transformações sociais de vulto, como a formação de grandes sindicatos e partidos políticos de massa, a conquista do sufrágio universal, etc, que obrigam a classe dominante a tentar exercer seu domínio não apenas através da coerção, mas buscando o consentimento de parcelas significativas dos dominados, por meio da hegemonia, para o que os aparelhos hegemônicos privados citados anteriormente cumprem papel decisivo.
Para Gramsci, o Estado é “todo o complexo de atividades práticas e teóricas com as quais a classe dirigente justifica e mantém não só seu domínio, mas consegue obter o consentimento ativo (grifo meu) dos governados”iii. A dominação política não é vista apenas como coerção verticalizada por parte dos aparelhos de poder, numa via de mão única, mas como uma relação difundida pelo conjunto da sociedade civil, pela qual os dominados não aparecem como meros agentes passivos, pois, em diversos momentos, assumem como sua a ideologia dominante ou, pelo contrário, organizam resistência e oposição a ela. Sendo assim, os aparelhos privados de hegemonia não podem ser identificados apenas como reprodutores do discurso dominante, pois em seu seio dá-se, mesmo que em escala reduzida, a mesma luta ideológica que se trava no conjunto da sociedade.
O Estado é, portanto, o espaço onde se concentra, na forma mais avançada possível nas sociedades ocidentais, a luta de classes. É o lugar da administração dos conflitos entre as frações da classe dominante e dos embates entre os interesses do grupo dominante e os dos dominados, os quais, através dos seus organismos privados de hegemonia, exercem algum tipo de pressão ou influência junto ao poder e/ou resistem à dominação.
Como uma consequência fundamental destas considerações, está a compreensão de que a luta pelo poder no “Ocidente” exige um árduo trabalho de convencimento e persuasão de amplas camadas populares por parte do grupo social que almeja conquistá-lo. Como afirma Carlos Nelson Coutinho, principal tradutor e estudioso do pensamento gramsciano no Brasil, a luta proposta por Gramsci requer paciência revolucionária e espírito inventivo, pressupondo que haja:
a iniciativa dos sujeitos políticos coletivos, a capacidade de fazer política, de envolver grandes massas na solução de seus próprios problemas, de lutar cotidianamente pela conquista de espaços e posições, sem perder de vista o objetivo final, ou seja, o de promover transformações de estrutura que ponham fim à formação econômico-social capitalista.iv
Neste sentido, Gramsci desenvolveu uma teoria que viabilizasse a ocupação metódica e sistemática, pelos trabalhadores, dos espaços estratégicos existentes, num processo de ampliação da esfera da sociedade civil perante a sociedade política organizada em torno do Estado, que permitisse a conquista do poder político pelo proletariado.
Segundo ele, nas sociedades ocidentais, a proposta de luta pela transformação radical do sistema capitalista e pela conquista do poder de Estado por parte dos trabalhadores não se daria mais unicamente pela via insurrecional no sentido estrito, ou seja, da tomada do poder como uma brusca e explosiva guerra de movimento (o assalto ao poder), pois a sociedade civil transformou-se em uma estrutura complexa e mais resistente às crises, e as superestruturas passaram a funcionar como o sistema de trincheiras utilizado nas guerras modernas. Nesse caso, nem as tropas atacantes, por causa da crise, organizam-se rapidamente no tempo e no espaço, nem os atacados sentem-se desmoralizados o suficiente para abandonarem suas defesas, nem perdem de imediato a confiança em sua força, já que o elemento surpresa, do tempo acelerado, não aparece de acordo com o que imaginavam os estrategistas da guerra de movimentov.
Seria, então, necessária uma prolongada guerra de posições, pela qual o partido revolucionário buscasse exercer a hegemonia entre os setores sociais para quem a mudança estrutural da sociedade é necessária, dentre os quais os trabalhadores e, em especial, a classe operária, seriam os maiores interessados.
Hegemonia e luta político-ideológica
É preciso, pois, tentar alcançar a compreensão do conceito de hegemonia proposto por Gramsci, peça-chave para a construção deste processo metódico de transformação social. A hegemonia seria a capacidade de um grupo social unificar em torno de seu projeto político um bloco mais amplo não homogêneo, marcado por contradições de classe. O grupo ou classe que lidera este bloco é hegemônico porque consegue ir além de seus interesses econômicos imediatos, para manter articuladas forças heterogêneas, numa ação essencialmente política, que impeça a irrupção dos contrastes existentes entre elas.
Logo, a hegemonia é algo que se conquista por meio da direção política e do consenso e não mediante a coerção. Pressupõe, além da ação política, a constituição de uma determinada moral, de uma concepção de mundo, numa ação que envolve questões de ordem cultural, na intenção de que seja instaurado um “acordo coletivo” através da introjeção da mensagem simbólica, produzindo consciências falantes, sujeitos que sentem a vivência ideológica como sua verdade. O pensamento político e ideológico, dessa forma, apresenta-se como uma realidade prática, porque, ao ser compreendido e aceito pelos atores sociais, torna-se poder material, converte-se em ação prática, ou, mais precisamente, em práxisvi.
Seguindo o caminho aberto por Gramsci, Pierre Ansart destaca os traços psicológicos existentes no processo de embate político. Por isso entende que a ideologia, no momento em que se trava o debate ou o conflito social aberto, é uma verdade interiorizada por quem a defende, é o sentido comprovado, a intencionalidade da ação. Renovaria, assim, a função tradicional dos mitos e das religiões, qual seja, a de garantir o consenso social por meio da construção de um paradigma a designar as posições sociais, ao mesmo tempo em que as justifica. Somente aos olhos da posteridade, segundo Ansart, passado o momento da exaltação, é possível enxergar o caráter contraditório da ideologia, a carregar consigo diferentes funções: o mesmo discurso pode ocultar aos sujeitos o sentido objetivo da ação; concretizar um projeto político, como a tomada de poder; ou iludir as classes dominadas. Afinal, toda ideologia política comporta em seus traços essenciais também realizar distorções, ocultação de certas relações ou experiências sociais, porque toda visão de mundo traz no seu bojo uma forma muito específica de apreender a realidade social, própria de um determinado grupo. Conforme já enfatizara Marx, lembrado por Ansart, “todo grupo particular, toda classe que visa defender sua existência e seus interesses, produz um saber parcial, ligado à sua própria particularidade”vii. Por isso mesmo, a ideologia não pode ser confundida apenas com mera manipulação, simples ilusão ou distorção da verdade:
A ideologia política possui precisamente a especificidade de não ser um discurso verdadeiro nem falso no sentido científico da palavra, e sim fundir na mesma lógica a verdade e a ocultação polêmica, as instituições vivas e as distorções. É precisamente essa especificidade que faz da linguagem ideológica uma força simbólica historicamente criadora.viii
A ideologia é, pois, consciência política ligada aos interesses de determinada classe, uma visão de mundo, portanto, presente nas atitudes dos atores políticos. Mais que um sistema de idéias, relaciona-se com a capacidade de inspirar e orientar a ação política, de acordo com o imaginário de cada grupo social.
Baseando-se na ideia de Marx presente em trecho do Prefácio à Crítica da Economia Políticaix, Gramsci afirma que as ideologias têm uma validade psicológica, pois são o terreno no qual os homens adquirem consciência da sua posição de classe e do conflito em que estão situados, assumindo a luta e a conduzindo até o fim. A política é ação permanente e dá origem a organizações permanentes, pois estrutura-se a partir do terreno “permanente e orgânico” da vida econômica, mas deve ser capaz de superá-lox. Ou seja, a política, se nasce da articulação dos interesses e da representação de classe, fundando-se necessariamente no terreno do econômico, precisa superar o momento meramente corporativo, para atingir o instante da consciência ético-política, em que o grupo social busca assumir papel hegemônico na sociedade. Assim nos diz Gramsci:
… a fase mais abertamente política … assinala a passagem nítida da estrutura para a esfera das superestruturas complexas; é a fase em que as ideologias germinadas anteriormente se transformam em ‘partido’, entram em choque e lutam até que uma delas, ou pelo menos uma combinação delas, tende a prevalecer, a se impor, a se irradiar em toda a área social, determinando, além da unicidade dos fins econômicos e políticos, também a unidade intelectual e moral. Coloca todas as questões em torno das quais se acende a luta não num plano corporativo, mas num plano ‘universal’, criando, assim, a hegemonia de um grupo social fundamental sobre uma série de grupos subordinados.xi
A transformação radical da sociedade e a substituição de um sistema socioeconômico por outro (o capitalismo pelo socialismo) devem ser entendidas, portanto, como processos resultantes de intensa luta política e ideológica na qual se busca produzir, por meio dos embates sociais e da ampla discussão em torno do projeto contra-hegemônico, uma nova visão de mundo a ser abraçada pela maioria da população, um novo consenso, um novo senso comum. Trata-se de elaborar uma nova concepção de mundo através de uma análise crítica e consciente da realidade presente e da intervenção ativa na história, para que se enfrente a concepção de mundo dominante, imposta pelos grupos sociais dominantes.
O senso comum nada mais é que uma visão de mundo expressa de forma fragmentada, desagregada, incoerente pelos agentes sociais, os quais repetem, sem questionamento, o que é afirmado pelas classes dominantes como verdade, uma verdade construída a partir de um ponto de vista particular e tornada universal no processo de convencimento ideológico mencionado acima. Por isso Gramsci refere-se a este processo de elaboração de uma consciência crítica como a um “conhece-te a ti mesmo”xii, pois trata-se de romper com a visão a que nós, “homens-massa”, fomos acostumados a entender como verdadeira, pelo fato de pertencermos a um determinado coletivo, de compartilharmos um determinado modo de pensar e agir, de sermos conformistas de um certo conformismo. Esta ultrapassagem exige, portanto, como primeiro passo, a crítica da própria concepção de mundo, a consciência da própria historicidade.
É importante ressaltar que não estamos nos reportando aqui a uma mera batalha no campo das ideias. Em seu texto, Gramsci faz várias referências à ideia de Marx segundo a qual nenhuma sociedade assume encargos para cuja solução as condições materiais necessárias não existam ou não estejam em vias de aparecer e se desenvolverxiii. Pode-se depreender daí que um projeto político de transformação da realidade somente terá êxito se, além da vontade de seus proponentes, existirem as condições sociais e históricas favoráveis às mudanças desejadas. Por este motivo, Gramsci realça a necessidade de uma análise científica das relações entre estrutura e superestrutura, da correlação das forças econômicas, sociais e políticas na sociedade, a preceder ou acompanhar as ações na luta revolucionária.
Na mesma linha de raciocínio, o comunista italiano recorre outra vez a Marx para explorar o pensamento segundo o qual “a teoria transforma-se em poder material logo que se apodera das massas”xiv, isto é, uma ideia só se realiza plenamente se é apoderada pelo movimento social concreto e se transforma em ação prática. Daí a insistência de Gramsci em que nenhum projeto de transformação social cumprirá seu objetivo se não vier acoplado a uma profunda reforma intelectual e moral. Neste processo está em jogo a formação de um “bloco histórico”xv no qual as forças materiais (o “conteúdo” do movimento social) e as ideologias (a “forma”) se interagem, já que “as forças materiais não seriam historicamente concebíveis sem forma e as ideologias seriam fantasias individuais sem as forças materiais”xvi.
A simples redução do pensamento político à filosofia ou à ideologia converteria a história dos homens em mera história das ideias, deixando de se considerar um conjunto de práticas e relações sociais. O pensamento político inscreve-se no mundo da práxis, relacionando-se com o mundo das ideias sem reduzir-se a um exercício puramente intelectual ou retórico, pois faz parte da experiência política. A ideia transforma-se em atividade ao ser incorporada à ação política, a partir de escolha realizada em função de considerações feitas sobre o terreno da própria realidade política e social existente. Não sendo mero reflexo do meio social no qual se inscreve, a prática política sofre as limitações impostas pela realidade, impedindo que prevaleça unicamente a vontade ou o arbítrio imaginativo. Não basta a intenção de concretizar, com base na ideologia ou na filosofia, determinados princípios políticos. É a própria experiência da atividade política que indicará o campo de atuação possível, sugerindo o caminho a ser percorrido, o modo pelo qual se podem alcançar os fins pretendidos. “É por isso, portanto, que não se pode destacar a filosofia da política; ao contrário, pode-se demonstrar que a escolha e a crítica de uma concepção de mundo são, também elas, fatos políticos”xvii.
O partido e o intelectual orgânico
Na luta hegemônica, o partido político é, para Gramsci, o organismo social responsável pela organização da ampla reforma intelectual e moral pretendida, pois configura-se como a primeira célula na qual se aglomeram germes da vontade coletiva que tendem a se tornar universais e totais, no sentido da transformação social a ser conquistada. Neste processo, a vontade coletiva, dirigida pelo partido, atua como a consciência prática da necessidade histórica, como protagonista de um drama histórico real e efetivo. O partido político revolucionário moderno (o partido representativo dos interesses da classe operária) deve atuar como um “moderno Príncipe”, numa referência ao “Príncipe” de Maquiavel, com a diferença substancial de que, nas sociedades modernas, caberia a uma organização social coletiva e não a um único indivíduo a tarefa de galvanizar a vontade transformadora de amplos setores sociais.
O papel básico do partido operário é contribuir para a elevação da consciência de classe, superando os marcos dos interesses puramente imediatos, economicistas, corporativos, para o nível da visão global da realidade, forjando, desta feita, uma “vontade coletiva nacional-popular”xviii, capaz de hegemonizar um projeto político nacional de construção da sociedade socialista. O partido, portanto, é a organização capaz de promover a passagem do momento “egoístico-passional”, economicista e corporativo dos grupos sociais para o momento ético-político, universalizante, hegemônico, no que Gramsci chama de momento “catártico”xix, quando a ideologia, como “criação da fantasia concreta”, atua sobre um povo disperso e pulverizado para despertar e organizar a sua vontade coletiva.
O trabalho do partido revolucionário somente será efetivo se, neste processo de elaboração de um pensamento superior ao senso comum, não se abandonar o contato com as massas, com os “simplórios”, segundo a terminologia de Gramsci, pois é deste contato que os militantes partidários podem extrair a fonte dos problemas a serem estudados e resolvidos, impedindo que o partido descole-se da vida prática e caia em um intelectualismo estéril e de gabinete. Trata-se de inovar e tornar crítica uma atividade já existente, produzindo-se uma nova concepção de mundo que, por estar ligada à vida do povo, tem maiores possibilidades de difusão, tornando-se um senso comum renovado por uma filosofia que visa não a manutenção dos subalternos em uma condição submissa, mas, pelo contrário, criar condições para um progresso intelectual que seja acessível a toda a massa e não apenas a pequenos grupos. São palavras de Gramsci:
Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas ‘originais’; significa também, e sobretudo, difundir criticamente verdades já descobertas, ‘socializá-las’ por assim dizer; e, portanto, transformá-las em bases de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral. O fato de que uma multidão de homens seja conduzida a pensar coerentemente e de maneira unitária a realidade presente é um fato ‘filosófico’ bem mais importante e ‘original’ do que a descoberta, por parte de um ‘gênio’ filosófico, de uma nova verdade que permaneça como patrimônio de pequenos grupos intelectuais.xx
Para a construção desta concepção de mundo crítica, coerente e unitária, assume papel decisivo a ação dos intelectuais de novo tipo, conforme propõe Gramsci. Ao contrário do intelectual tradicional, um profissional da eloqüência e do discurso, a exercer o monopólio do saber na sociedade, o novo intelectual, o intelectual orgânico, deve portar-se como um organizador da vontade coletiva, um construtor da nova hegemonia, um “persuasor permanente”xxi, que necessita garantir sua inserção ativa e contínua na vida prática. Comprometido em elaborar e difundir a visão de mundo a ser universalizada, ou seja, a ser abraçada como verdade pelos agentes sociais, sua função é essencial no estabelecimento do consenso “espontâneo” a ser dado pelos indivíduos e grupos à orientação da facção hegemônica para a vida social, procedimento necessário para a conquista e a posterior conservação do poder revolucionário.
O intelectual orgânico é mais que um especialista de algum saber, é um dirigente, um político que reúne, acima de tudo, a capacidade de unificar o grupo social ou o partido a que pertence em torno da visão de mundo que lhe é própria, visando garantir a ação coletiva coerente no sentido da transformação da realidade conforme o projeto de poder. Os intelectuais de novo tipo funcionam, pois, como categoria orgânica de um grupo social fundamental, de uma classe, como organizadores da hegemonia, sendo responsáveis pela unidade entre teoria e prática na produção do processo histórico real. O partido político, por conseguinte, é o lugar por excelência da atuação dos intelectuais orgânicos, já que a função do partido é, na sua essência, “diretiva e organizativa, isto é, educativa, isto é, intelectual”xxii.
Uma massa humana não conquista sua autonomia sem organizar-se, e não existe organização sem intelectuais, sem aqueles que ocupem-se de dar homogeneidade e consciência ao grupo ao qual pertencem. No processo de autoconsciência crítica, os agentes sociais criam seus intelectuais orgânicos, seus organizadores, seus dirigentes, para que elaborem e reelaborem continuamente os princípios teóricos necessários à cimentação de sua unidade enquanto grupo cujos integrantes se identifiquem não só por sua posição econômica no jogo das relações sociais, mas também e, essencialmente, por seu posicionamento político, na busca pela transformação da realidade social.
Na relação intelectuais-massa traduz-se a dialética teoria-prática inerente ao processo, no qual o aspecto teórico distingue-se concretamente através de um grupo de pessoas especializadas na formulação conceitual e filosófica orientadora da ação política prática. Os partidos, entendidos como organismos sociais classistas, voltados para a luta política por excelência, são os experimentadores históricos das novas concepções de mundo. Forjam, na ação prática, as novas intelectualidades integrais e totalizadoras, responsáveis pela universalização da concepção do grupo, promovendo, assim, a unidade da teoria com a prática no processo histórico real. Afinal, trata-se de construir uma teoria que se identifique com os elementos essenciais dessa prática e possa acelerar o processo histórico, tornando a prática mais homogênea, coerente e eficaz. “A identificação de teoria e prática é um ato crítico, pelo qual se demonstra que a prática é racional e necessária ou que a teoria é realista e racional”xxiii, é o que nos diz Gramsci.
A difusão da nova concepção de mundo
O processo de difusão das novas concepções de mundo ocorre por razões práticas e sociais, ou seja, como resultado de um embate contra as velhas concepções dominantes. A construção ideológica hegemônica prevê a superação do senso comum tradicional para a criação de outro, mais adequado à concepção do novo grupo dirigente. A postura revolucionária exige permanente embate contra as filosofias tradicionais, implícitas, de forma desorganizada e fragmentada no senso comum, mas a elaboração das novas idéias hegemônicas não pode prescindir de tudo aquilo que é próprio do senso comum, pois este traduz “espontaneamente a filosofia das multidões”xxiv. É preciso garantir o vínculo permanente da filosofia da práxis com as aspirações populares, de forma a que as novas ideias se enraízem na consciência do povo com a mesma força das crenças tradicionais.
Sendo assim, para que a difusão da nova concepção de mundo obtenha êxito, seja galvanizada pelas massas e ganhe vida real, influem, mas não são suficientes, a forma racional, lógica e coerente com que a proposta é exposta e apresentada e a autoridade, o reconhecimento público do expositor e dos pensadores nos quais este se apóia. O elemento decisivo, no entanto, é de caráter não racional: é a fé. Fé no grupo social a que pertence o agente (estando no meio de tantos que pensam como ele, de que maneira poderia estar errado?) e no expositor que construiu sua autoridade e prestígio por meio de uma história de militância e dedicação à causa e aos ideais defendidos pelo grupo. Fé, acima de tudo, nas palavras que lhe tocam fundo por terem ligação com o seu cotidiano e por apontarem caminhos possíveis de serem percorridos na estratégia de luta apresentada.
Segundo Gramsci, “toda relação de hegemonia é necessariamente uma relação pedagógica”xxv, é uma relação social ativa de modificação do ambiente cultural existente. Na luta hegemônica, a difusão da nova concepção de mundo, a criação do novo terreno ideológico exige, como já visto, uma ampla reforma intelectual e moral. É preciso que a ideia penetre no povo, torne-se costume, persuasão e fé coletiva. A nova concepção de mundo, para que se transforme em realidade prática, terá que ser vivida pelas massas com a intensidade das crenças populares, como uma fé. E isto somente será possível se, no trabalho incessante para convencer camadas populares cada vez mais vastas, os intelectuais orgânicos surgidos do seio dessa massa permaneçam em contato com ela, de modo a garantir a contínua elaboração e reelaboração da doutrina coletiva na forma mais aderente e adequada ao grupo. Os sentimentos populares, para Gramsci, não podem ser desprezados. Precisam ser conhecidos e estudados tal como se apresentam, fornecendo, desta feita, o elemento de paixão igualmente necessário à ação política.
Gramsci diz não ser possível saber sem compreender e, principalmente, sem sentir e estar apaixonado pelo seu objeto de saber. O intelectual orgânico apaixona-se pelo motivo maior da sua luta transformadora, identifica-se com as paixões elementares do povo, nutre-se delas para que a elaboração científica da concepção de mundo revolucionária esteja fincada em bases populares efetivas e não se reduza a mero proselitismo ou pedantismo. “Não se faz política-história sem esta paixão, isto é, sem esta conexão sentimental entre intelectuais e povo-nação”xxvi. É daí que vem a força de coesão do bloco histórico, estabelecendo-se verdadeiramente a relação de representação entre dirigentes e dirigidos, a adesão orgânica entre partido e classe social, necessária à formação da vontade coletiva nacional-popular que conduzirá a luta revolucionária e o processo de construção da nova hegemonia.
i STACCONE, Giuseppe – Gramsci – 100 anos: Revolução e Política, Petrópolis, Vozes, 1990, 3ª edição, p. 73.
ii Cf. COUTINHO, Carlos Nelson – “Teoria ‘ampliada’ do Estado” in Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999, pp. 121-143.
iii GRAMSCI, Antonio – Maquiavel, a Política e o Estado Moderno, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1991, 8ª edição, p. 87.
iv COUTINHO, Carlos Nelson – op. cit., p. 155.
v Cf. GRAMSCI, op. cit., p. 73.
vi Práxis é a “categoria central da filosofia que se concebe ela mesma não só como interpretação do mundo, mas também como guia de sua transformação”. Cf. VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez – Filosofia da Práxis, Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1968, p. 5.
vii Ibidem, p. 234.
viii ANSART, Pierre – Ideologias, Conflitos e Poder, RJ, Zahar, 1978, p. 196.
ix “Com a transformação da base econômica, toda a enorme superestrutura se transforma com maior ou menor rapidez. Na consideração de tais transformações é necessário distinguir sempre entre a transformação material das condições econômicas de produção, que pode ser objeto de rigorosa verificação da ciência natural, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência desse conflito e o conduzem até o fim.” Os Pensadores: Karl Marx, São Paulo, Editora Nova Cultural, 1996, p. 52.
x Cf. GRAMSCI, op. cit, p. 14.
xi Ibidem, p. 50.
xii GRAMSCI, A. – Cadernos do Cárcere – Volume 1, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999, p. 94.
xiii ___________ – Maquiavel, a Política e o Estado Moderno, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1991, 8ª edição, p. 45.
xiv MARX, K. – “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução” in Temas de Ciências Humanas, São Paulo, Grijalbo, volume 2, 1977, p. 3.
xv “Concreta e historicamente, com a ‘figura’ do bloco histórico, Gramsci define uma situação social formada de uma estrutura econômica vinculada, dialética e organicamente, às superestruturas jurídico-políticas e ideológicas.” STACCONE, Giuseppe – op. cit., p. 72.
xvi GRAMSCI, A. – Cadernos do Cárcere – Volume 1, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999, p. 238.
xvii Ibidem, p. 97.
xviii __________ – Maquiavel, a Política e o Estado Moderno, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1991, 8ª edição, p. 7.
xix ____________ – Cadernos do Cárcere – Volume 1, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999, pp. 314/315.
xx Ibidem, pp. 95/96.
____________ – Cadernos do Cárcere – Volume 1, Rio
xxi ____________ – Cadernos do Cárcere – Volume 2, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000, p. 53.
xxii Ibidem, p. 25.
xxiii ____________ – Concepção Dialética da História, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1991, 9ª edição, pp. 51/52.
xxiv ____________ – Cadernos do Cárcere – Volume 1, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999, p. 116.
xxv ____________ – Concepção Dialética da História, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1991, 9ª edição, p. 37.
xxvi ____________ – Cadernos do Cárcere – Volume 1, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999, p. 222.