CATARSE: Reedição do livro Ensaios sobre Consciência e Emancipação

O projeto

A reedição de Ensaios sobre Consciência e Emancipação, pela Fundação Dinarco Reis em parceria com a Editora LavraPalavra, é uma iniciativa absolutamente necessária para que os instigantes debates apresentados pelo professor, educador popular, escritor, poeta, chargista e militante comunista Mauro Iasi nesta obra possam chegar a mais gente, em especial às novas gerações de lutadores e lutadoras sociais, militantes que buscam revolucionar o mundo para superar o quadro de barbárie imposto pelo capitalismo e caminhar na direção do socialismo e da sociedade comunista.

Mauro nos convida a fazer importantes reflexões acerca de categorias e conceituações no campo do marxismo, sempre com a preocupação de que o estudo da teoria possibilite o embasamento, no âmbito das ideias, de uma ação militante voltada à luta transformadora. Com o devido cuidado para não tornar essa prática formativa em uma educação utilitarista e pragmática, tratando de forma rasa e superficial a teoria, como se fosse uma receita de bolo para a ação política. Mauro, pelo contrário, nos conduz sempre para a reflexão profunda dos temas, conceitos e categorias.

Longe de propor um mero exercício diletante na abordagem dos diferentes assuntos, o livro, assim como toda obra e atividade desenvolvidas pelo autor em sua vida de intelectual e militante comunista, busca, acima de tudo, colaborar com a construção de consciências voltadas à permanente reflexão crítica da realidade com vistas à sua radical transformação. Uma leitura, portanto, imprescindível.

Mauro Iasi é hoje um dos principais intelectuais orgânicos da classe trabalhadora brasileira. Autor de vários livros e artigos que tratam de aspectos centrais da teoria marxista, da história da luta de classes e dos movimentos contemporâneos, escreve regularmente para blogs e sites, é um poeta excepcional e vem se destacando também por suas charges carregadas de uma crítica ferina e irônica sobre a conjuntura atual.

Por Ricardo Costa, Historiador, Dirigente do PCB e Diretor da Fundação Dinarco Reis.

PRÉ-VENDA Livro-Agenda 2023: Arte, Cultura Popular e Revolução

A Agenda de 2023, Arte, Cultura Popular e Revolução, traz diversos artistas e intelectuais brasileiros e de outros países, que deram significativas contribuições para a cultura e a luta pela transformação de suas sociedades.

Desde o processo de sua formação, o PCB atraiu diversos intelectuais e artistas para a sua militância. Durante esses últimos cem anos, foram vários expoentes das artes e da cultura que atuaram ou foram muito próximos do partido. Poetas, músicos, compositores, escritores, atores, dramaturgos, cineastas, artistas plásticos, mulheres e homens que retrataram a dura realidade da sociedade brasileira.

Poucas formações partidárias no mundo podem exibir um portfólio tão expressivo de personalidades relevantes da vida cultural de seu país quanto o PCB. Os comunistas, mesmo aqueles e aquelas não diretamente ligados à produção artística, entendem a luta pela afirmação da cultura popular como elemento indissociável do processo revolucionário.

Artistas de todas partes do mundo também estão presentes, como os que atuaram na Revolução Russa, os que combateram toda forma de opressão e preconceito, como o nazifascismo na Europa e no mundo, defendendo os valores da liberdade e do Socialismo.

Da mesma forma, são retratados vários artistas da América Latina, resistentes às ditaduras que assolaram o nosso continente. Diversos artistas revolucionários, muitos presos e alguns assassinados, como Victor Jara. E aqueles que contribuíram nas diversas guerras de independência dos países africanos e asiáticos.

Convidamos a todas e todos a se deleitarem nessa leitura, recheada de poesia e referências às lutadoras e aos lutadores da área da cultura.

*PREVISÃO DE ENVIO: A PARTIR DE OUTUBRO DE 2022*

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CAMARADA DINARCO REIS FILHO, PRESENTE!

Foto: Marianna Ferrodri

Na manhã de 31 de julho de 2022, o nosso Partido recebeu a triste notícia do falecimento do camarada Dinarco Reis Filho. Com idade avançada e padecendo de enfermidades, o nosso Dinarquinho, filho do Tenente Vermelho Dinarco Reis, até seus últimos momentos foi um militante dedicado à construção do PCB e à luta pelo Socialismo.
Prestes a completar 90 anos em novembro, vinculado à célula Claudino José da Silva, de Niterói/São Gonçalo – RJ, Dinarquinho, que brincava com o fato de “já ter nascido dentro do Partido”, foi e será exemplo para as futuras gerações de comunistas. Estas seguirão, a partir de agora, não mais com sua presença física, mas acompanhadas pela memória deste herói do povo brasileiro.
Todas as homenagens serão justas, merecidas e absolutamente necessárias. Mas nenhuma conseguirá traduzir a sua grandeza, a pessoa extraordinária que sempre foi, para além da militância comunista irrepreensível, coerente, desde os tempos de juventude até este 31 de julho, dia em que nos deixou. Deixarão saudades sua gargalhada estrondosa, sua simpatia extrema, seu coração gigantesco, sua solidariedade, seu amor à vida.

Dinarco Reis Filho nasceu em 14 de novembro de 1932, no bairro de Realengo, na Travessa Rodrigues Marques, filho do tenente de aviação militar Dinarco Reis e de Lygia França Reis. Seu pai participou do Levante Comunista de 1935, tendo ficado conhecido como o Tenente Vermelho.
Em 1948, Dinarco Filho entrou para a União da Juventude Comunista (UJC) e, em 1951, no PCB, participando das campanhas do Movimento O Petróleo é Nosso! Em 1959 foi admitido na Petrobrás, através de concurso público.Com o golpe empresarial militar de 1964, foi demitido e cassado, no dia 5 de maio, pelo delito de opinião, passando a viver na clandestinidade. Em São Paulo foi motorista e segurança do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro e participou da organização do VI Congresso do PCB, em 1967.
Foi um dos principais dirigentes do Partido na luta contra os liquidacionistas na década de 1990, tendo atuado com destaque à frente da reorganização partidária no processo de Reconstrução Revolucionária do PCB, juntamente com Zuleide Faria de Mello, Ivan Pinheiro, Horácio Macedo, Raimundo Alves, Pachecão, Edmilson Costa, Sofia Manzano, dentre tantos camaradas responsáveis pela manutenção e retomada em bases revolucionárias do glorioso Partido Comunista Brasileiro, a quem dedicou sua vida.

Quando o Comitê Central decidiu pela criação da Fundação de Estudos Políticos, Sociais e Econômicos Dinarco Reis, em homenagem ao seu pai, não caberia a outra pessoa assumir a presidência da instituição.
Na vibrante comemoração do centenário do PCB, em 25 de março deste ano, no auditório da Associação Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro, lotado pela presença dos comunistas, amigos e amigas do Partido, Dinarquinho recebeu das mãos da amiga e camarada Marta Barçante, atual presidente da FDR, a medalha Dinarco Reis, criada pela Fundação para homenagear militantes e dirigentes comunistas, heróis do povo brasileiro, que dedicaram suas forças às lutas em defesa da classe trabalhadora e pelo Socialismo.
Dinarco Reis Filho, presente agora e sempre!!

Reproduzimos abaixo entrevista concedida por Dinarco Reis Filho ao Jornal O Poder Popular, edição nº 16, de dezembro de 2016.

Iniciativa de petroleiros comunistas: a verdadeira história da criação do décimo terceiro salário

Em entrevista exclusiva à Mariana Nunes, Dinarco Reis Filho, presidente da Fundação Dinarco Reis e militante do PCB há cerca de 70 anos, conta a verdadeira história da criação do décimo terceiro salário no Brasil, uma iniciativa dos comunistas.

– Militantes comunistas da refinaria Duque de Caxias, da Fábrica de Borracha Sintética, de Cubatão, do Pará e outras empresas da Petrobrás realizamos, no final de 1962, uma conferência intersindical, na Praia Grande, em Santos, para discutir o acordo salarial com a empresa. Entre os pontos da pauta de reivindicações, decidimos acabar com a “natalina”, também chamada de “girafa”, um abono natalício fornecido pelas empresas petrolíferas, tanto Petrobrás, quanto Manguinhos e Ipiranga, no Rio Grande do Sul, entre outras.

Segundo Dinarco, existia uma disparidade muito grande na distribuição da natalina, que era feita através de notas atribuídas aos trabalhadores: – Nós, que éramos sindicalistas, só tirávamos nota 1, claro, mas os que eram chefes só tiravam nota 5, a máxima.  Mesmo o pessoal que era puxa-saco tirava abaixo de 5. Assim, quando chegava a época natalina, ninguém ficava satisfeito.

– Resolvemos fazer algo que acabasse com essa disparidade. O companheiro Silas Conforto, da refinaria Duque de Caxias, discutiu com a bancada de deputados federais do Rio de Janeiro e apresentou a proposta de que fosse dado o valor do maior salário adquirido no ano como décimo terceiro salário, incluindo todos os benefícios, pois existiam companheiros com 10 filhos. Tinha que incluir o salário família também, que naquela época não era calculado sobre o salário mínimo, mas um percentual sobre o salário que você recebia.

– Antes de irmos para a Petrobrás apresentar a proposta, como a cidade de Duque de Caxias tinha uma efervescência política muito grande, resolvemos conversar com as lideranças de lá, pois ia dar uma disparidade muito grande em relação à população da cidade, embora a maioria dos empregados da Petrobrás residisse em Caxias.

– Fomos falar com Tenório Cavalcanti, que disse: “Vocês não mexendo com o jogo do bicho, a prostituição e os menores empregados. Pra mim tudo bem”. Nos indicou, ainda, para falarmos com os representantes das associações comercial e industrial de Duque de Caxias. Na reunião com eles foram, como representantes sindicais, Chico Salgado, Silas Conforto e Aristélio Andrade, pela refinaria; e pela fábrica de borracha sintética Paulo de Araújo Sabóia, Dinarco Reis Filho e o presidente do sindicato. Apresentamos nossa proposta com medo do impacto que daria na região. O dirigente da Associação Comercial, surpreendentemente, disse que essa proposta não deveria abranger apenas os petroleiros, mas todos os trabalhadores do Brasil.

– Eu fiquei estupefato, pois não esperava um cara que diziam ser reacionário falar uma coisa dessas.  Ele não tinha nada com o Partido, representava o que tinha de mais reacionário na região. Já o representante da Associação Industrial, que nós pensávamos que iria apoiar, foi contra. Disse que aumentaria os encargos trabalhistas, que os patrões teriam que pagar mais. Em contraponto, o representante da Associação Comercial afirmou que, quando chegasse o final do ano, as indústrias iriam produzir mais, mais sapatos, mais roupas, mais sabão, mais cerveja, o povo iria ter dinheiro para comprar. Disse, então, que apresentaria para a comissão de trabalhadores um senador para levar o projeto a Brasília.

– Na ocasião, deixamos claro que queríamos que o povo brasileiro também tivesse o décimo terceiro salário, não queríamos ser excludentes, por isso somos sindicalistas comunistas.

– O representante da Associação Comercial indicou o senador Vasconcelos Torres, do Rio de Janeiro. O senador gostou da lei, disse que iria apresentar. Entretanto, como era ligado aos militares, que foram contra o projeto, ficou indeciso. Quando chegou a época de discuti-lo, pois já o havia apresentado no Senado, resolveu falar com o senador Aarão Steinbruch, também do Rio de Janeiro.  

– O senador Steinbruch fez algumas modificações e veio falar conosco. Como essas modificações não tiravam o espírito do projeto, concordamos. Assim foi aprovado o décimo terceiro salário, tanto no Senado quanto na Câmara, diante dos argumentos apresentados. Quando fomos ver a assinatura pelo então presidente João Goulart saiu uma caravana do Rio de Janeiro, com vários ônibus. Em um deles a polícia prendeu o Aristélio e o Silas. Quando eles chegaram a Brasília, nem sabiam da mudança do Vasconcelos Torres para o Aarão Steinbruch. Não fui porque minha mulher estava grávida, em fase adiantada. Foi uma delegação grande aqui do Rio de Janeiro.

– Essa é a verdadeira história do décimo terceiro salário, que surgiu através de uma reivindicação dos petroleiros. Existe outra história dizendo que os patrões teriam sido seus criadores, pois diminuiriam os salários e fariam uma complementação através do décimo terceiro. Balela! Patrão nunca faz nada para trabalhador, concluiu Dinarco.

Forma e conteúdo na organização política: em defesa da estratégia da Revolução Socialista no Brasil

foto: Raquel Fragoso

Por Gabriel Lazzari

Publicado originalmente em LavraPalavra

No dia 23 de maio, o companheiro Sérgio Granja lançou no portal Contrapoder o artigo Centralismo democrático ou burocrático?, em que utiliza uma série de argumentos contra o centralismo democrático como método de trabalho de uma organização política. A empreitada, nada inédita, já foi feita por diversos teóricos da luta social, tanto à esquerda quanto à direita, e o companheiro Granja não apresenta nenhum argumento novo. No entanto, velhos argumentos também merecem novas respostas, ainda mais considerando o momento histórico de nossa conjuntura e o nível de confusão ideológica do proletariado brasileiro nessas primeiras décadas do século XXI.

Como parte da indispensável luta teórica que é típica da luta de classes, nossa contribuição será aqui feita em dois momentos. Em um primeiro, buscarei analisar com detalhes as confusões apresentadas pelo companheiro Granja, No segundo momento, de forma muito breve demonstrar como o marxismo aborda essas mesmas questões e como apresenta soluções – políticas e organizativas – para os problemas colocados honestamente pelo companheiro Granja. O objetivo final é demonstrar, no melhor espírito dialético, do vínculo indissociável entre forma e conteúdo das organizações políticas, o que necessariamente nos leva a constatar a atualidade do leninismo por meio da atualidade da Revolução Socialista para o Brasil.

O artigo, infelizmente, ficou longo. O exame minucioso do texto do companheiro Granja levou a isso. Entendemos que atrapalha uma divulgação mais ampla, mas, ao mesmo tempo, esclarece mais profundamente os problemas.

As confusões do artigo do companheiro Granja

É preciso ser respeitoso e honesto no debate político dentro do movimento dos trabalhadores. Isso não quer dizer, absolutamente, que a retórica – especialmente aquela afiada, típica dos debates dentro do marxismo – seja dispensável. Mas, com argumentos os mais gentis ou os mais inflamados, é preciso honestamente analisar as posições dos adversários dentro da própria esquerda. Só oferecendo polêmicas solidamente embasadas, podemos ajudar a educar politicamente a classe trabalhadora.

Em primeiro lugar, está a ideia da pertinência ou não do centralismo democrático (ainda por analisar, uma vez que entendemos diferente do companheiro Granja) para o marxismo. Ele diz:

A ideia de um destacamento de vanguarda disciplinado, eficiente, levou Lênin a formular, nas condições históricas da Rússia de 1917, o princípio do centralismo democrático. Essa é, portanto, uma formulação não marxista, mas leninista. E mais: essa ideia tornou-se a pedra de toque da concepção leninista (e não marxista) do partido de novo tipo.

Se é verdade que o centralismo democrático como método de trabalho foi colocado nessa terminologia tipicamente por Lênin – e mesmo tardiamente, uma vez que, em princípio, em obras como Que fazer? [1], Lênin enfocava mais o centralismo do que qualquer outra questão –, já em Marx e Engels temos essa concepção de “um trabalho único” do Partido. A ver, por exemplo, a Mensagem da Direção Central à Liga dos Comunistas [2], em que os alemães dizem:

A reorganização da Liga só pode ser conseguida através de um emissário e a Direcção Central considera da maior importância que o emissário parta neste preciso momento, em que está iminente uma nova revolução, em que o partido operário deve, portanto, apresentar-se o mais organizado, o mais unânime e o mais autónomo possível, para não ser outra vez, como em 1848, explorado e posto a reboque pela burguesia.

Assim, o problema da “unanimidade”, da “organização”, da “autonomia” aparecem como condição indispensável para que o partido operário não esteja “a reboque” da burguesia. Se não é uma ideia de Marx e Engels o conceito do centralismo democrático, tampouco podemos ver que, em sua forma embrionária, eles entendem o papel de uma ação unificada como forma de garantir a independência de classe e, assim, o sucesso e a permanência do partido operário em um rumo próprio.

Em seguida, o companheiro Granja diz:

Lênin colocou o problema em termos relativamente simples. Quando o partido precisa tomar uma decisão, deve reunir seus membros, promover um debate livre, amplo, profundo, que permita o exame exaustivo da questão, para, finalmente, como coroamento do processo de discussão, colocar em votação as diversas posições em disputa. Esse é o momento da democracia. Uma vez consolidada uma maioria, a minoria a ela deve subordinar-se. Esse é o momento do centralismo. Daí a fórmula leninista do centralismo democrático.

Também aqui é preciso fazer algumas correções. É apenas em 1906 [3] que Lênin passa a usar o termo e, mesmo assim, com cautela. Ainda em 1906, ele se opõe à regulamentação menchevique do centralismo democrático, formulada da seguinte maneira:

Em vista do fato de que várias organizações do Partido levantaram a questão dos limites dentro dos quais as decisões dos congressos do Partido podem ser criticadas, o Comitê Central, tendo em mente que os interesses do proletariado russo sempre exigiram a maior unidade possível nas táticas do POSDR, e que esta unidade nas atividades políticas das várias seções do nosso Partido é agora mais necessária do que nunca, é da opinião:

(§1) de que, na imprensa do Partido e nas reuniões do Partido, todos devem ter liberdade total para expressar suas opiniões pessoais e defender seus pontos de vista individuais;

(§2) de que, nas reuniões políticas públicas, os membros do Partido devem abster-se de conduzir agitação que contrarie as decisões do Congresso;

(§3) de que nenhum membro do Partido deveria em tais reuniões convocar a ações que contrariem as decisões do congresso, ou propor resoluções que não estejam de acordo com as decisões do congresso. [Todos os itálicos são de Lênin] [4]

O líder bolchevique vê “vários pontos estranhos” nessa formulação. Para ele, “[o] princípio do centralismo democrático e da autonomia das organizações partidárias locais implica uma liberdade universal e plena de crítica, desde que isso não perturbe a unidade de uma ação definida; exclui todas as críticas que perturbem ou dificultem a unidade de uma ação decidida pelo Partido” [4]. Ora, vemos que é bastante diferente a formulação apresentada pelo companheiro Granja daquela apresentada pelo camarada Lênin. Este, como se vê, não tenta cassar a palavra ou a opinião de nenhum militante, como aquele dá a entender.

Sigamos para uma análise mais aprofundada, em que, corretamente, mesmo “torcendo” um pouco o significado do centralismo democrático, o companheiro Granja busca entender a organização não a partir de um ideal pré-definido, mas a partir da funcionalidade histórico-prática da forma leninista de partido:

O princípio é cristalino. Mas que partido era esse? Ele foi pensado como instrumento para a realização de qual tarefa política? Sem me alongar, acho que posso dizer que esse era um partido para a insurreição. E foi eficaz no que se propunha. Era um partido talhado para a luta política nas condições históricas do que Gramsci chamou de “Oriente”, nas quais o Estado era tudo e a “sociedade civil” gelatinosa, o que permitia que a luta política fosse conduzida como uma “guerra de movimento”. Lá, o Estado era fundamentalmente um aparelho repressivo. A tomada do poder burocrático-militar de Estado colocava-se como o objetivo central. O requisito era a presteza de agrupar forças no momento e no ponto decisivos. Em contrapartida, dizia Gramsci, no “Ocidente” só a “guerra de posição” é viável. Porque aí o Estado é “sociedade política + sociedade civil”, é “coerção + consentimento”. Tem-se uma formação social solidamente articulada pela ideologia. Em consequência, os aparelhos ideológicos de Estado assumem uma importância estratégica. O poder de Estado se legitima em uma zona de hegemonia que abarca toda (ou quase toda) a sociedade. […]

Bom, no trecho acima é onde podemos ver o que eu entendo ser o cerne da confusão do companheiro Granja. Em primeiro lugar, esquece que o próprio Gramsci não excluía a chamada “guerra de movimento” nas sociedades “ocidentais”, mas trazia para primeiro plano a “guerra de posição”. É compreensível que muitas das reflexões de Gramsci gerem dúvidas e tendam a ser mal interpretadas – essas leituras enviesadas de Gramsci, que buscam afastá-lo do leninismo e aproximá-lo do reformismo deram origem, por exemplo, ao eurocomunismo, no Partido Comunista Italiano. Por isso, precisamos compreender, na totalidade da reflexão gramsciana, a relação que ele opera entre “guerra de posição” e “guerra de movimento”. O sardo dizia:

A verdade é que não se pode escolher a forma de guerra que se quer a menos que se tenha imediatamente uma superioridade esmagadora sobre o inimigo; sabe-se quantas perdas custou a obstinação dos Estados-Maiores em não quererem reconhecer que a guerra de posição era “imposta” pela relação geral das forças em choque. [Caderno 13, §24, grifo nosso]

Mas também:

Para a filosofia da práxis, as ideologias não são de modo algum arbitrárias; são fatos históricos reais, que devem ser combatidos e revelados em sua natureza de instrumentos de domínio, não por razões de moralidade, etc., mas precisamente por razões de luta política: para tornar os governados intelectualmente independentes dos governantes, para destruir uma hegemonia e criar uma outra, como momento necessário da subversão da práxis. Ao que parece, Croce se aproxima mais da interpretação materialista vulgar do que a filosofia da práxis. […] A filosofia da práxis, ao contrário, não tende a resolver pacificamente as contradições existentes na história e na sociedade, ou, melhor, ela e a própria teoria de tais contradições;não é o instrumento de governo de grupos dominantes para obter o consentimento e exercer a hegemonia sobre as classes subalternas; é a expressão destas classes subalternas, que querem educar a si mesmas na arte de governo e que têm interesse em conhecer todas as verdades, inclusive as desagradáveis. [Livro 1 dos “Cadernos do Cárcere”]

E:

A guerra de posições, em política, é o conceito de hegemonia, que só pode nascer depois do advento de certas premissas, quais sejam, as grandes organizações populares de tipo moderno, que representam as “trincheiras” e as fortificações permanentes da guerra de posições. […]

Já assinalei em outra ocasião que em uma determinada sociedade ninguém está desorganizado e sem partido, sempre que se entenda organização e partido em sentido amplo e não formal. Nesta multiplicidade de sociedades particulares […] uma ou mais delas prevalecem relativa ou absolutamente, constituindo o aparato hegemônico de um grupo social sobre o resto da população (ou sociedade civil), basedo Estado entendido estritamente como aparato governativo-coercitivo.

Tática das grandes massas e tática imediata de pequenos grupos. Entra na discussão sobre a guerra de posições e a de movimentos […]. É também, (pode dizer-se) o ponto de conexão entre a estratégia e a tática, tanto em política como na arte militar. Os indivíduos isolados (inclusive como componentes de vastas massas) tendem a conceber a guerra instintivamente como “guerra de guerrilhas” […] Na política o erro se produz por uma inexata compreensão do que é o Estado (no significado integralditadura + hegemonia). [Livro 3 dos “Cadernos do Cárcere”]

As citações são longas, mas indispensável para compreender que, para Gramsci, a “guerra de posição” e a “guerra de movimento” não são funções absolutizadas, mas momento da luta pela hegemonia e pela disputa do poder. É preciso aqui dar crédito e enunciar que o camarada Gabriel Landi, em seu artigo Gramsci contra o “marxismo cultural” [5]é o formulador que nos apresentou essa discussão e nunca seria demais indicar a leitura de seu texto.

Assim, compreendendo melhor Gramsci, podemos ver que, mesmo reconhecendo a guerra de posição como predominante nas sociedades “ocidentais”, não descarta as formas de “guerra de movimento”, mas indica o quanto a existência de uma sociedade civil organizada e presente, como forma de gestão do consentimento por parte das classes dominantes, é uma realidade. No entanto, aqui vem o salto do companheiro Granja:

[…] É preciso, nessas condições, ter um partido capaz de disputar a hegemonia na sociedade. E então já não se postula um destacamento de vanguarda disciplinado, eficiente, porque isso já não teria eficácia nas condições da democracia política.

Para ele, a condição da hegemonia está em oposição a um “destacamento de vanguarda disciplinado, eficiente, porque isso já não teria eficácia nas condições da democracia política”. Aqui nos parece estar o salto lógico mais importante. Isso porque qualquer organização humana precisa ser compreendida como “eficiente” para seus fins se tiver eficácia, mas, com um aceno de mão, o companheiro Granja diz que uma vanguarda disciplinada, “eficiente”, não teria eficácia. O cerne de sua divergência com o leninismo, contudo, aparece em seguida, e damos a palavra a ele:

Nessa nova situação, ganha o primeiro plano a necessidade de um partido de massas, articulado por quadros intermediários, capaz de realizar tarefas de convencimento. Um partido necessariamente de massas, porque a capilaridade, a disseminação, é condição indispensável para fazer o trabalho de convencimento em toda a extensão da sociedade. O requisito é a capacidade de argumentação, a perseverança para persuadir e a tolerância com a diferença. Nesse partido, o centralismo democrático não tem mais vigência. É um anacronismo. A unidade desse partido não se faz pela subordinação imposta administrativamente pela maioria à minoria, mas pelo consenso tecido em torno das questões capitais para o desenvolvimento da luta política.

Aqui temos uma coleção de confusões. Em primeiro lugar, é preciso observar que também o leninismo aponta para a construção de partidos que façam “o trabalho de convencimento em toda a extensão da sociedade” e cujos “quadros intermediários” tenham “a capacidade de argumentação, a perseverança para persuadir e a tolerância com a diferença”. Qualquer um que tenha lido obras do Lênin percebe que esse é o ponto central de sua teoria da organização: como construir instrumentos que façam o trabalho de conectar-se às massas, de trabalhar ativamente sua consciência em cada momento de luta. No entanto, aqui aparece a primeira divergência profunda do companheiro Granja com Lênin, subjacente à diferença entre um partido “de massas” e um partido “de vanguarda”: o problema da consciência.

Para Lênin, buscando combater as tendências espontaneístas e reformistas da virada do século XIX para o XX, e se utilizando da teoria revolucionária de Marx e Engels para isso, há uma questão da consciência de classe que impacta na forma organizativa. Essa questão diz respeito a assim chamada “consciência vinda de fora”. Se compreendemos a materialidade como substrato último das condições subjetivas dos seres humanos, podemos igualmente observar que há um tipo de consciência de classe que surge de uma forma “espontânea” na classe trabalhadora, que é a consciência de seu lugar no sistema capitalista, ou seja, seu lugar de vendedor da força de trabalho. A esse tipo de consciência, podemos observar uma certa correspondência de formas de luta (como a greve por melhores salários) e de formas organizativas (como os sindicatos). No entanto, é apenas a elevação desses conhecimentos e experiências, apreendidos espontaneamente, que pode fazer surgir no seio do proletariado uma consciência revolucionária. Com/por meio dela, setores da classe trabalhadora podem se utilizar de um arcabouço metodológico e conceitual para compreender não apenas seu lugar no modo de produção capitalista, mas seu lugar potencial como classe dirigente da revolução social.

É importante notar o quanto essas duas coisas, apesar de intimamente conectadas, são diversas: enquanto a primeira é uma consciência de classe em si, a segunda é uma consciência de classe para si; enquanto aquela não permite ir a classe trabalhadora para além das reivindicações possíveis dentro da ordem burguesa, esta permite a construção de uma alternativa teórica e política distinta, isso é, o socialismo.

Aqui é que se coloca o problema das massas e da vanguarda. Para Lênin, cujo objetivo primordial era desenvolver a consciência de classe da forma em si para a forma para si, ou seja, da consciência de classe espontânea à consciência de classe revolucionária, era preciso constatar que, fora dos períodos de crise revolucionária aguda, a experiência cotidiana das massas no capitalismo força o processo de consciência à adesão ao nível máximo da consciência para si. Não podemos, então, supor que serão as massas as condutoras da transformação da sua própria consciência. No entanto, podemos constatar que justamente um destacamento da classe trabalhadora, por diversos motivos pessoais e coletivos, alcança, em qualquer tempo histórico, essa consciência para si, justamente pela mediação com a teoria revolucionária marxista.

Nesse sentido, o partido de vanguarda aparece como necessidade histórica, como operador político imprescindível para que haja o desenvolvimento contínuo da consciência para si, para que sofra menos recuos no processo de consciência do que as massas. Um partido de massas, assim, só poderá contribuir para as próprias massas a partir do nível de consciência sintetizado por elas, sem a mediação necessária da teoria revolucionária e com as pressões ideológicas das massas; um partido de vanguarda, por sua vez, pode contribuir na educação política das massas, por meio de quadros intermediários, dotados do convencimento, da persuasão, da tolerância.

Se, na questão anterior, já havia uma profunda divergência entre Lênin e o companheiro Granja, a conclusão é nosso segundo salto lógico no escuro. O companheiro Granja opõe, assim, o suposto funcionamento desses dois tipos de partido: no partido de tipo leninista, com centralismo democrático, “[a] unidade […] se faz pela subordinação imposta administrativamente pela maioria à minoria”, enquanto no partido de massas, ela se faz “pelo consenso tecido em torno das questões capitais para o desenvolvimento da luta política”. Ora, vejamos se é assim.

Em primeiro lugar, a subordinação da linha política minoritária à majoritária dentro do centralismo democrático não se faz “administrativamente”, mas por meio de intensos debates e busca pelo convencimento. Isso é o que explica a quantidade de escritos de Lênin, por exemplo, aos militantes bolcheviques em diversos momentos da vida política deste Partido. Igualmente, não há “imposição administrativa[…]” strictu sensu: todo partido de tipo leninista pressupõe uma participação voluntária de militantes revolucionários. Como muitas vezes aconteceu e acontece, o militante que julgar incorreta e inadmissível uma determinada posição, a ponto de não aceitar agir em unidade com o Partido, simplesmente sai dele e deixa de ser minoria, passa a ser ex-militante. As palavras duras do companheiro Granja não demonstram nada, senão a tentativa de pintar como “antidemocrático” o que há de mais democrático: a prevalência da opinião da maioria.

Mas também sua visão sobre os partidos de massas nos parece um pouco idealizada. Ora, se formos pensar em um partido de massas atual, do Brasil, o nome mais significativo é o do Partido dos Trabalhadores. É preciso perguntar, portanto, como seriam as decisões se houver (e há) pelo menos um militante revolucionário no PT, que julgar absurda (apenas para citar um tema atual) a coligação do PT com Geraldo Alckmin nas eleições de 2022. Já aí não há, portanto, “consenso tecido em torno das questões capitais para o desenvolvimento da luta política”. Muito bem. O que acontece, então, no PT, se não há consenso (e não há, nessa questão particular)? Continua-se debatendo ad infinitum, até um consenso que, se o militante revolucionário do PT mantiver sua dignidade e posição, nunca chegará? Parece improvável. Parece, como é o caso, que (a despeito de inúmeros companheiros valiosíssimos dentro do PT) os processos são definidos em reuniões de Diretório Nacional, alijadas da imensa base de militantes partidários, ou seja, das massas.

Assim, a questão posta pelo companheiro Granja é um caso clássico do “dois pesos, duas medidas”. O partido de tipo leninista é medido em seu momento de divergência política interna; o de massas, em seu momento de convergência política interna. Ora, é possível imaginar que, também nos momentos de consenso político interno, os partidos leninistas não precisem subordinar a minoria à maioria – afinal, a posição é consensual. Por sua vez, nos momentos de dissenso político é que os partidos de massa mostram a fragilidade de sua democracia interna, uma vez que as massas, apresentando um nível de consciência médio inferior à necessária consciência revolucionária, tenderão a trazer suas próprias confusões para o seio do partido operário, atrasando ainda mais o processo de construção de uma linha política e de uma intervenção sólidas junto ao conjunto da classe trabalhadora. Se o companheiro Granja não vê problema em que o partido de massas tenha uma síntese política (uma forma de consciência) rebaixada, ou, ainda pior, acha ela importante para as condições de luta nas sociedades ocidentais, não é o nosso caso.

Apresentamos nosso caso totalmente voltado para para o “ponto de vista da eficácia, da organização servindo à política”, ainda que, no caso do partido leninista, à política revolucionária, que exige um trabalho de consciência diverso. O companheiro Granja, no entanto, apresenta que “a questão pode e deve ser analisada sob diversas angulações”. A citação é questionável. Uma organização política deve ser analisada do ponto de vista de sua funcionalidade prática. Mas vejamos quais são as angulações filosóficas (sem qualquer desprezo pela filosofia) que o companheiro propõe:

[…] A da liberdade, por exemplo. Como se sabe, a questão da liberdade é central para o comunismo de Marx: a utopia comunista não é a igualdade (que, no máximo, é um pressuposto), mas a liberdade do homem. E é por esse prisma que também é preciso discutir o princípio da subordinação da minoria à maioria. Que liberdade é essa na qual a minoria é obrigada a calar suas convicções em nome de uma decisão da maioria? Então o militante socialista luta para ser amordaçado quando mais precisa expressar suas opiniões, que é exatamente quando discorda da maioria? Mas a ideia de centralismo democrático, objetivando a unidade de ação, não apenas obriga o dissidente a calar suas opiniões. Quer mais: quer obrigá-lo a pronunciar as palavras que repudia. Não há violência maior. Como diria Roland Barthes, “o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer”.

Infeliz parágrafo, o do companheiro Granja.

Em primeiro lugar, como já apresentamos, o “militante socialista” é sempre um voluntário em uma organização leninista. Ele não é “amordaçado”, mas escolhe subordinar sua vontade à da maioria – do contrário, ele simplesmente sai do partido!

Em segundo lugar, como vimos na citação de 1906 de Lênin, a questão não está na proibição da expressão de suas opiniões, mas justamente na necessidade da unidade de ação. Um partido revolucionário, uma organização que se pretenda um instrumento para a luta da classe trabalhadora pelo poder, precisa apresentar coerência em cada ação por meio de sua unidade prática, o que inclusive significa a unidade em diversas palavras de ordem, bandeiras, agitações etc. Afinal, se, tomada uma decisão majoritária, o “militante socialista” se nega a cumpri-la, por que organizar qualquer processo democrático de escolha? Basta que cada um faça e fale o que quiser! E aí simplesmente não é preciso partido, oras. Mas, se é verdade que é necessária a forja de uma vanguarda altamente capacitada que, por seu esforço coletivo e formulação democrática, possa dirigir a classe trabalhadora para essa luta, é preciso que haja formas de garantir a ação quando há divergência, formas essas de todo voluntárias.

É verdade que, se um partido degenera para um burocratismo (o que não apenas acontece, mas é marca infeliz da história do movimento operário), esse espaço do dissenso se fecha – mas aí é justamente a falta de centralismo democrático que está operando, não o centralismo democrático. O companheiro Granja provocativamente fala em “centralismo burocrático”. Não negaremos a existência dessa forma de ação (abordaremos ela a seguir), mas não nos parece proveitoso medir uma determinada prática pelo que ela não é.

Em terceiro lugar, figurando quase como uma digressão, vemos talvez a maior infelicidade do parágrafo. Enquanto os dois pontos anteriores expressam divergências políticas, teóricas e organizativas, a equiparação, por meio da citação de Barthes, entre os comunistas e os fascistas – aqueles, defensores da democracia proletária e da emancipação do proletariado; estes, capachos do capitalismo monopolista – é absolutamente descabida. Sai da divergência teórica, entra no espantalho. É importante pontuar, mas é uma posição, sinceramente, que não deve ser debatida a sério. Aproxima-se da famigerada “teoria da ferradura” dos liberais, que postula a extrema-esquerda como irmã gêmea da extrema-direita.

Vejamos, agora, como é o diagnóstico do companheiro Granja sobre a degeneração burocrática do leninismo.

Historicamente, o centralismo democrático tendeu para o centralismo burocrático. Essa tendência degenerou na concepção stalinista de partido. Houve o deslocamento do centro da discussão política das organizações de base para as direções. E chegou-se ao cúmulo de o Secretário-Geral decidir sem contestação. Consequentemente, a escolha das direções passou a ser operada por cooptação. Nesse formato, é a direção que legitima as bases e estabelece o controle sobre elas, invertendo a dinâmica democrática. Desse modo, a vontade da organização se forja de cima para baixo, autoritariamente.

O companheiro Granja está quase completamente correto. Exceto a primeira, todas as frases apresentam um processo real, o da degradação político-organizativa ocorrida em boa parte dos PCs. Mas é importante observar que o centralismo democrático não “tendeu” para o centralismo burocrático. A burocratização como fenômeno dos partidos operários ocorreu também nos partidos de massa! O que dizer de um SPD alemão, que hoje é praticamente um partido de centro-direita? O que dizer do PS português, que foi líder da Revolução dos Cravos e hoje é líder do neoliberalismo em Portugal? A burocratização como fenômeno é justamente um dos recuos possíveis na consciência de classe do proletariado, justamente porque repõe formas da consciência em si, da consciência da classe trabalhadora como partícipe da sociedade capitalista, nos instrumentos da consciência para si. Acertam, em nossa avaliação, aqueles que veem a burocratização do PCUS, nos anos 1930, com o recuo da revolução socialista mundial, ainda que se possa debater as condições objetivas de imprimir avanços a ela naquele momento. Mas o fato é que, mesmo sendo de difícil manutenção – porque permeado das contradições que mesmo os militantes revolucionários têm – o centralismo democrático é a forma mais avançada de discussão, deliberação e ação de um partido que se pretenda construir como dirigente e vanguarda da classe trabalhadora.

O companheiro Granja, bastante fixado na contraposição mecânica entre as sociedades “ocidentais” e “orientais”, ainda faz uma ressalva sobre o centralismo democrático.

Nas condições de dura clandestinidade, impostas aos lutadores contra a ditadura, a unidade de ação era imprescindível. A menor divergência colocava em risco a coesão do grupo clandestino submetido à pressão aterrorizante do aparelho repressivo do Estado. Nessa situação asfixiante, compreende-se que o centralismo fosse exercido de forma burocrática, autoritária, com o mínimo de discussão e o máximo de disciplina. A organização assumia feições militares. E não podia ser diferente. Nas condições da democracia política, entretanto, a ninguém pode ser imposto sequer o silêncio, quanto mais a obrigação de defender aquilo que repudia, seja em nome do que for.

Ora, aqui voltamos a ter contradições no texto. Em primeiro lugar porque, mesmo nas condições mais adversas da autocracia czarista, Lênin polemizou duramente com os companheiros de Partido e advogou pela necessidade de fazer as discussões às claras – acusando, inclusive, de “marxistas legais” aos intelectuais que produziam um reducionismo no marxismo para que suas obras fossem publicadas de maneira aberta. Para ele, a férrea unidade de ação na prática não poderia, jamais, ser motivo de calarem-se os dissensos.

E, no entanto, em várias medidas, o quadro apresentado pelo companheiro Granja segue atual! Se (e isso é verdade) vivemos numa sociedade de tipo “ocidental”, em que a permeabilidade da sociedade civil é parte constitutiva do “Estado ampliado”, o que demanda a predominância de uma “guerra de posição”, é igualmente importante garantir que a unidade de ação seja férrea, uma vez que a “pressão aterrorizante” do Estado continua a operar, ainda que mascarada sob a face “democrática” de instrumentos na sociedade civil. Tomando ainda o caso do Brasil, não seria importante uma “imprescindível” “unidade de ação” para combater, com “o máximo de disciplina”, uma produtora como a Brasil Paralelo, recheada de conteúdo reacionário e alimentada com dinheiro empresarial? Não seria o esforço de diversos militantes, incansáveis na produção de conteúdo absolutamente firme e comprometido com a teoria marxista, em uma produtora audiovisual revolucionária, um empecilho à extrema-direita? Não conseguimos ver em que medida as “condições de democracia política” diminuem a necessidade de um combate encarniçado, duro, prolongado, firme, disciplinado contra a burguesia – ainda que sob formas permitidas na democracia.

O companheiro Granja segue:

Um partido socialista, num contexto de democracia política, precisa ser uma organização democrática de massas. Tem a tarefa de produzir na sociedade o consenso em torno das suas ideias. Para isso, ele precisa chegar a esse consenso internamente. Sua unidade terá que ser arquitetada como unidade de pensamento e ação, e não apenas de ação, pois é a unidade de pensamento que pavimenta a unidade de ação. E isso não se resolve com a subordinação da minoria à maioria. É bem mais complicado. Requer o exercício da persuasão.

Novamente, entendemos que há uma confusão bem expressa aqui. Acima de tudo, porque também os partidos de tipo leninista tem como tarefa produzir “consenso em torno de suas ideias”, mas não “na sociedade”, e sim no proletariado. Afinal, em todas as revoluções bem sucedidas no mundo, as massas aderiram à linha política dos partidos não pela força, mas pelas ideias.

É surpreendente, também, o companheiro achar que num partido leninista não há “persuasão”, ou ainda que é possível chegar a consensos internos dentro dos partidos democráticos de massa – e, ainda pior, que esse é o método para chegar à “unidade de pensamento”! Oras, mas não eram os partidos leninistas os autoritários? Como se quer chegar a uma “unidade de pensamento”? Companheiro Granja logo nos explica:

A unidade de pensamento só pode ser entendida como uma unidade na diversidade, um pacto entre diferentes que preserve a livre expressão do pensamento. Por isso, a edificação de um pensamento coletivo é uma negociação, o que não descarta a divergência, mas busca harmonizá-la pela tecedura de uma teia consensual inclusiva em torno das questões centrais para o desenvolvimento da luta política. E não devemos esquecer que o pensamento coletivo sempre é uma síntese dialética, portanto provisória, inconclusa, um devir, um fluxo que nunca alcança o seu termo, pois está em permanente reprocessamento.

Aqui, chegamos em um ponto muito fundamental. A consolidação dos bolcheviques, “modelo” do centralismo democrático leninista, pode muito bem ser expresso pela primeira frase do parágrafo acima. Aliás, nunca é demais lembrar que Lênin, em sua polêmica com os “economicistas” (futuramente, “mencheviques”), defende em absoluto sua liberdade de polêmica na publicação do Partido:

Sim, senhores, são livres não somente para convidar, mas de ir para onde bem lhes aprouver, até para o pântano; achamos, inclusive, que seu lugar verdadeiro é precisamente no pântano, e, na medida de nossas forças, estamos prontos a ajudá-los a transportar para lá os seus lares. Porém, nesse caso, larguem-nos a mão, não nos agarrem e não manchem a grande palavra liberdade, porque também nós somos “livres” para ir aonde nos aprouver, livres para combater não só o pântano, como também aqueles que para lá se dirigem! [1]

Aqui é, portanto, onde vemos a diferença importante entre o camarada Lênin e o companheiro Granja. Para Lênin, a teoria revolucionária é também um “permanente reprocessamento”, uma “síntese dialética”, mas que expressa, na luta teórica, as posições objetivas de diversas classes sociais em disputa na sociedade, queiram os seus representantes ou não. O desafio, para Lênin, é construir um partido que não se contente com “uma teia consensual inclusiva em torno das questões centrais para o desenvolvimento da luta política”, mas uma determinada “unidade na diversidade” que tenha como princípio a posição do proletariado, ou seja, que corresponda às suas tarefas objetivas na luta pela revolução. O desafio não é o de constituir amplos partidos, com todos os trabalhadores, que se confundem na sua ação com os parlamentares radicais e com os sindicatos, isso é um processo que é possível por meio da consciência espontânea. A necessidade, contudo, é de outra ordem: é a de constituir um operador político que aja como vanguarda das lutas políticas, econômicas e teóricas do proletariado. O objetivo não é harmonizar as tendências teóricas nocivas dentro da classe trabalhadora – é combatê-las duramente, no plano da discussão teórica.

Que não se queira, pois, resolver divergências políticas quer pelo princípio leninista da subordinação da minoria à maioria (o que obriga a dizer), quer pela imposição do silêncio misericordioso de inspiração papal (o que proíbe de dizer). Muito menos quando se trata de questões que mobilizam convicções de foro íntimo (religiosas ou não).

Ao fim, companheiro Granja apresenta de novo alguns argumentos fracos, porque cheiram a espantalho. Nenhum partido leninista resolve “divergências políticas” pelo princípio leninista (e é preciso dizer: democrático) da subordinação da minoria à maioria – resolve as questões práticas por esse princípio. Nenhum partido leninista usa de “imposição do silêncio misericordioso de inspiração papal”, mas organiza a polêmica.

Em resumo, podemos dizer que há inúmeras imprecisões históricas e um certo olhar sobre o leninismo de quem talvez tenha pulado por sobre alguns textos centrais no debate sobre o centralismo democrático.

Mas apenas fazer a análise do texto do companheiro Granja é, ainda, insuficiente. Se escrevemos esse texto, é para reafirmar algo que apresentamos como “dado” na análise do companheiro Granja, mas que, infelizmente, temos que entender que é uma divergência dele com a teoria marxista-leninista: a estratégia revolucionária.

Uma organização para uma estratégia

O debate sobre a estratégia correta para a classe trabalhadora no Brasil conquistar o socialismo não pode ser resumido em poucas linhas ou páginas. Nosso objetivo aqui é tratar, apenas como forma de introdução ao tema, dos pontos centrais da reflexão que compreende a existência de condições objetivas para a conquista do poder pela classe trabalhadora pela via revolucionária e por nenhuma outra. É a partir dessa compreensão que podemos entender qual forma organizativa melhor serve para a luta do proletariado brasileiro – e, em grande medida, mundial – no rumo do socialismo.

Em primeiro lugar, colocando em perspectiva crítica a posição do companheiro Granja de que vivemos uma “democracia política” e que isso alteraria estruturalmente a forma partidária necessária, é preciso considerar que as condições da democracia burguesa são condições, ao mesmo tempo, da ditadura burguesa. Como o próprio cita, com o aporte de Gramsci, as sociedades de tipo “ocidental”, como é de fato o caso do Brasil, conjugam a dominação burguesa por meio do chamado “Estado ampliado”, isso é, do aparelho burocrático-administrativo burguês junto ao aparelho burguês na sociedade civil, organizado a partir de inúmeras iniciativas. É por meio desse binômio que se articulam os momentos da coerção e do consenso – e, observemos, não de forma automaticamente correspondente ao “Estado restrito” e à “sociedade civil”, uma vez que também o aparato burocrático-administrativo engaja-se na produção de consenso (com a escolarização precária, por exemplo) e os aparelhos privados de hegemonia, na produção da coerção (com os grupos cada vez mais organizados de milicianos, por exemplo).

Assim, é algo absolutamente necessário que entendamos o caráter plenamente burguês da formação social brasileira, especialmente se considerada no século XXI. A predominância das relações capitalistas de produção, do assalariamento, das formas republicanas (de tipo capitalista dependente), em suma, toda a organização da estrutura e da superstrutura no Brasil nos permitem (ou, melhor ainda, exigem) compreender que o caráter do processo emancipatório da classe trabalhadora em nosso país não pode ser outro senão um caráter socialista, ou seja, propriamente proletário, no sentido de um conjunto de medidas políticas e econômicas que sejam expressão dos interesses objetivos do proletariado.

É verdade que passamos, dentro desse cenário, por uma fase de recrudescimento das condições econômicas, políticas e teóricas dentro da nossa classe. O impacto da hegemonia do reformismo no seio do movimento dos trabalhadores é intenso, do ponto de vista teórico, e o impacto da ofensiva burguesa sobre direitos sociais, trabalhistas e democráticos, do ponto de vista econômico e político. Assim, tampouco é óbvio afirmar o caráter do processo de transformação social brasileiro como “socialista”. Sobre esse aspecto, não me detenho mais porque creio que as principais formulações-guia dessa análise já foram feitas pelo camarada Edmilson Costa, em seu artigo O Brasil está maduro para o socialismo [6].

No entanto, ainda é preciso defender não apenas a atualidade do socialismo, mas da Revolução Socialista como estratégia para a atual quadra histórica de desenvolvimento das lutas da classe trabalhadora no rumo do poder. Isso significa não apenas disputar a “democracia política”, mas, compreendendo seu limite estrutural (determinado por seu conteúdo de classe burguês), apontar que a reorganização da sociedade deve ocorrer com base em outra forma de poder independente e autônomo do proletariado, o Poder Popular. As Resoluções do XVI Congresso Nacional do PCB expõem isso da melhor forma possível, ainda que cobrem que nos desculpemos ao leitor pela longa citação:

86) A construção do poder proletário/popular não se resume à mera negação institucional ou qualquer tipo de paralelismo autonomista, mas ocupa ativamente todos os poros da institucionalidade atual, guiada por um projeto histórico de negação da ordem capitalista, portanto, partindo da afirmação revolucionária segundo a qual os meios necessários à vida não podem ser apropriados privadamente, que nenhum ser humano pode se apropriar de outro para transformá-lo em mercadoria, que os bens de primeira necessidade e os serviços necessários à produção e reprodução social da vida são patrimônio de toda a humanidade e não podem ser apropriados privadamente. É necessário ir construindo, a partir de agora, a partir da velha ordem, um duplo poder, uma ordem institucional e política própria dos/as trabalhadores/as, fundada e fundante de uma nova cultura proletária e popular, capaz de dar unidade ao bloco proletário e colocá-lo em movimento na luta contra a ordem burguesa.

87) O tema do Poder Popular apontado pelas resoluções do XIV Congresso do PCB ganhou, na conjuntura atual, uma nova dimensão, uma vez que se tornou uma palavra de ordem que encontrou grande repercussão no movimento de massas e entre várias organizações de nosso campo de ação política. Ao afirmar a necessidade de construir um Poder Popular, o PCB chama a atenção para um processo político que não pode ser confundido com instâncias e organizações de massa ou articulações políticas entre os partidos de esquerda, isto é, não é um mero elemento de ação tática. Este processo se desdobra em pelo menos quatro momentos fundamentais, que articulam o plano tático e o estratégico.

88) A luta pelo Poder Popular se expressa nas ações independentes da classe trabalhadora em seus embates contra as manifestações mais evidentes da ordem do capital, os quais ganham a forma mais expressa de mobilizações, greves e movimentos que colocam em marcha os diferentes segmentos do proletariado e da classe trabalhadora em geral. Neste aspecto afirmamos que o Poder Popular existe já em germe na construção da autonomia e da independência de classe destes movimentos que se chocam com o bloco conservador e sua política em defesa da ordem burguesa, através das organizações próprias da vida cotidiana, da organização e da resistência da classe trabalhadora (movimentos sociais, sindicatos, organizações e partidos de esquerda, fóruns de luta pela saúde, educação, moradia, transporte, etc.), ainda que, neste momento, atuem de forma fragmentada e sem a unidade política necessária.

89) Essas lutas e os enfrentamentos tendem a se intensificar e, diante da reação esperada do poder burguês, caminhar no sentido da necessária unidade programática em torno de eixos comuns de luta que unifiquem as demandas setoriais apresentadas de forma fragmentada em uma pauta cada vez mais precisa de bandeiras e reivindicações, sob as quais o movimento de massas define sua independência em relação aos governos da ordem e ao bloco dominante, dando forma ao campo popular e de esquerda.

90) A culminância das lutas de massas e das resistências desenvolvidas aponta para o aprofundamento da autonomia do campo popular expressa nas bandeiras de luta, na pauta das demandas apresentadas e em formas organizativas capazes de se configurar como força política contraposta ao bloco dominante e como alternativa de poder, formulando um programa político de transformações necessárias de caráter anticapitalista. Neste momento, o Poder Popular encontrará as formas organizativas necessárias que não podem ser antecipadas (Conselhos, Assembleias Populares, Comitês, etc).

91) No quadro de uma situação revolucionária ou pré-revolucionária, esta construção política pode e deve assumir a forma de uma dualidade de poderes que prepare as condições para os enfrentamentos decisivos contra as classes dominantes e seu Estado – a ditadura da burguesia –, combinando formas diretas de luta que possibilitem a constituição de uma real alternativa de poder dos/as trabalhadores/as. Neste momento, o Poder Popular assume toda sua potencialidade como germe de um novo Estado sustentado pelas massas populares e pela classe trabalhadora, na perspectiva da transformação radical da sociedade. Plenamente desenvolvido em seu potencial, o Poder Popular se converte em germe de um Estado Proletário – a Ditadura do Proletariado – que conduzirá a transição socialista visando erradicar a propriedade privada, as classes e, portanto, o próprio Estado através da livre associação dos produtores. [“Programa de Lutas”, XVI Congresso Nacional do PCB]

Assim, mesmo consideradas as condições das liberdades democráticas e relativa estabilidade da república democrática burguesa (relativa, entre outras coisas, porque a duração mais longa de nossa “normalidade democrática” não chegou a 30 anos, porque o ciclo iniciado em 1989 teve uma forte ruptura com o golpe de 2016), colocamos a atualidade do processo revolucionário, ou seja, de que uma ruptura com a própria estrutura burguesa do Poder de Estado é uma necessidade para os avanços estruturais da classe trabalhadora no rumo de sua emancipação.

Sobre essa síntese estratégica, a da Revolução Socialista, também adoraria que os leitores tivessem contato com o artigo escrito por mim e pelo camarada Jones Manoel, Um passo atrás para dar dois mais atrás ainda: a “reversão neocolonial” e a estratégia democrática de Plínio Sampaio Jr. [7].

Assim, conseguimos constatar a atualidade do leninismo e da teoria revolucionária marxista (em que pese toda a teoria reformista baseada em Marx) como fundamentos indispensáveis para a disputa de consciência dentro da classe trabalhadora hoje. Só uma classe trabalhadora que possa construir, a partir de si mesma, um núcleo revolucionário, uma vanguarda, que atue incansavelmente na formação e educação teórico-política e no direcionamento tático-político terá condições de constituir-se como classe independente e imbuída, subjetivamente, de seus interesses objetivos, organizando-se assim para a luta revolucionária que virá.

Da mesma maneira, se o conteúdo de um partido do proletariado em sua luta revolucionária é o conteúdo leninista (que advoga pela luta de classes como fundamento da realidade social e pela revolução socialista como objetivo de transformação dessa realidade), a forma partidária tem de ser construída de modo a dar consequência para isso. Nos vários argumentos do companheiro Granja, podemos ver uma tentativa (honesta, sem dúvida nenhuma) de compreender as organizações políticas como espaços do consenso, da liberdade de expressão, da livre expressão do pensamento individual. É preciso contrapor a isso o partido como “Estado-maior do proletariado”, o partido como operador político da guerra entre duas classes antagônicas na sociedade burguesa e, a partir de sua funcionalidade, compreender sua forma de funcionamento.

O centralismo democrático, nesse sentido, nada mais é do que a forma mais acabada, superior, de luta interna e resolução prática para o funcionamento de uma organização política que possa dirigir, contra todo o aparato da burguesia, mesmo em seu período democrático, uma luta ferrenha contra ela. É por meio do centralismo democrático que as divergências teóricas não paralisam o partido e garantem sua democracia – tudo ao mesmo tempo. Ele é nada mais do que um método de trabalho fundado na necessidade de garantir condições para a luta contra as formas de consciência atrasadas que possam pôr a perder o papel dirigente do partido.

Negar a possibilidade de qualquer organização da classe trabalhadora, seja qual for seu método de organização, degenerar para expressar os interesses objetivos de outras classes – como foi a mudança dos bolcheviques até fins dos anos 1930 para os mesmos bolcheviques após os anos 1930; como foi a degeneração do SPD alemão de ter Marx e Engels como colaboradores a ter Friedrich Ebert como algoz de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht – seria desonestidade intelectual e falsidade histórica. As formas políticas podem, em diversos momentos, entrar em contradição com seus conteúdos originais de classe e, aí, essas contradições continuam a operar até que haja mudanças qualitativas no seio dessas organizações políticas.

Defender, portanto, a estratégia da Revolução Socialista para o Brasil, de maneira consequente, significa, ao mesmo tempo, defender a existência e a construção de um partido leninista, uma vanguarda capaz de conduzir politicamente o proletariado em sua luta. Por sua vez, essa vanguarda tanto estará mais preparada quanto tiver claros seus métodos de discussão e deliberação – e o centralismo democrático é o que melhor conjuga a diversidade de posições da liberdade de crítica com a disciplina férrea da unidade de ação.

NOTAS:

[1] https://www.marxists.org/portugues/lenin/1902/quefazer/fazer.pdf

[2] https://www.marxists.org/portugues/marx/1850/03/mensagem-liga.htm

[3] https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1906/rucong/viii.htm#v10pp65-376

[4] https://www.marxists.org/portugues/lenin/1906/05/20.htm

[5] https://lavrapalavra.com/2015/11/09/gramsci-contra-o-marxismo-cultural/

[6] https://lavrapalavra.com/2016/05/24/o-brasil-esta-maduro-para-o-socialismo/

[7]https://blogdaboitempo.com.br/2021/05/17/um-passo-atras-para-dar-dois-mais-atras-ainda-a-reversao-neocolonial-e-a-estrategia-democratica-de-plinio-sampaio-jr/

Gabriel Lazzari é bancário e formado em Letras pela USP. Membro do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro e Secretário Político Nacional da União da Juventude Comunista. Co-organizador da coletânea “O Centralismo Democrático de Lênin”, lançada pelo LavraPalavra Editorial em 2020.

Che, Hooks e o amor-ação revolucionário

Autor: Ghabriel Ibrahim

“Deixe-me dizer-lhe, correndo o risco de parecer ridículo, que o verdadeiro revolucionário é guiado por grandes sentimentos de amor.”

A frase escolhida para abrir esse punhado de reflexões que ora organizo, proferida originalmente por Ernesto Che Guevara, deve bastar para que consideremos a questão do amor como de relevância nada dispensável para os comunistas. Tendo em vista sobretudo quem a formulou e seu papel fundamental na construção de um processo revolucionário vivo no quintal do Império, experiência tão inspiradora principalmente para os lutadores do sul global, em área de profunda influência política e cultural estadunidense, faz-se ainda mais interessante que façamos um esforço para deslindar alguns de seus pressupostos e implicações.

Sem dúvidas, se almejamos tratar do tema do amor reivindicando um ponto de vista marxista não podemos nos furtar de ousar o conceito, fugindo de descrições subjetivistas tão comuns ao assunto em questão. Traremos algumas possíveis definições ao longo do texto, mas a primeira, que nos possibilitará as primeiras reflexões, foi encontrada no primeiro capítulo do livro “Tudo sobre o amor” de bell hooks (2021): amor é “se empenhar ao máximo para promover o próprio crescimento espiritual ou de outra pessoa”. O conceito, nesse caso, não é ponto de chegada, mas principalmente ponto de partida, nos abrindo caminho para pensar estruturalmente o amor em diálogo com Che.

Para alguns marxistas, a frase pode em primeiro momento exalar certo idealismo meramente pela menção a um “espírito”. Como veremos, Marx não se furtou a utilizar este jargão típico da filosofia clássica alemã, sobretudo levando em conta a acepção de Hegel – a quem a classificação de “idealista” é sempre reducionista. Um hegeliano de esquerda na juventude, Marx constrói pouco a pouco um sistema que se afasta de seu mestre, mas por óbvio a ruptura não pode ser total – assim segue o desenvolvimento dialético da filosofia. “Espírito”, no sentido que pretendemos, engloba a vida psicológica do indivíduo e mesmo alguns aspectos mais intelectuais da psique como pensamento e vontade, afastando-se da alma. Para Marx, a produção desta vida psicológica possui intrínseca relação com as condições materiais em que o indivíduo está envolvido. Este é um bom momento para apontar que hooks lembra que o livro de autoajuda que a fez refletir sobre as questões abordadas na obra que ora nos serve de base são largamente devedoras de um freudo-marxista: Erich Fromm, membro de relevo da Escola de Frankfurt.

Um ponto importante da definição de amor adotada como ponto de partida para as reflexões é que o amor deve ser pensado muito mais como um verbo do que como um substantivo. Amar pressupõe esse “se empenhar”, engajar-se com responsabilidade e comprometimento em um processo de valorização de si ou do outro. O amor demanda uma série de “ingredientes”, para usar o termo de hooks. Embora por vezes se confunda afeição com amor, este é apenas um dos aspectos que o amor-ação demanda para sê-lo. É perfeitamente possível que haja afeição sem que haja esse engajamento num processo de crescimento espiritual, que demanda também humildade, coragem, fé e disciplina, na visão de Fromm (1991). Entre outros “ingredientes” ou elementos do amor, além da afeição, por exemplo, há que se ter compromisso, confiança, comunicação aberta, honestidade e respeito.

Já avançamos um pouco em nossa conceituação: amor, se se quer revolucionário, não pode ser mero sentimento: tem de ser também – e sobretudo – ação. Se sentimentos emergem sem muito controle, ações são escolhidas e exigem comprometimento. A questão passa a ser compreender os caminhos, descaminhos e possibilidades que esse comprometimento com o crescimento espiritual pode assumir levando em conta as atuais condições materiais a que estamos submetidos – mais especificamente, o modo de produção capitalista. Em outras palavras, o momento seguinte do texto visa investigar as possibilidades do amor do ponto de vista estrutural.

Embora Marx tenha dedicado sua vida intelectual a produzir sua crítica da economia política, hoje temos acesso a algumas anotações em que se engaja com alguns desdobramentos psicológicos, cognitivos, comportamentais – poderíamos dizer espirituais – da imposição brutal do Capital sobre os trabalhadores. Para abordarmos esses desdobramentos de modo mais satisfatório, urge uma breve e, sem dúvidas, simplificada explicação das categorias de alienação e de fetiche para Marx.

Sobre a alienação, José Paulo Netto (1981, p.74) afirma:

A alienação, complexo simultaneamente de causalidades e resultantes históricos-sociais, desenvolve-se quando os agentes sociais particulares não conseguem discernir e reconhecer nas formas sociais o conteúdo e o efeito da sua ação e intervenção; assim, aquelas formas e, no limite, a sua própria motivação à ação aparecem-lhes como alheias e estranhas. É possível afirmar (estendendo a investigação para além das sugestões marxianas de 1844) que em toda a sociedade, independentemente da existência de produção mercantil, onde vige a apropriação privada do excedente econômico estão dadas as condições para a emergência da alienação.

Esse resumo bastante didático facilitará a apreensão de excertos do próprio Marx. É possível notar a elaboração de cada um dos conceitos que ora nos interessam na leitura dos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 e nos Cadernos de Paris.

No primeiro caderno dos Manuscritos, Marx (2015) nota que “o trabalhador torna-se uma mercadoria tanto mais barata quanto mais mercadoria cria. Com a valorização do mundo das coisas, cresce a desvalorização do mundo dos homens em proporção direta” (p.306). Essa é uma sina algo trágica do trabalhador sob o capitalismo, posto que todos os bens necessários para sua subsistência devem ser adquiridos através do dinheiro, do comércio, o que por sua vez só se faz possível devido à exploração de sua força de trabalho pelo capitalista. É assim que “o trabalhador torna-se (…) um servo do seu objeto”, e essa servidão atinge seu extremo justamente porque “só já como trabalhador se pode manter como sujeito físico e só já como sujeito físico é trabalhador” (p.307). Essa relação de servidão estabelecida entre o trabalhador e o próprio objeto que produz ilustra a primeira determinação da alienação, isto é, a alienação observável na relação do trabalhador com os produtos de seu trabalho. Como Marx aponta ao longo de sua obra que o ser humano não só PRODUZ, mas também SE PRODUZ a partir do processo de trabalho, trata-se também de uma alienação que desliza para a relação com o mundo exterior sensível. Entretanto, ela decorre de um processo de alienação da atividade produtiva em si.

Se na primeira determinação da alienação – já exposta – nota-se que há uma exteriorização em que o produto do seu próprio trabalho parece estranho ao trabalhador produtor, isso deve significar que a atividade produtiva é, por si, atividade da exteriorização. Isso significa para Marx (2015, p.308) que, embora o trabalho em sentido latu seja precisamente algo fundamental para diferenciar os humanos dos demais animais – atividade vital – , em sistemas em que há propriedade privada e, sobretudo, no capitalismo, “o trabalho é exterior ao trabalhador, i.e., não pertence à sua essência, que ele não se afirma, antes se nega, no seu trabalho, não se sente bem, mas desgraçado; não desenvolve qualquer livre energia física ou espiritual, antes mortifica seu físico (Physis) e arruína seu espírito” (grifos nossos). O trabalhador só se sente em-si fora do trabalho – ou seja, fora das atividades que constituem o mais basilar da vida em sociedade.

Concluímos com esta citação a exposição da segunda determinação da alienação presente nos manuscritos. Importa, porém, destacar que estas determinações são momentos de um mesmo processo que podem ser apreendidos abstratamente, mas cujas fronteiras tendem a ser borradas se analisado em sua concretude. O interesse não deve ser, portanto, qual destas expressões da alienação é a primeira, a principal, a mais nociva, mas sim compreender que a estrutura capitalista de produção e propriedade engendra esse processo complexo de alienação com suas várias determinações. Sempre que classificarmos uma dessas determinações como “primeira”, “segunda” etc., nos referimos à ordem em que foram apresentadas no texto.

A terceira determinação da alienação demonstrada no primeiro caderno dos manuscritos consiste em alienar o homem do próprio gênero homem. Primeiro, portanto, Marx descreve em que consiste essa característica genérica do homem: cada ser humano existe também como síntese dos singulares, os indivíduos. Essa síntese se torna possível a partir da percepção de que o humano vive da natureza inorgânica, seja porque ela é “um meio de vida imediato” (p.311), seja porque é “o objeto/matéria e o instrumento da sua atividade vital” (idem). Portanto, se o trabalho alienado faz do produto do trabalho do ser humano algo exterior com o qual não mais nota sua relação, e se a própria atividade produtiva se torna estranha a ele na medida em que através dela acaba se sentindo negado (determinações primeira e segunda da alienação), então conclui-se que o ser humano se aliena do próprio gênero humano. Marx nota, então, que o trabalho alienado característico do modo de produção capitalista faz “do ser genérico do homem – tanto a natureza quanto a sua capacidade espiritual genérica – uma essência alienada a ele (…). Ele aliena do homem o seu corpo próprio, bem como a natureza fora dele, bem como a sua essência espiritual, a sua essência humana.” (p.313-314, grifos nossos).

Concluímos um resumo breve da categoria de alienação em Marx abordando aquilo que mais nos interessa ao tema do amor. Como no caso da história de Frankenstein, de Mary Shelley, em que o monstro se autonomiza em relação ao cientista, a produção é lida como autônoma e acaba por subordinar os trabalhadores. É possível apontar três grandes determinações da alienação: a alienação do trabalhador do produto do seu trabalho, a alienação do trabalhador em relação ao processo produtivo em si, e a alienação da vida genérica – seja do ser humano face à natureza, seja face a outros seres humanos. Mas antes de retornarmos ao cerne deste trabalho – o amor revolucionário – precisamos ainda falar um pouco do fetiche da mercadoria.

Nos seus Cadernos de Paris, no tópico “O dinheiro e Cristo” (p.200), temos o gérmen das reflexões de Marx sobre o fetiche da mercadoria. A partir de Mill e sua caracterização do dinheiro como mediador de troca, Marx aponta que, uma vez que a regra no capitalismo é a produção PARA o comércio, o comércio pressupõe o dinheiro, e o homem está alienado do objeto produzido, então a atividade mediadora – o ato humano a partir do qual as coisas seriam equiparadas para serem trocadas – é também exteriorizado e alienado. Este ato passa a ser função do dinheiro – de uma “coisa” (cada vez mais imaterial) -, não mais dos seres humanos, que passam a ver suas vontades e, em última medida, suas relações com os outros como “potência independente de si mesmo”.

Em suma, o caráter fetichista (místico) da mercadoria, sobretudo do dinheiro, advém do fato de que “ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores” (MARX, 2017, grifos nossos).

Com tudo isso, Marx estabelece uma base para pensarmos as características mais fundamentais das relações interpessoais nas atuais circunstâncias impostas pelo capitalismo. O uso consciente da categoria de espírito, sobretudo quando trata da segunda e terceira determinações da alienação, nos aponta um caminho a ser percorrido. As relações sociais são veladas e cada vez mais a mercadoria parece ser humanizada à medida que os homens são tornados coisas, instrumentos para a acumulação capitalista. As consequências psíquicas de todo esse processo evidentemente se farão sentir. Marx (2015, p.395) descreve a tendência à mortificação espiritual, à “renúncia à vida” preconizada pela ideologia capitalista:

Quanto menos comeres, beberes, comprares livros, fores ao teatro, ao baile, ao restaurante, pensares, amares, teorizares, cantares, pintares, esgrimires etc., tanto mais poupas, tanto maior se tornará o teu tesouro, que nem as traças nem o roubo corroem, o teu capital. Quanto menos tu fores, quanto menos exteriorizares a tua vida, tanto mais tens, tanto é a tua vida exteriorizada, tanto mais armazenas da tua essência alienada. Tudo o que o economista nacional te toma de vida e de humanidade, tudo isso ele te restitui em dinheiro e riqueza.

A tendência do capitalismo a um ascetismo imposto pelo fetiche da mercadoria produz a fantasmagoria que coisifica nossas relações. É uma tendência profundamente anti-amorosa, é a naturalização do estabelecimento de relações em que o empenho para o crescimento espiritual é descreditado. O que entra em seu lugar são relações mercantis, a universalização da relação de troca, e a usura transposta ao trato interpessoal: sentimento de posse, ciúme, repressão.

Hooks (2021) não reconhece, porém, que o amor só existe em plural. Na tentativa de complexificar o senso comum de que “para amar alguém é necessário primeiro amar a si próprio”, dedica um capítulo de sua obra ao amor-próprio. O aspecto central abordado no desdobramento deste tipo de amor é o comprometimento. Como construir um profundo comprometimento consigo mesmo? Hooks parece aludir a um processo constante de autorreflexão, processo a partir do qual podemos nos tornar conscientes de nossas limitações, nossas qualidades, nossos erros e acertos, promovendo mudanças, sendo gentis com nossos equívocos ao mesmo tempo em que nos obstinamos num processo de evolução. Mas se o capitalismo é em si um sistema que enseja o desamor a partir de suas características mais basilares, a superestrutura capitalista – racista, machista, chauvinista e heteronormativa – se impõe como brutal restrição do horizonte amoroso para pessoas que fogem ao padrão estabelecido.

Como se comprometer consigo mesmo sendo uma pessoa negra vivendo um processo de genocídio absolutamente naturalizado pelo Estado? Vendo seu corpo e o corpo de seus iguais desvalorizado através da precarização da educação e do trabalho, do abate puro e simples, do isolamento espacial, da privação de toda a sorte de direitos? Como construir um senso de autorresponsabilidade se mesmo agindo de acordo com os princípios legais o arcabouço jurídico parece feito para punir o povo negro, lido comumente como culpado até que se prove o contrário? Nesse sentido, hooks (2013,p.198) afirma categoricamente que “engajar-se na prática do amor é opor-se à dominação em todas as suas formas. Amar vai necessariamente nos levar além da raça, além de todas as categorias que visam limitar e confinar o espírito humano.”

Quanto à questão das mulheres, por exemplo, como construir esse senso de autocuidado genuíno se a norma é um pretenso altruísmo autodestrutivo análogo à servidão? Relegadas ao papel de cuidadoras do outro – principalmente quando o “outro” é um homem – qual espaço têm para cuidar de si? Hooks (1984, p.159) nota como essas opressões são produto do capitalismo: sua defesa do amor é uma defesa revolucionária. Tratando da questão feminina com uma crítica aguda que pode ser estendida a outras opressões, destaca que

o processo de conscientização feminista não empurrou significativamente as mulheres na direção de políticas revolucionárias. Na maior parte, não ajudou mulheres a compreenderem o capitalismo – como funciona como um sistema que explora o trabalho feminino e suas interconexões com a opressão sexista. Não instou mulheres a aprenderem sobre diferentes sistemas políticos como o socialismo ou as encorajou a inventar e vislumbrar novos sistemas políticos. Não atacou o materialismo e o vício de nossa sociedade no superconsumo. Não demonstrou às mulheres como nos beneficiamos da exploração e opressão de mulheres e homens ao redor do mundo ou nos mostrou formas de nos opormos ao imperialismo. Mais importante, não confrontou continuamente mulheres para que entendam que o movimento feminista para acabar com a opressão sexista só pode ser bem-sucedido se nos comprometermos com a revolução, com o estabelecimento de uma nova ordem social.

A compreensão de que o amor pressupõe ação concreta a partir do compromisso, responsabilidade, afeto, confiança e honestidade visando o crescimento espiritual de si ou de outrem, de que o capitalismo promove a naturalização da miséria espiritual a partir da alienação das relações humanas e de que, portanto, é um sistema de disseminação do desamor já parece nos esclarecer a observação inicial de Che Guevara. O compromisso com a ideia de amor, para ser consequente, é revolucionário. É também a partir desta constatação que podemos pensar uma nova definição para o amor: “o amor é o comunismo em seu estado mínimo” (BADIOU, 2012, p.86). Esta é uma das definições apresentadas por Badiou em seu “Elogio ao Amor”. É uma definição propícia demais para o que se propõe este texto para que a deixemos de lado, mas há algumas pontuações a serem feitas.

Primeiro, no parágrafo em que realiza a definição recém citada, Badiou define o verdadeiro sujeito do amor como “o devir de um par”. Não me parece que seja necessário restringir o amor a um dois. Digo isso não só porque há formas de amor (mesmo restringindo o sentido para as relações afetivo-sexuais, amor erótico etc.) que podem incluir mais de dois indivíduos, mas também porque assim é possível seguir considerando o amor-próprio como uma forma de amor digna do nome e de análise.

Quando Badiou empreende um resgate do que considera serem as três principais definições de amor (2012, p.28), levanta uma leitura bastante interessante acerca do fenômeno amoroso. Segundo o filósofo, a definição romântica centraria a questão no “êxtase do encontro”, a definição jurídica reduziria o amor a um contrato, a definição cética considera o amor uma ilusão. Badiou intenta escapar destas três para definir o amor como “a construção de uma verdade”. Que verdade? “Como é o mundo experienciado a partir de dois, não de um”, responde o filósofo. Não poderíamos pensar, uma vez que para se concretizar plenamente o ato de amor-próprio deve dirimir o processo de alienação imposto pela reprodução do capitalismo, que se trata, no limite, de um ato de valorização do ser humano como ser genérico? Nesse sentido, o amor, mesmo a princípio envolvendo o um, propõe a experiência de vários.

Na realidade, este é o ponto central em que queria chegar ao longo da argumentação que venho desenvolvendo: o revolucionário é dotado de um profundo sentimento de amor porque é dotado de um senso de missão que visa destruir a alienação provocada pelo capitalismo, restabelecendo a relação entre indivíduo e o gênero humano. Me parece que uma outra (quase) definição de Badiou dialoga com esta perspectiva: o francês afirma que “a questão da separação é tão importante no amor que quase poderíamos defini-lo como uma luta vitoriosa contra a separação” (2012, p.87, grifos nossos). Separados de nós mesmos, pôr fim ao sistema que nos aliena é o ato de amor por excelência. Entendo que considerar o amor para além do dois pode ser o caso de uma alteração quantitativa acarretando uma alteração qualitativa – isto é, quando falamos não de um outro, mas da humanidade, talvez entremos mais no terreno da política que do amor – mas escolho, nesse momento, trazer à baila Erich Fromm.

Fromm (1991) nota a profunda alienação a que a humanidade está sujeita e parte daí para uma crítica ao amor romântico. Para o psicanalista, o que é tipicamente considerado amor na contemporaneidade poderia muito bem ser definido como “egoísmo a dois” (p.82): busco me refugiar em um outro, mas para isso me afasto dos demais, mantendo a rivalidade e animosidade típicas do capitalismo para com aqueles que não estão inseridos no meu relacionamento. Fromm considera que sequer pode haver amor verdadeiro por outra pessoa sem que haja amor pela humanidade – inclusive por si.

Podemos articular esta definição com o problema levantado anteriormente a respeito do desenvolvimento do amor-próprio em mulheres e em LGBTQIA+ para compreender por que é tão relevante empreender uma crítica à família nuclear: sobretudo o caráter de dupla exploração por que passam as mulheres é naturalizado precisamente no ambiente familiar, em que pese a possibilidade de nele serem propiciados com maior frequência vínculos menos influenciados pela mercantilização de tudo que há, pela reificação, menos alienados enfim. Como núcleo em que normalmente se experiencia o primeiro contato com uma relação de ordem afetivo-sexual (comumente a relação entre um pai e uma mãe), é também onde se internaliza – ou tenta – o modelo cisheteronormativo e heterossexista de intimidade, por vezes na base da coerção. Tomar a família nuclear típica como único arranjo possível é ignorar esse papel tão brutal responsável, em casos extremos, pela morte de tantos que fugiam aos padrões de gênero.

Parte significativa dos pontos que considero centrais para pensarmos a prática amorosa em termos revolucionários já foi abordada. Tendo visto muitos debates acerca de questões mais formais/organizativas envolvendo relações afetivo-sexuais – me refiro aqui a discussões sobre monogamia ou não-monogamia – considerava importante darmos alguns passos atrás para tentarmos compreender de forma mais radical a partir de quê seria possível considerar o amor algo disruptivo. Isto posto, o risco que se corre ao apontar o quanto o capitalismo é estruturalmente nocivo ao amor é o de fazer com que o amor passe a ser considerado um horizonte tão distante que passa a ser desimportante no contexto de luta em que nos inserimos. Creio que fazê-lo seria um grave erro.

Sobretudo para militantes, perseguir o amor não me parece apenas recomendável, mas necessário. Adianto que de fato não considero que seja possível escapar integralmente da alienação produzida pelo modo de produção e reprodução capitalista enquanto este ainda for o sistema dominante. Todavia, se entendemos o amor como um agir que a nível individual e interpessoal busca reduzir o caráter alienado das relações, buscar viver cotidianamente a prática amorosa pode ser bastante positivo a todos que sonham com um mundo novo.

A partir desta conceituação do amor, o estudo com afinco da crítica da economia política pode perfeitamente ser considerado um ato de amor-próprio. O cuidado com o corpo, o contato com as várias expressões culturais, o respeito às próprias limitações e o trabalho para superá-las, se assim for possível, são atitudes que pouco a pouco possibilitam uma alteração não só no trato consigo, mas também no trato com o outro. Do ponto de vista de militantes organizados, é fato que a camaradagem é um laço de outra ordem que não necessariamente amoroso, mas o camarada com quem se ombreia na construção de um novo mundo não tomado pela fantasmagoria da mercadoria é também um camarada com quem se pode experienciar vínculos amorosos menos tocados pela generalização da relação de troca; vínculos guiados pelo comprometimento com o processo de valorização do espírito de ambos, tendo como elementos centrais confiança, honestidade, comunicação aberta. O respeito à divisão revolucionária do trabalho é um ato de amor. A construção de experiências concretas de Poder Popular que resistam paralelamente à opressão do Estado burguês, uma vez que buscam romper com o ciclo de exploração que legitima nosso estranhamento enquanto gênero, idem.

Posfácio: O martelo de Mao

Curiosamente, na tradição revolucionária temos duas frases bastante famosas proferidas por grandes expoentes da luta popular que parecem se contradizer, ao menos em alguma medida. Uma delas, a frase que inaugura o texto, de Che Guevara. Outra, a célebre declaração de Mao: “O comunismo não é amor. O comunismo é o martelo que esmaga o inimigo”. Lidemos, brevemente, com esta última.

Em primeiro lugar, se busquei demonstrar ao longo do texto que o amor pode ser revolucionário a partir de algumas condições, é fato que o comunismo não É amor. Com isso, não quero só dizer que não são sinônimos – uma afirmação bastante fácil – mas também que não são necessariamente contíguos.

Em verdade sabemos muito pouco sobre como seria uma sociedade comunista pós-capitalista. Sabemos, porém, o suficiente sobre sociedades de transição socialista para dizer que a derrota do capitalismo a nível local não implica na destruição de todas as suas contradições. Se o capitalismo pode ser definido como um sistema profundamente e radicalmente desamoroso, não é lícito supor que ao seu fim se seguirá o Reino do Amor, onde todos viverão em perfeita harmonia. Ao contrário, temos que ter em mente que o complexo superestrutural se modifica em ritmo diferente da infraestrutura, e uma compreensão basilar da dialética nos informará que dificilmente há em períodos históricos próximos algo que se possa apontar como uma ruptura absoluta.

O amor, provavelmente, seguirá sendo percurso a ser trilhado com disciplina.

Quanto ao martelo de Mao, a melhor forma de conciliá-lo ao poder revolucionário do amor é através do verso clássico da Internacional: “paz entre nós, guerra aos senhores”. Pensar o amor como uma ação escolhida, um devir a se percorrer com disciplina e coragem visando crescimento espiritual de todos a partir de uma vitória sobre a alienação, demanda que não tergiversemos quanto ao quinhão devido àqueles que lucram com a miséria da esmagadora maioria do povo em decorrência do modo de produção que os enriquece.

Levar a sério o amor implica em nutrir profundo ódio por todos aqueles que limitam o desenvolvimento de nossas crianças condenando-as a fome para se locupletarem. Não há sentimento possível senão o ódio para com aqueles que apontam como natural a existência de uma taxa de desemprego na casa dos milhões com base no mais vulgar liberalismo. É também amor enfrentar com todas as armas possíveis um Estado que legitima a morte de Genivaldos, Kathlens, que parece tão confortável em ser aquele que mais mata pessoas transexuais no mundo – e se o diálogo é uma arma, ele definitivamente não vem sendo suficiente. Precisamos do martelo.

REFERÊNCIAS:

BADIOU, A. TRUONG, N. Elogio del Amor. Buenos Aires: Paidós, 2012

FROMM, E. A arte de amar. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1991.

HOOKS, B. Clareza: pôr o amor em palavras. In: Tudo sobre o amor. São Paulo: Editora Elefante, 2021. Disponível em: https://traduagindo.com/2022/02/16/bell-hooks-clareza-por-o-amor-em-palavras/. Acesso em: 08/06/2022

HOOKS, B. Compromisso: que o amor seja o amor próprio. In: Tudo sobre o amor. São Paulo: Editora Elefante, 2021. Disponível em: https://traduagindo.com/2022/04/25/bell-hooks-compromisso-que-o-amor-seja-o-amor-proprio/ Acesso em: 08/06/2022

HOOKS, B. Feminist theory: from margin to center. Boston: South End Press, 1984

HOOKS, B. Writing Beyond Race. Nova York: Routledge Taylor & Francis Group, 2013

MARX, K. Cadernos de Paris; Manuscritos econômicos-filosóficos. 1.ed. São Paulo: Expressão Popular, 2015.

MARX, K. O Capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2017.

PAULO NETTO, J. Capitalismo e reificação. São Paulo: Ciências Humanas, 1981.

Nelson Werneck Sodré: a verdade e o nazismo

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Além da brutalidade, o nazismo produz também uma grave alteração semântica: “a verdade será a mentira e a mentira consagrada como verdade.” – Por Nelson Werneck Sodré

Publicado originalmente em Revista Ópera

O artigo que publicamos a seguir foi escrito e publicado por Nelson Werneck Sodré como introdução ao seu livro “Vida e morte da ditadura”.

A partir de 1933, quando o nazismo se instalou na Alemanha, Brecht não cessou de peregrinar, sempre com o avanço nazista em seu encalço: de Berlim a Viena, de Viena a Copenhague, de Copenhague a Helsínqui, de Helsínqui aos Estados Unidos, para uma pausa relativamente longa. Nesta última etapa, nem lhe faltou, para denunciar a expansão nazista, a fúria macartista, com os inquéritos que fizeram tantas personagens válidas deixarem o país. Tratava-se, para ele, de viver e de combater: sua arma seria o teatro. O longo exílio lhe proporcionou experiências inapagáveis. Suas peças dessa época serão naturalmente polêmicas. Elas colocam temas novos, que ele retomará adiante, para aprimorar. Daí a heterogeneidade do que produziu nesse período. Uma daquelas peças marca bem a época, de um lado, e a etapa do teatro de Brecht, de outro lado. Iniciada em 1931, quando o nazismo era apenas tenebrosa ameaça, e terminada em 1935, com o nazismo na plenitude do poder, Cabeças redondas, cabeças pontudas representará a sátira crua ao nazismo. Não é das melhores peças de Brecht, naturalmente, mas das mais interessantes, como forma de ação política. O nazismo, financiado pelo Ocidente, isto é, pelo imperialismo, nascera da crise econômica e financeira, mobilizando politicamente o capital, a aristocracia militar e a pequena burguesia em pânico diante da ascensão dos trabalhadores. A peça, refletindo a conjuntura, será uma alegoria. É situada no imaginário reino de Jahoo, onde os ricos proprietários, temendo a revolta dos camponeses endividados, apelam para os serviços de um homen providencial, Iberin.

Trata-se de esconder a realidade da crise e de suas causas materiais, substituindo-a por um mito. O homem providencial sabe que o povo é pouco afeito a abstrações e, para desviá-lo do caminho, é preciso apontar-lhe um inimigo concreto, palpável, próximo, de sua área de conhecimento. Assim, operando como doutrinador, apresenta ao povo um falso antagonismo: entre as pessoas de cabeça redonda e as pessoas de cabeça pontuda, acusando a estas, em propaganda alicerçada na frenética, furiosa e sistemática repetição, de responsáveis pela crise que o reino atravessa. Orienta, canaliza, concentra, pois, nos cabeças pontudas as frustrações, o rancor profundo, o ódio acumulado de uma classe média empobrecida e até de uma classe trabalhadora arrasada pelo desemprego. Assim, essas classes são desviadas da ação reivindicatória. Brecht mostra como todos, sem distinção de classe, passam a esperar de Iberin a satisfação de tudo: que atenda a locadores e locatários, patrões e empregados, proprietários e assalariados, vendedores e consumidores, que baixe e levante os preços, que emita e acabe com a inflação, que aumente e reduza os tributos. Que, em suma, estabeleça a conciliação onde reina o antagonismo e estabeleça, principalmente, a ordem, isto é, que ninguém se queixe. Claro está que os cabeças pontudas pagarão altíssimo preço por esses milagres todos: são exilados, presos, torturados, privados do trabalho, assassinados. O maior milagre desse reinado de cabeças redondas é de ordem semântica: o nazismo será apelidado de democracia; a espoliação dos que possuem pouco será chamada desenvolvimento; a impostura será conhecida como cultura; a verdade será a mentira e a mentira consagrada como verdade. É a degradação da linguagem.

Essa degradação é denunciada por Brecht no manifesto que dirige aos intelectuais de seu país, em 1934. Com a ascensão nazista, esses intelectuais dividem-se em dois grupos: o primeiro é constituído pelos que são atirados ao exílio – e entre eles está Brecht – como forma de negação do nazismo; a Alemanha perde os seus melhores artistas e cientistas; o segundo é constituído por aqueles que baixam a cabeça e tudo aceitam. Aceitando tudo, para sobreviver, fingem-se de surdos, quando Brecht os interpela com as “Cinco dificuldades para escrever a verdade”. Como a verdade é sempre concreta e, mais do que isso, fundamento das mudanças, ela é perseguida como inexpiável culpa pelo nazismo, que pretende bani-la e se escuda na mentira. Os que ousam escrever ou dizer a verdade são cabeças pontudas: o regime os massacra. Brecht dá o seu recado, apesar de tudo: aquele que quer combater a mentira e a ignorância deve vencer, no mínimo, cinco obstáculos: é preciso a coragem de proclamar a verdade, quando ela é sufocada e banida; a inteligência para reconhecê-la, quando a escondem sistematicamente; a arte de fazer dela uma arma manejável; a capacidade para escolher os que a podem tornar eficaz; a habilidade para fazê-la inteligível. Tais dificuldades, para serem transpostas, exigem devotamento, abnegação, renúncia. O nazismo, em qualquer de suas formas – e as hitlerianas, particularmente – espreita a verdade com vigilância ofídica. Para isso, está aparelhado com os múltiplos recursos da técnica – a escuta telefônica, a violação de correspondência, a censura aos meios de divulgação – e a riqueza do aparelho repressivo e policial, absoluto em suas ações, agindo acima das leis e de qualquer respeito pela criatura humana.

O cristianismo deixara à vítima o direito de dizer: “eu sou a verdade”, confundindo-a sempre com a bondade. Brecht explica, objetivamente, que os bons são vencidos não pela bondade mas pela debilidade, conforme já destacou alguém. É preciso – frisa ele – que a verdade seja eficaz. Ela não pode ser sempre e fatalmente associada à derrota. A verdade vencida – nota ele – é débil virtude. Por que não deve ser sempre vinculada à derrota? Porque está nos fatos. Apontar esses fatos, no nível de interesse e de compreensão de cada agrupamento, é uma forma de cultura, sem dúvida. Mas é, também, uma forma de trabalho. A certa altura, Brecht assinala como tão simplesmente mostrar que tudo se transforma – e pode ser transformado, consequentemente – constitui extraordinário encorajamento e esclarecimento para os oprimidos. E com isso assusta os opressores, porque lhes anuncia o fim que se aproxima. Em fases de ascensão nazista, aqueles que lidam com ideias – e só por isso são suspeitos, como malfeitores – frequentemente buscam enganar a si mesmos, antes de enganar os outros, concentrando seus esforços e simulando que são profundos e heroicos, na valorização do supérfluo, do secundário, do formal. Claro está que as verdades vulgares – dois mais dois são quatro, a chuva cai de cima para baixo, e que tais – são fáceis de dizer e, além disso, fáceis de aceitar, dispensando demonstração. Mas não afetam minimamente o poder opressor, como as questões semânticas, as dúvidas formais, as polêmicas puramente éticas. É preciso – e aqui voltamos a Brecht – escolher as verdades e situá-las no conjunto, isto é, na realidade dada. Escolhê-las e situá-las importa em conferir-lhes eficácia. As verdades ineficazes são inúteis.

Mas a eficácia está relacionada com a comunicação e a comunicação está relacionada à clareza. Os que se filiam ao timbre aristocrático do conhecimento, os que proclamam que a sua arte ou a sua ciência – aquela destacadamente – deve ser esotérica, porque o conhecimento fácil é vulgar e plebeu, enfileiram-se entre os que voltam as costas à verdade, desprezando sua eficácia. Os formalistas, os pretensos vanguardistas, os que se presumem originais somente porque diferentes, os que se apresentam como portadores do novo apenas pela negação do passado, enfileiram-se entre os que não amam a verdade, ou não têm as qualidades para superar os obstáculos que ela encontra para ser afirmada. A mentira tem disfarces fascinantes, por vezes, mas tem as pernas curtas e deixa logo ver a sua verdadeira face através dos véus fantasiosos com que se enfeita. O nazismo não é apenas e não pode ser explicado apenas como explosão de barbárie, atraso e violência. É nazista, em essência, todo esforço em manter pela violência aquilo que não tem condições de viver pelo debate e pela aceitação livre. Ele não surge das ideias, mas de condições objetivas. Para manter-se – e para manter as condições objetivas que o geraram e alimentam – precisa do controle das ideias, entretanto. Todos os disfarces o favorecem, por isso, particularmente aqueles que permitem a confusão entre a verdade e a mentira. Esta, como representação do poder mantido pela violência, apresenta-se sempre com uma linguagem afetada, simulando nobreza, elegância, superioridade, sofisticação, quando apenas se caracteriza pela vulgaridade, pela imprecisão e pela generalidade vazia dos chavões e lapalissadas. A linguagem da verdade é dura, seca, precisa, contundente. Ligada ao processo, mais do que aos fatos, mas deixando-os a nu, ela é rica e comunicativa, definida e nítida. No fim de contas, como Brecht dizia, todo homem é responsável pelo inumano que entrava o seu avanço.

Nas épocas da treva, em que o nazismo, em euforia, porque tudo pode, supõe que tudo lhe é permitido, afrontando, com desprezo, crenças, convicções, direitos, como se não existissem, é realmente difícil dizer a verdade, esclarecer que não estamos divididos em cabeças redondas e cabeças pontudas, mas em opressores e oprimidos, afortunados e desafortunados, privilegiados e desprotegidos. E que não é bom para uns o que é bom para outros, nem indiferente tudo aquilo que pertence ao homem. Não há propaganda, por colorida, insistente e fantasiosa que seja, capaz de ocultar essa verdade elementar, de que as demais derivam. Os Iberin, com seus mitos e sua condição de homens providenciais, como Hitler e seus seguidores e imitadores, ou aqueles apenas disfarçados de homens comuns, como se apresentam por vezes – quando o nazismo clássico e modelar ficou desmoralizado e é preciso ressucitá-lo sem camisa e sem fuehrer – os Iberin são meros instrumentos. Parecem timoneiros da História – e são o seu lixo. Há meio século, Iberin – isto é, Hitler – ascendeu ao poder, em um grande país. Meio século: um instante na História! Nem os seus restos se sabe hoje onde se encontram. Supor que a tenebrosa aventura, numa etapa tão diversa, possa ser reproduzida, sob disfarces estabelecidos, inclusive, pela confusão semântica que busca degradar valores, é perigosa aventura. Está claro que ela, em suas tentativas e reproduções vulgares, causa desastres, crimes, sofrimentos. Há meio século, também, Brecht lançou o seu manifesto sobre a verdade, depois de ter elaborado a alegoria dos homens de cabeça redonda, dos homens de cabeça pontuda. Naquele momento, o manifesto não teve eco. Mas é dele que a cultura, hoje, trata, depois de ter enterrado os que propunham encabrestá-la. Os povos sobrevivem aos desastres, crises, sofrimentos, na medida em que sabem distinguir a verdade, afirmá-la e amá-la, como condição fundamental para o seu avanço e felicidade. A liberdade acabou sempre por enterrar os seus opressores.

“O comunismo não pode ser abstrato”: LavraPalavra entrevista Vijay Prashad

Por Marcelo Bamonte e Otávio Losada

Publicado em LavraPalavra

“O comunismo não pode ser construído apenas a partir de um trabalho abstrato. Tem que ser construído na estrutura da sociedade em que você vive. Você tem que confrontar diretamente essas hierarquias sociais porque as hierarquias sociais realmente sustentam uma construção e mantêm a desordem social da qual o capitalismo se aproveita.”

Vijay Prashad é um historiador marxista nascido na Índia, em 1967. Além de ter diversas obras traduzidas para o português, como Balas de Washington e Uma história popular do Terceiro Mundo, também é  diretor-executivo do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e editor-chefe da LeftWord Books.

Em entrevista realizada ao LavraPalavra ao fim de 2020, Vijay refletiu um pouco sobre o conceito leninista de imperialismo, enraizamento do trotskismo no terceiro mundo, jornalismo e guerra de informação e outros temas pertinentes.

Prashad, quando indagado sobre hegemonia e guerra de informação, afirma que “a esquerda devem se consolar com o fato de que os fatos geralmente estão conosco e não devemos nos envolver em batalhas ideológicas nos termos estabelecidos pelos liberais hipócritas. Precisamos começar a definir nossos próprios termos para o debate e a discussão e forçá-los a aceitar nossos termos.”

A entrevista segue na íntegra:

Vijay, você escreveu um interessante artigo intitulado “Lênin Internacionalista – Autodeterminação e colonialismo” que traz à tona a luta anticolonial e anti-imperialista presente na obra de Lênin, que moldaria a política internacional da URSS posteriormente. Ao final da Guerra Fria, vimos a contrarrevolução se erguer globalmente e, com ela, o liberalismo integrou os movimentos de esquerda e desapareceu com a palavra “imperialismo”. Por que é importante trazer à tona o anti-imperialismo leninista hoje em dia e como você o define?

Vijay: Primeiramente, é importante reconhecer que dentro de uma tradição da esquerda existe uma compreensão de que a produção teórica é elaborada na Europa e na América do Norte e que teóricos de fora dessa zona, geralmente são pessoas do trabalho prático. Você sabe, “eles escrevem manuais sobre as guerras revolucionárias”, como por exemplo o general Giap ou Che Guevara. Eles ‘apenas escrevem relatórios contundentes sobre os lugares onde se encontram e onde a luta acontece”, entretanto, não avançam propriamente em perspectivas teóricas. Esse é o primeiro problema que eu queria abordar. Em segundo lugar, um outro problema é que de alguma maneira, em relação aos processos revolucionários em lugares que, talvez vocês descrevem como terceiro mundo, da Rússia até Cuba, assim como em Burkina Faso e etc, consideram-se esses processos como fracassados porque não chegaram a implementar o socialismo. Então, esses são dois aspectos que eu queria elaborar em minha fala.

Como podemos pensar esses processos? Primeiro, quando a Revolução Russa acontece, especialmente o levante Bolchevique, a Revolução de Outubro de 1917, nesse período, Lênin, obviamente, é o teórico principal da revolução. Ele está refletindo durante 1917 sobre processos ocorridos no Império Czarista, durante a primeira revolução liderada por eles (bolcheviques) em fevereiro e também está refletindo sobre a revolução de outubro. Ele pensa sobre tudo isso sem parar. Lênin não se cansava de questionar suas próprias reflexões, sendo que em 1913, ao mencionar sobre as revoluções que estavam acontecendo em países camponeses como México, Irã e China, Lênin traz à tona a questão “Onde está a revolução na Europa?”. Esse foi o assunto de seu artigo em 1913 entitulado “Europa atrasada e Ásia desenvolvida”. Mesmo assim, em 1917, ainda que ele tenha tido esse entendimento em 1913, em 1917, Lênin vislumbrava um processo revolucionário na Alemanha ou, talvez, em outras partes da Europa. Ele busca por algo parecido à revolução durante o império czarista. Essa revolução não acontece. Houve tentativas em 1919 e em 1923 e todas foram derrotadas na Europa. Enquanto isso, processos revolucionários acontecem em países do terceiro mundo. Quero dizer, começando pelo império czarista em 1917, Mongólia em 1919, no Vietnã em 1945, na China em 1949, em Cuba em 1959. Não houve revolução na Europa e nem no mundo industrial desenvolvido, na América do Norte. Não houve revolução lá. A revolução acontece no terceiro mundo. Naquele momento, Antônio Gramsci escreve um artigo pernicioso chamado “A Revolução Contra o Capital” onde ele está se referindo à revolução durante o império czarista. Gramsci está dizendo que o processo revolucionário no império czarista é um desenvolvimento contra o capital de Marx, porque ele supõe que primeiro se desenvolve as forças produtivas, se avança para o capitalismo e, dessa maneira, ao chegar numa etapa do capitalismo desenvolvido, as forças produtivas, sabendo-se como maquinário, ganhos produtivos, organização do trabalho, organização social, progresso científico e etc. Essas forças produtivas se chocam com as relações sociais e os seus modos de produção, denominados como a propriedade privada, retirada dos bens e ganhos entre a população. Esse choque produz uma tensão que leva à uma revolução. Isso é o que Gramsci quis dizer naquela época ao trazer esse questionamento e dizer que o que aconteceu na Rússia foi uma revolução contra o capital de Marx porque não existiam forças produtivas desenvolvidas. O combate não aconteceu aqui. A análise de Lênin é bastante importante porque o que Lênin está argumentando, isso está em seu texto de 1916 sobre o imperialismo e também um longo artigo sobre a questão nacional e autodeterminação, escrito em 1915, em meio ao debate que ele está tendo entre seus camaradas do POSDR, também junto ao partido trabalhista polonês, também com Rosa Luxemburgo e outros. Então, Lênin chega à conclusão de que como consequência do imperialismo e colonialismo, grandes partes do mundo que foram colonizadas nunca veriam suas forças produtivas desenvolvidas. Os colonizadores não permitiriam nunca o desenvolvimento das forças produtivas. Assim como, nessas partes do mundo, a burguesia local não demonstraria um interesse em enfrentar o imperialismo, na verdade, essa burguesia preferiria colaborar com os países imperialistas a fim de obter quaisquer ganhos possíveis que, para essa sociedade, ela sairia ganhando. Essas burguesias locais não teriam interesse em melhorar as condições de vida do público em geral. Esqueça nomes como socialismo e coisas do tipo, o objetivo seria apenas de desenvolver o básico que seria de interesse da população. Sendo assim, Lênin discutiu que por conta do imperialismo, as regiões colonizadas nunca teriam avanços de suas forças produtivas. Dessa maneira, se esperarmos o desenvolvimento dessas forças para, apenas nesse momento, tensionar a relações sociais em relação aos modos de produção, nunca veremos algo acontecer. Sendo assim, a tarefa dos socialistas no terceiro mundo, segundo argumento de Lênin, era de liderar uma mobilização de libertação nacional lutando contra o imperialismo e tensionar o desenvolvimento de um processo revolucionário. Obviamente, uma tarefa enorme. Por um lado, é necessário construir as forças produtivas ao mesmo tempo em que se busca aumentar o poder das massas. Isso é algo extremamente inovador dentro do marxismo. Por outro lado, você pode buscar várias referências de Marx onde ele fala que não é preciso esperar até que essas condições estejam presentes. Se existe a possibilidade de tomar o poder, você toma o poder. Olhemos ao exemplo da Comuna de Paris, em 1871. Os trabalhadores em Paris não estavam debatendo sobre o desenvolvimento necessário das forças produtivas. Eles tomaram o poder. Foram derrotados em algumas semanas, mas ainda assim chegaram ao poder. Marx escreveu um texto brilhante sobre a Guerra Civil na França e a Comuna de Paris que, por sinal, celebra 150 anos esse ano (2021). Então, a questão, mesmo em Lênin, podemos mesmo buscar citações de Marx, mas é a inovação de Lênin onde ele, basicamente, discute que no contexto dos países de terceiro mundo, socialistas não podem ficar esperando pelo desenvolvimento das forças produtivas para tomar o poder de assalto através de uma plataforma de libertação nacional e pelo socialismo. Você pode fazer várias alianças táticas, mas você tem que avançar na luta contra o imperialismo. Tendo tomado o poder, você adquire uma tarefa dupla, bastante desafiadora. Muito mais complicada do que a Alemanha teria caso tivesse realizado a revolução. Seria desafiador porque você tem que desenvolver a forças produtivas e você tem que socializar as relações de produção e, às vezes, essas são coisas contraditórias. Vemos no processo de desenvolvimento na China. As forças produtivas criarão certa desigualdade. O necessário é estar sempre enfrentando esse ponto, em todas as direções. Não existe uma fórmula que o faça ser fácil. Logo, esse é o maior avanço do Leninismo. Nesse processo existem dois pontos que me preocupam. O primeiro é a depreciação da experiência socialista no terceiro mundo, e ela não pode cair em depreciação. Ela tem que ser vista como inovadora. Além disso, contra todas as dificuldades, as massas estão tentando avançar ao socialismo onde as forças produtivas não estão altamente desenvolvidas. O Segundo ponto é a ideia de que no terceiro mundo não se produz teoria. Bom, depois de Lênin, existe uma série de pensadores, desde Mariátegui, que é um pensador leninista canônico, também podemos ir para Ásia e falar de Ho Chí Minh, falar de E.M.S Namboodiripad (Elamkulam Manakkal Sankaran Namboodiripad), mas esses são pensadores que entenderam a inovação leninista no marxismo e que o desenvolveram ainda mais. Esse foi o interesse real que eu tive ao escrever aquele artigo que estará num próximo livro chamado “The Seam of Marxism”, assim como, no dossiê de fevereiro da Tricontinental, ele estará sob o título de Liberdade, Marxismo e Libertação Nacional. Na verdade, trabalho mais essas questões nessa publicação.

No centro do Império, Joe Biden foi eleito recentemente e se por um lado muitos movimentos e partidos de esquerda, incluindo grupos no Brasil, em todo o terceiro mundo comemoraram sua eleição como um progresso dado como certo, por outro sabemos que não é uma simples questão pró ou contra Trump. Quais são seus pensamentos sobre a próxima política internacional de Joe Biden, especialmente para o terceiro mundo e países anti-imperialistas?

Vijay: Sim, não há dúvidas sobre isso de que Biden seja, provavelmente, um pouco mais educado que Donald Trump, de maneira pessoal, sendo assim, possivelmente ele não terá aquelas típicas birras no Twitter que o Trump fazia. No entanto, isso é um aspecto bem superficial. Assim como também é fato de que Biden não fará comentários abertamente racistas e nem teorias ou ideias conspiracionistas como Trump. Existe uma diferença no tom, diferença de perspectivas, mas é importante entender a natureza da burguesia estadunidense na conjuntura atual. Essa burguesia, seja de direita, liberal, toda ela, compreende que estão passando por um momento de ameaça real do crescimento chinês e seus avanços na ciência, tecnologia, progresso na área de telecomunicações, robótica e etc. Os avanços que a China tem feito na tecnologia verde são bastante consideráveis. Assim como o fato de que a China obtém uma alta reserva de capital interna, altos índices de investimentos em sua própria ciência e setor tecnológico. Isso tudo está causando dor de cabeça à burguesia americana. Sendo assim, os grupos que fazem parte dessa classe dirigente estadunidense se unem para promover os ataques contra a China. Em outras palavras, é uma burguesia imperialista. Entretanto, possuem diferenças em seu tom e ênfase na hora de agir. Por exemplo, Trump escolheu uma abordagem mais dura, mais militarista e agressivo contra a China. Ainda com Trump, ele optou por utilizar vias diferentes ao fazer seus ataques. Ele buscou fazer frente à China na América Latina e, dessa maneira, fez ataques visando a iniciativa de expansão da Rota da Seda. Ele buscou aumentar as forças de aliados estratégicos como India, Japão e Austrália formando assim uma aliança militar contra a China. Ele foi nessa direção. Ele meio que disse que os europeus seriam inúteis, deixados de lado. Então, Biden vai buscar solidificar a aliança europeia. Vale ressaltar, novamente, essas são apenas táticas diferentes, mas com o mesmo objetivo e esse objetivo é o de espremer a China e prevenir que esta chegue ao status de potência mundial. É conhecido que a política internacional estadunidense é a ideia de manter sua supremacia e seu posto de única potência mundial. Eu poderia fazer trazer o argumento de que o golpe de Estado na Bolívia que ocorreu por uma série de razões, em novembro de 2019, mas que o golpe também tenha acontecido porque Evo Morales, durante seu governo, mantinha uma aproximação com o modelo de desenvolvimento chinês. Nós sabemos, os bolivianos chegaram a fazer o lançamento de um satélite ao espaço usando plataformas de lançamento chinesas, trabalhando junto à China. Eles (os bolivianos) se desenvolveram durante o governo Morales, construíram uma bateria de lítio para automóveis. Eles estavam rumo à produção de automóveis na Bolívia. Tudo isso era inaceitável para os Estados Unidos. Então, a burguesia americana possui suas diferenças em relação as táticas e perspectivas sobre assuntos internacionais, no entanto, estrategicamente ela se mantém unida. Democratas e Republicanos não possuem desacordos no plano estratégico a esse respeito. A perspectiva sobre o contexto mundial, suas diferenças são táticas e no tom de suas respectivas ações. Eu acredito que essas são suas diferenças reais. Todavia, eu espero que Biden não comece uma guerra contra o Irã, por exemplo. Eu espero que ele remova Cuba da lista dos países que patrocinam o terrorismo. Eu espero que ele reduza as sanções ou, na verdade, que ele seja pressionado a remover as sanções em 30 países, incluindo Venezuela, Zimbabue e Irã entre outros. Eu espero que essa abordagem produza um impacto real no mundo, mas eu suspeito que não irá acontecer. A orientação estratégica dos Republicanos, Democratas e a totalidade da burguesia americana é a mesma.

Em Estrela Vermelha Sobre o Terceiro Mundo, você escreveu que “o trotskismo teve muito pouco impacto no Terceiro Mundo – exceto no Sri Lanka, Bolívia e Argentina, bem como entre um pequeno número de intelectuais. A denúncia do trotskismo aos estados nacionais anticoloniais e depois a Revolução Cubana o alienou dos comunistas do Terceiro Mundo”. Gostaríamos de ouvi-lo mais sobre essa incapacidade do trotskismo de liderar as lutas revolucionárias no Terceiro Mundo. Você considera que há um elemento inerente aos programas trotskistas ao longo de sua história que explica essa debilidade em comparação com as alternativas marxista-leninistas, como em Cuba ou na China?

Vijay: Olha, isso é uma questão complicada, mas que eu considero de muita importância. O Leninismo possui uma boa compreensão do fato de que fora dos países centrais do capitalismo avançado, a questão central para uma construção política deve ser a unidade na mobilização de libertação nacional e marxista. Tem que ser uma luta proativa através do desenvolvimento das forças produtivas e ao mesmo tempo da socialização das relações de produção. Essa era a parte central do argumento leninista para uma revolução mundial. O trotskismo, não necessariamente Trotsky, mas o trotskismo como desenvolvimento, teve compreensões distintas. Essa linha teve um entendimento mais convencional do marxismo e que a revolução deve acontecer em países industriais desenvolvidos. Ele não via o imperialismo como questão central na sua óptica. Se você ler Trotsky, ele não reflete muito sobre imperialismo. Ele está sempre olhando para onde se encontra classe trabalhadora dos centros urbanos e industrializados. Onde se encontra o campesinato em Trotsky? O conceito do campesinato não representa um papel significativo. Bom, por isso que trotskismo, em geral, no terceiro mundo, é visado mais aos intelectuais. Não há uma força política que vá além da classe média ou intelectuais e, além disso, existe uma forma de argumentação atrativa e altamente sofisticada presente no trotskismo, mas a base dessa tendência não considera o imperialismo, a questão camponesa ou a questão agrária e a necessidade de desenvolver as forças produtivas suficientemente. Não há como ficar de fora disso. Como você pode, estando na India ou no Brasil, não levar em consideração a questão camponesa? No Brasil a reforma agrária ainda está na agenda em 2020. Como você pode não ver essa questão como fundamental? O trabalho do campesinato como fundamental. A luta contra o imperialismo como fundamental. Você tem uma burguesia no Brasil que, constantemente, colabora com o imperialismo. Constantemente implicada. Qual é o papel de uma frente única para isolar a burguesia, para mostrar sua cumplicidade junto ao imperialismo? Esses são pontos básicos da organização política que, simplesmente, não são abordados, não apenas nos escritos de Leon Trotsky, assim como, de maneira evidente, por pessoas que vieram depois dele. Eu estou generalizando de maneira gritante, existem pessoas que têm trabalhado essa questão e outras. Contudo, eu quero apenas repetir que, particularmente, sobre o imperialismo, a crise agrária (ou a questão do trabalhador e a aliança com o campesinato) e a questão de como construir o socialismo no terceiro mundo, esses três tópicos são deixados de lado pelo trotskismo e, portanto, não trazem à luz a questão sobre as questões políticas fundamentais para os países fora da América do Norte e Europa. Sendo assim, nos questionamos e pensamos algo como “Para onde vamos?”.

Também na obra você escreveu que a razão pela qual alguns partidos se apegaram à Stálin não foi porque eles defenderam os expurgos ou a coletivização na URSS. Foi porque Stálin, no debate sobre a militância, veio para substituir o idealismo revolucionário pela luta antifascista. Sendo assim, muitos dos partidos comunistas do Terceiro Mundo compartilhavam a posição de defender que o trabalho de Stálin “ainda era útil para os países do Oriente”. Como você observa os múltiplos significados de Stálin ao redor do globo, então e agora, e a diferença de posição entre a tendência dos partidos comunistas do terceiro mundo a reivindicar Stálin e a tendência dos partidos comunistas do primeiro mundo a negá-lo?

Vijay: A questão de Stálin é uma questão bastante complicada desde o começo do movimento bolchevique. Existem pessoas de diferentes origens e de diferentes classes que chegam à uma posição de liderança. Existem pessoas que vieram de famílias de intelectuais de classe média, vieram com um conhecimento da leitura, com uma consciência social e etc., como, por exemplo, Trotsky, Lênin e outros. Por outro lado, temos que entender que naquele movimento bolchevique existiam pessoas que vieram de famílias operárias, que vieram do campo, como Cecilia Bobroyskaya, uma bolchevique muito importante. Seu pai foi um judeu ortodoxo, estudioso, não tinha trabalho, sua mãe tinha que, basicamente, organizar as coisas da família ao fazer trabalhos de colheita, como lavadeira, servindo em jantares e trabalhos desse gênero. Ela assistiu sua família sobreviver com bastante dificuldade. Bobroyskaya levou consigo mesma o sentimento da privação, esse mesmo que Stálin também carregaria consigo por vir de uma família com dificuldades extremas. Sua mãe era trabalhadora doméstica. Existe um sentimento de ódio enorme que se apresenta no partido bolchevique. Se você vem de um meio familiar onde você vê seus pais sendo desrespeitados, você vê seus pais lutando para sobreviver, você vê os conflitos que iniciam no âmbito familiar pois eles não conseguem adquirir o suficiente para o sustento de todos. Isso tudo tem um impacto muito profundo na vida das pessoas. Uma das coisas cruciais no movimento bolchevique, então na União Soviética, era a quantidade de pessoas de origem extremamente pobres, ocupando postos de liderança, não foi somente Stálin. Assim também ocorreu com o secretário-geral seguinte, Krushschev, que também veio de uma família muito pobre. Isso tinha um impacto na atitude daquelas pessoas. Eu queria apenas contar essa parte, pois nós não falamos disso o suficiente. Existe uma grande consciência de classe que é presente na existência dessas pessoas. Elas não estão observando ao mundo como intelectuais. Então, isso é algo que eu gostaria de trazer para a discussão, mas vamos nos aprofundar mais nesse ponto. Olha, não é fácil construir o socialismo e todos são críticos. O marxismo ocidental que, por exemplo, basicamente se acomodou perante a realidade, caiu numa abordagem mais filosófica para o mundo que sobre as questões mais práticas de construir movimentos, construir formas organizativas, de refletir sobre a natureza do capitalismo e pensar como construir o socialismo. Essas questões práticas são essenciais se você ainda não permitiu que esse marxismo seja somente filosófico e fique na discussão de grandes questões ontológicas. Vamos pensar o comunismo ontologicamente. Desculpe-me, mas no Vietnã não se pode pensar o comunismo ontologicamente. É necessário pensar-lo em suas praticalidades. Você não pode apenas pensar no horizonte comunista. Ele tem que ser construído e, portanto, você está no meio da lama da história. Você estabelece compromissos terríveis. Você tem que fazer coisas que você, muito provavelmente, não gostaria de fazer. Sendo assim, quando você olha a história da construção do comunismo na USSR, existem muitas coisas que não são boas e eu não estou justifcando-as aqui. Erros foram cometidos. Eu acredito que a constituição soviética deveria ter sido seguida à rigor em relação às várias pessoas que foram presas e isso não ocorreu. Isso é uma crítica importante que nós temos daquele período inicial. A constituição deveria ter sido seguida de maneira correta e não foi. Portanto, houve muitos erros. Agora, um terceiro ponto, não se pode personalizar tudo isso em Stálin. Olha, isso é uma luta para se construir o socialismo. Eu não digo que Ho Chí Minh foi o grande deus do comunismo no Vietnã. Esse não é nosso tio Ho, é uma grande variedade de pessoas, é o partido, são as pessoas que participam da luta e etc. Créditos não devem ser dados apenas à Ho Chí Minh. Se você tiver críticas sobre o que aconteceu, essas críticas não podem ser somente responsabilidades de uma pessoa. Desenvolver e construir o socialismo é um processo bastante complicado. Então, essa maneira de personalizar coisas na figura de Stálin é bem ridículo, é uma abordagem errada. Não é somente Stálin. Quem fala isso não observou as linhas gerais desse processo e a complexidade que tinha. Assim que, novamente, não estou me esquivando de nada. Eu apenas disse que acredito ter ocorrido erros graves que foram conduzidos contra a constituição soviética e que esta teria que ter sido respeitada com rigor. Não sou evasivo com nada. Gostaria de ir mais além. Agora, nós chegamos à questão de construir capacidade organizacional de um país que está sob ataque. Nesse caso, a liderança bolchevique, de 1917 até 1945 teve um papel heróico. Eles foram capazes de, durante a guerra, desenvolver suas forças produtivas onde não existia nada e tiveram a capacidade de derrotar a praga nazista. Isto é bastante significativo e o terceiro mundo viu na imagem de Stálin e o que se lembra é a figura que ajudou na vitória contra o nazismo ao invés dos expurgos de 1930. Essa é a maneira que Stálin é lembrado pelo resto do mundo. Os expurgos não definem Stálin, o que define ele é a vitória heróico do povo soviético contra o nazismo. Novamente, não é algo apenas sobre Stálin, estamos falando de 20 milhões aproximadamente que morreram na batalha de Stalingrado. É inacreditável quantos soviéticos se sacrificaram para destruir essa praga nazista naquele momento. É assim que se vê Stálin. Além disso, politicamente, não há uma outra pessoa que teve um enfrentamento a nível pessoal contra Stálin que o presidente Mao. Mao, de 1920 até 1949 teve uma relação bastante tensa com o Comintern e, pessoalmente, com Stálin. A situação teve seus momentos mais complicados durante a disputa sobre a fronteira entre a USSR e o PRC nos anos 50. Ainda assim, quando Stálin falece em 1953, Mao celebra a vida de Stálin. Por quê? Esse é o ponto chave quando eu escrevi Estrela Vermelha. Logo após a morte de Stálin, uma tendência revisionista surge dentro da USSR cujo interesse é o de não conflito com o Ocidente, não avançar no processo revolucionário e assim em diante. No centro disso se encontra Krushchev que, não é completamente um revisionista, mas que de vez em quando se colocava nessa posição. Contudo, essa tendência revisionista evolui dentro da USSR e em resposta à essa situação, em lugares como India ou China, as pessoas se apegavam a figura de Stálin, contra o revisionismo que não era algo em favor da classe trabalhadora mundialmente. Se as perspectivas de Stálin refletem as dessas pessoas, já não seria relevante. A imagem dele que aparece desde 1953 e à diante é a busca da classe trabalhadora mundial que segue lutando. Essa é a imagem de Stálin, mesmo na China ainda que durante a disputa Sino-Soviética. Então, repito, se vamos avaliar Stálin como pessoa, sua figura, existem complexidades. Eu vejo como a expressão “stalininista” é usada como algo vazio, utiliza-se também uma expressão como “tankie” e isso não significa nada. É uma maneira de atacar a esquerda, quem acredita no comunismo e socialismo, quem se vê na luta anti-imperialista se vê sendo atacado ao ser chamado de “tankie”. Eu não entendo e acredito que esse tipo de rótulo deveria ser rejeitado completamente. É uma expressão de liberais usada como para nos colocar numa discussão onde não há o que se discutir. Assim como esses ataques à Stálin são uma tática de nos levar para uma discussão sobre algo que não tenho interesse de fazer parte. Eu tenho interesse em fazer o socialismo avançar. Eu entendo que no Terceiro Mundo, desenvolver as forças produtivas é absolutamente essencial ainda que o imperialismo não permita e é, exatamente aí, que Stálin tem um papel histórico.

Aqui no Brasil as informações qualificadas publicadas sobre a Índia ainda são muito escassas, mas como sabemos, vocês também passaram por momentos ruins. Qual é o seu julgamento geral sobre a atual situação política do governo da Índia e quais são as opções dos movimentos de esquerda do país para isso? E como você e os marxistas da Índia fazem uma análise da sociedade de classes com o sistema de castas da Índia?

Vijay: Então, isso é muito complicado e é difícil entrar nisso, em tudo isso. Você sabe, poderíamos passar a entrevista inteira apenas falando sobre isso, então não quero fazer parecer que tudo pode ser explicado. A forma como o capitalismo se desenvolve em qualquer parte do mundo é que ele extrai seu poder social básico de todas as instituições sociais. Essas instituições sociais dependem de hierarquias de racismo, hierarquias de gênero, hierarquias de casta e assim por diante. Essas velhas hierarquias não são superadas pelo capitalismo. O entusiasmo juvenil que Marx e Engels têm no Manifesto Comunista, algo que eles até o rejeitarão mais tarde em suas vidas, foi essa ideia de que o capitalismo quando chega, é um solvente. Elimina as distinções sociais e só deixa para trás o proletariado e a burguesia e eles se confrontam. Essa era a exuberância juvenil do Manifesto Comunista. Em alguns aspectos é verdade, mas em muitos outros, não funciona assim porque as forças do capital não destroem a distinção social. Elas os atraem. Essas forças se reconstroem na estrutura de classe. Por isso que nós temos que fazer uma análise concreta da condição concreta, porque você não fica tão simplificado como a burguesia aqui, o proletariado ali. Você vai cortar todos os tipos de ideologias, seja no Brasil, seja evangelismo ou na Índia, é a ascensão do majoritarismo hindu. Essas coisas desempenham um papel. Você não pode simplesmente virar-se para um cristão evangélico e dizer “por quê você está agindo contra seus interesses de classe?”. Eles não entendem o que você está falando. Eles já absorveram que a estrutura evangélica pentecostal é essencial para suas vidas, e eles herdaram algumas dessas idéias do passado. Assim, quando o capitalismo entra em uma sociedade, quando começa a se desenvolver, ele se beneficia das hierarquias sociais para obter vantagens. Então, mesmo nas práticas de contratação, os empregadores às vezes contratam pessoas com base na distinção social. Os homens conseguem certos empregos, as mulheres conseguem certos empregos. Os brancos conseguem certos empregos. Pessoas de ascendência africana, certos empregos… blá, blá, blá. Algumas castas trabalham aqui, algumas lá. Assim, eles reforçam a distinção social dentro de um local de trabalho ou entre linhas de emprego. As pessoas vivem em bairros diferentes. Há privações que se aprofundam e assim por diante. Assim, a casta nunca desaparece porque a Índia é um país capitalista avançado. A casta se alimenta dessa estrutura. Reproduz-se de formas interessantes e prejudica o movimento popular. É um impedimento para o movimento popular porque a ideia de igualdade não existe na sociedade, e o comunismo exige que a ideia de igualdade seja estabelecida, e é por isso que as lutas de esquerda têm que enfrentar diretamente o castismo. O movimento comunista na Índia é um dos poucos movimentos fora do movimento dos povos de castas oprimidas. É um dos poucos movimentos políticos que confronta diretamente a hierarquia de castas. Em países como o Brasil, se você não enfrentar diretamente o racismo, se você não enfrentar diretamente o sexismo da forma como a sociedade está organizada, você não sabe como construir o comunismo. O comunismo não pode ser construído apenas a partir de um trabalho abstrato. Tem que ser construído na estrutura da sociedade em que você vive. Você tem que confrontar diretamente essas hierarquias sociais porque as hierarquias sociais realmente sustentam uma construção e mantêm a desordem social da qual o capitalismo se aproveita. Então é muito importante entender que na Índia, a miséria da casta é fundamentalmente sedimentada. E tem sido difícil agitá-la. É como se você tivesse uma mancha nos dentes, você tenta limpar e isso requer trabalho. Então há muito trabalho a ser feito para confrontar diretamente as hierarquias sociais, o patriarcado e assim por diante. Estes têm de ser atacados frontalmente. Eles não desaparecem quando a classe chega ao poder. Você tem que atacá-los frontalmente. A classe trabalhadora tem que entender isso como impedimentos importantes para o avanço da classe trabalhadora. Então isso é uma coisa. A situação atual na Índia, é claro, é um governo de direita que está no poder, que é a favor das velhas hierarquias e avanços da causa do chamado majoritarismo hindu. É muito parecido com o tipo de movimento pentecostal de Bolsonaro. Estes são essencialmente movimentos religiosos de direita que se disfarçam como projetos políticos liberais. Não sei qual é o projeto político. O projeto político básico de Modi é pegar as instituições do Estado e entregá-las de um lado para aliados capitalistas como os Ambani e os Adani e, portanto, fazer uma política agrícola, uma política trabalhista que lhes dê todas as vantagens. Por isso que há uma revolta massiva de fazendeiros na Índia agora. Por outro lado, eles querem entregar as instituições do Estado a esse tipo de política de direita, religiosa e fanática. Eu acho que a história não é difícil de entender para alguém no Brasil porque é muito parecido. Você vê o Bolsonaro basicamente aproveitando para ajudar seus aliados capitalistas, entregando coisas para eles, dizendo “vamos minar a Amazônia, destrua-a, seja o que for, divirtam-se”. Por outro lado, você entrega as instituições do estado a esse tipo de política fanática, de mente estreita, que reforça a hierarquia social e há uma base de massa para isso, dessa maneira que eles são capazes de ganhar eleições e assim por diante.

Vamos falar sobre Balas de Washington. Uma das “balas” que você menciona no livro são as sanções, os embargos, uma bala que às vezes não é levada a sério por sua consequência letal como deveria ser. No atual cenário de pandemia, esse recurso letal do imperialismo se torna ainda mais destrutivo. Você poderia falar sobre esse tipo peculiar de interferência que mata silenciosamente a população desses países?

Vijay: Claro. Então, é muito claro que se você pode seguir seu caminho sem ter que bombardear um país ou enviar seu exército para o país, então por que você não faria isso? Quero dizer, a ação preferível no plano de opções de uma força imperialista não é bombardear um país. Isso não vai ser uma primeira abordagem. Você vai construir em direção a isso. Muito raramente um país imperialista simplesmente diz “Vamos bombardear tudo”. Eles vão tentar todos os tipos de coisas, manobras para subordinar partes do mundo que estão sendo desobedientes aos objetivos imperialistas, aos objetivos estratégicos do imperialismo e, portanto, essa ideia da guerra híbrida, guerra de informação, guerra diplomática, guerra econômica, guerra comercial, guerra financeira. Dessa maneira, etapa por etapa, levando ao engajamento militar, sabotagem e assim por diante. O híbrido era uma coisa antiga. Não é uma coisa nova. É só que agora as tecnologias que estão disponíveis para o governo dos Estados Unidos e seus aliados são tão sofisticadas que você pode, de fato, destruir um país sem bombardeá-lo. Deixe-me dar alguns exemplos. Um exemplo é a sabotagem que ao invadir o sistema de eletricidade, você pode travar o sistema de eletricidade. Você não tem que bombardear a usina. Você não precisa enviar dez aviões e jogar explosivos e destruir a usina. Você pode invadir o sistema e desligar a usina debilitado-a por dez, quinze, vinte horas. É uma demonstração de força. Veja o que podemos fazer. Os Estados Unidos atacaram com o vírus Stuxnet. Eles atacaram os computadores do ministério nuclear iraniano e destruíram o sistema de computadores, não com um ataque militar ou com um bombardeio, mas com um hack. Quero dizer, eles acabaram de enviar um vírus no Stuxnet e destruíram o sistema de computador iraniano. Então, as técnicas de guerra híbridas agora são muito mais importantes porque a tecnologia é desenvolvida. Isso inclui tecnologia da informação. Os Estados Unidos têm a capacidade e os setores da classe dominante têm a capacidade de exportar suas ideias para que suas ideias se tornem as ideias do mundo. Você sabe como é fácil para os EUA dizer que o vírus é um vírus da China. Você sabe como é fácil e as pessoas começam a repetir e acreditar em todo o mundo, mesmo que seja uma ideia ridícula. Ou essa ideia de dizer que Nicolas Maduro é um ditador. Com licença, quantas pessoas ele matou no mundo? Vamos ver o histórico de Bill Clinton. Milhões de pessoas mortas sob a vigilância de Bill Clinton, meio milhão de crianças iraquianas por causa das sanções. Quantas pessoas George W Bush matou? Mais de um milhão de pessoas apenas no Iraque. Mesmo assim, de alguma forma Bush, Clinton, Trump e Obama, eles não são escalados como vilões no mundo. Obama desestabilizou e destruiu a Líbia. Ele não é um vilão no mundo. Eles têm um jeito na guerra de informação de ver que todos os vilões do mundo são os iranianos ou é isso ou aquilo. Então a guerra híbrida tem se tornado bastante sofisticada. Agora que se tornou essencialmente o instrumento principal, você pode manter sua pressão militar nos bastidores. Você não precisa bombardear países, embora eles façam isso também, logo não vamos dizer que isso não aconteça. Militares invadem. Há uma enorme base militar em Agadez, na Nigeria, a maior base de drones do mundo. Por quê os Estados Unidos têm uma base no Sahel? Eles ainda têm bases militares em todo o mundo, mas você tem outras ferramentas disponíveis. As sanções são uma dessas ferramentas. Os Estados Unidos têm sanções secundárias e primárias em mais de 30 países ao redor do mundo, incluindo, a Venezuela. Claro, Cuba está sob um embargo terrível e agora eles tornaram isso ainda mais difícil.  Podemos ainda adicionar o Zimbábue, o Irã, o Líbano, a Síria e assim por diante estão sob imensas sanções primárias e secundárias. Porque os Estados Unidos dominam grande parte do comércio mundial, com o dólar no centro, os sistemas financeiros dos EUA no centro, a Rede SWIFT, que tecnicamente está na Europa, mas os Estados Unidos têm muito controle sobre ela, assim como os controles dos EUA sobre o FMI. Então, todos esses mecanismos, há uma forma de sufocar economicamente o país. Não é fácil começar a negociar em bitcoins ou em outras moedas, é muito difícil se afastar do dólar. Você sabe, não temos tempo para entrar nisso, mas é um problema de reconciliação. Tivemos apenas algumas moedas, dois mecanismos para organizar o comércio mundial. Primeiro foi o ouro e depois veio o dólar. Só tivemos duas maneiras de conciliar o comércio internacional. Portanto, nenhuma dessas coisas simplórias agora passará para o renminbi ou o yuan, ou agora passaremos para o rublo ou criaremos outra moeda. Não é tão fácil de fazer e de se afastar do dólar agora. Portanto, você tem o instrumento do dólar, você o usa e essa é a política de sanções. Você pode destruir países apenas negando-lhes dólares.

Apesar dos embargos, sanções e das mencionadas interferências imperialistas nos países socialistas, esses países, em geral, têm lidado muito bem com a pandemia do COVID-19. Como você analisa as diferentes respostas dos países socialistas e capitalistas ao COVID, incluindo todas as recentes disputas de vacinas?

Vijay: É uma ótima pergunta. Na Tricontinental, produzimos um texto chamado Socialismo e Corona choque. Neste texto, nós basicamente argumentamos olhando para quatro países, olhamos para três países em um estado. Vimos o Vietnã, Cuba, Venezuela e Kerala, o estado indiano de Kerala, que, tem uma população de 35 milhões. É um estado muito grande. E o que descobrimos ao analisar como eles conseguiram lidar melhor com o surto de COVID 19, encontramos quatro princípios e vou explicá-los para você. O primeiro é que nesses países os governos levaram a ciência mais a sério do que as alucinações. Levavam a ciência a sério. Eles não fingiram que o COVID 19 não deva ser algo para ser levar à sério, que é a atitude, digamos, de Bolsonaro e Modi, Trump, Boris Johnson e assim por diante. Eles foram muito claros que precisamos fazer testes, rastreamento de contatos, isolamento de quem está infectado, tratamento e assim por diante. O protocolo da Organização Mundial da Saúde foi seguido à risca. Então, primeiro eles usam a ciência sobre as alucinações. Em segundo lugar, eles tinham um setor público. Nesses países, os governos conseguiram direcionar o setor público para criar máscaras, desinfetantes para as mãos, equipamentos de proteção e assim por diante, e fazê-lo rapidamente. Onde o privado prevalece, sendo toda a economia privatizada, as pessoas não iriam para esta área porque não tinham certeza de que haveria um mercado. Além disso, alguns governos estavam dizendo que não é um surto sério. Diziam que iriam se preparar em breve. Por que você começaria a produzir máscaras se não houvesse mercado a longo prazo para isso? Então chegou a um estágio em que o Vietnã enviou meio milhão de equipamentos de proteção para os Estados Unidos. Imagine que este país pobre, que foi bombardeado pelos EUA por mais de 15 anos, envie meio milhão de equipamentos de proteção para os EUA, que é um país tão grande e mais rico do mundo. Assim, o setor público desempenha um papel. Em terceiro lugar, a ação pública em todas essas sociedades, as pessoas são muito organizadas. Os sindicatos se envolveram, os movimentos cooperativos se envolveram e assim por diante. Em muitos dos países industrializados avançados, a ação pública foi mercantilizada por ONGs, fundações e assim por diante. As pessoas não são ensinadas a serem voluntárias. Em Cuba, todo mundo é basicamente membro do Comitê de Defesa da Revolução. Na maioria dos países, você não está organizado socialmente. Você está isolado, atomizado. Então, isso desempenhou um papel enorme no combate à pandemia. Mesmo que ainda não tenha acabado. Não vamos exagerar nisso, mas ainda assim, as pessoas conseguiram quebrar as cadeias de infecção, minimizar o impacto e assim por diante. As pessoas foram de porta em porta verificando se as pessoas estão bem, fornecendo comida, remédios. Essa ação pública desempenha um papel. Em terceiro lugar, esses países do estado adotaram uma perspectiva internacionalista. Eles não entraram no racismo, vírus da China, isso e aquilo. Eles adotaram uma perspectiva internacional. Não foi surpresa que sejam médicos chineses e cubanos que viajaram para o exterior e tentaram fornecer suporte para enfermarias de COVID 19 em todo o mundo, fornecer informações, suporte e assim por diante. Isso é algo para se prestar atenção e que eles adotaram uma visão internacional, não uma visão estreita, o que significava que eles disseram “vamos, como comunidade mundial, quebrar a cadeia de infecção”. A OMS disse que o slogan para a pandemia deveria ser solidariedade, não estigma. E isso realmente o define. Os países de esquerda, os governos de esquerda nesses países adotaram uma perspectiva de solidariedade. Os governos de direita adotaram uma perspectiva de estigma. E acho que é, por isso, que uma seção, mesmo a pobre, parecia se sair melhor do que a outra.

Recentemente a mídia hegemônica tem estado em alvoroço sobre o tratamento do governo chinês aos bilionários. A mesma mídia, em geral, relata o atual conflito entre China e EUA como um mero “contencioso comercial”. Quais são suas opiniões sobre a cobertura da mídia para a China e para onde esse conflito está indo?

Vijay: Bem, vamos começar com a mídia. Quero dizer, olhe, há um problema com a guerra de informação. Os conglomerados de mídia ocidentais, as principais empresas de mídia definem narrativas em todo o mundo de forma muito mais eficaz do que, digamos, a mídia chinesa ou, você sabe, a mídia de esquerda e assim por diante. No caso dos EUA, a guerra imposta à China é um caso muito claro. Então, vamos dar três exemplos de como a mídia enquadra a questão. Primeiro, ninguém fala sobre os problemas reais. Voltaremos a isso em um minuto. Vamos a três exemplos. Um, de repente os Estados Unidos dizem que, olha, não use as telecomunicações chinesas como a Huawei porque o governo chinês vai espionar você. Esta história é então impressa em jornais de todo o mundo. Ninguém está recuando e dizendo, espere um minuto, por favor. Edward Snowden revelou que empresas de tecnologia dos EUA, como o Google, já entregam suas informações à Agência de Segurança Nacional dos EUA, à Agência de Inteligência dos EUA. Eles já fazem isso. Então agora o governo dos EUA diz para não usar a Huawei porque eles podem entregá-la ao governo chinês, mas você concorda com as empresas de tecnologia dos EUA dando informações ao governo dos EUA. Então essa é uma guerra de informação interessante em que a realidade é relevante. Dessa maneira, circula-se essa ideia de que a China é autoritária e a informação irá para o Estado, mas tudo bem se a informação é fornecida ao governo americano, sabe, esse é o número um. Em segundo lugar, de repente você vai dizer “Ah, meu Deus, o que está acontecendo em Urumqi? O que está acontecendo em Xinjiang? O que está acontecendo com o povo uigur? É um problema sério. Deve ser analisado. Não importa. O governo dos Estados Unidos, Mike Pompeo, chefe da CIA, costumava ser o chefe da CIA, diz “olhe o que os chineses estão fazendo em Urumqi”. De repente os Estados Unidos estão se colocando como o grande amigo dos muçulmanos. Isso é bizarro. Logo os Estados Unidos que estão no Iraque, onde os EUA impuseram uma guerra, mais de um milhão de pessoas foram mortas. Ninguém foi responsabilizado por isso. Os Estados Unidos destroem a Líbia. Não sei quantas pessoas morreram como consequência dessa guerra. Os EUA estão basicamente conspirando com a guerra no Iêmen. Os Estados Unidos abriram Guantánamo e, de repente, as pessoas ao redor do mundo dizem “Bem, os EUA são defensores dos muçulmanos”. Essa é a guerra da informação, essa é uma guerra contra a China. Muito habilmente feito. Número três. “Oh, olhe para Hong Kong. A democracia é necessária”. Hong Kong foi um posto imperial do Império Britânico por 100 anos até que eles tiveram que devolvê-lo à China, na década de 1990. Na Índia, havia um posto avançado imperial de Portugal na costa oeste da Índia chamado Goa. A Índia conquistou a sua independência em 1947. Em 1961, o governo de Jawaharlal Nehru ordenou que o exército indiano entrasse em Goa e expulsasse os portugueses com o exercício militar. A China não tomou Hong Kong em um exercício militar como fizemos na Índia até a década de 1990. Por que a China não enviou tropas na década de 1960 e apenas tomou Hong Kong de volta? Eles esperaram. Eles honraram o acordo. Tecnicamente, Hong Kong deveria ter sido absorvida pela China, mas por alguma razão eles decidiram ter essa coisa complicada de um país e dois sistemas. Agora, de repente, eles estão dizendo democracia em Hong Kong. Que democracia? Era um posto avançado imperialista. Que democracia? Sabe, do que estamos falando? Então você vê como funciona a guerra de informação. É muito inteligente. As pessoas ao redor do mundo dirão “Bem, e quanto a Hong Kong? E o Urumqi? Sobre espionagem chinesa em meus telefones?” Bem, os EUA estão espionando sua voz. Sem problema. Isso está matando muçulmanos? Bem, isso é um assunto diferente. Os Estados Unidos, você sabe, têm suas próprias colônias imperiais ao redor do mundo. Não me interessa. Eles podem fazer o que quiserem. Eles ainda estão ocupando o Afeganistão. Tudo bem. É uma longa guerra, mas estamos preocupados com Hong Kong. Essa é a guerra da informação. Mas há uma questão real envolvida aqui, que é o avanço da ciência e tecnologia da China. As empresas dos Estados Unidos não podem lidar com isso. Eles são incapazes de realmente lutar ou enfrentar a ameaça real. Os chineses posam uma ameaça para os EUA e porque eles não são capazes de enfrentar essa ameaça real, a guerra de informação toma conta. É assim que o imperialismo opera. Você não quer lidar com isso de uma forma econômica, você quer lidar com isso politicamente. Essa é basicamente a definição de imperialismo. É uma força extremamente econômica usada para avançar os objetivos econômicos.

Sabemos que a democracia – como concepção burguesa – é fraca porque contém contradições radicais sem oferecer soluções efetivas para elas. Você vê alguma grande contradição no papel da mídia burguesa hoje? O colapso institucional da democracia como modelo infalível afetará a escala do jornalismo ocidental? E, por fim, qual é o papel dos comunistas em tudo isso?

Vijay: Veja, se olharmos com cuidado, existem reservatórios profundos de comportamento hipócrita em seções do liberalismo ocidental, reservatórios profundos, profundos que não serão esgotados facilmente. Esta é a opinião que diz “olha, existem populistas como Trump e vamos derrotá-los de alguma forma e Biden vai voltar. Esses loucos que vieram para Washington, D.C. em 6 de janeiro, eles são loucos e deveriam ser processados”. As pessoas vão dizer “na Venezuela, eles não se importam com as pessoas”. Eles se sentam no topo de uma montanha e pronunciam julgamentos sobre o mundo. Esta é uma grande atitude hipócrita. Eu estava na Venezuela durante a eleição da Assembleia Nacional, e fiquei chocado ao ler Tom Phillips do The Guardian. The Guardian é um jornal britânico e Tom Phillips, correspondente internacional, baseado no Brasil. Ele relatou sobre a eleição venezuelana basicamente repetindo os pontos de discussão do Departamento de Estado dos EUA. Este é o Guardian que finge ser um jornal liberal. Os colunistas da América do Sul, como Tom Phillips, rotineiramente reportam com um viés de direita, na minha opinião, e no caso de sua reportagem sobre as eleições venezuelanas, era basicamente o que Mike Pompeo estava dizendo. Ele não estava reportando da Venezuela. Não quero dizer que ele não estava lá, mas não parecia estar conversando com as pessoas na Venezuela. Então este é o nível de santidade. Eles se sentem superiores ao mundo. Eles julgam o mundo. Eles são como o papa do liberalismo. Eles vão excomungar as pessoas. Eles darão santidade. Eles darão santidade às pessoas e assim por diante. É uma atitude terrível e devemos entender essa atitude pelo que ela é. A mídia de esquerda está em grande desvantagem porque essas coisas, com dinheiro, poder e o poder da mídia sufoca a guerra da informação. Eles são capazes de modelar os pontos de vista das pessoas. Eles vão mencionar Xinjiang, constantemente, como “Isso é o que está acontecendo na China. Isso é o que está acontecendo”. Quando você levanta qualquer questão sobre quem é, onde você obtém a informação? Eles dizem “oh, você é um teórico da conspiração, você é um negador do genocídio em Xinjiang”. Eles não estão dispostos a ter uma conversa séria. Então você chega e diz “o que está acontecendo em Papua Nova Guiné?” Essas empresas de mineração ocidentais estão destruindo a segunda maior floresta tropical do mundo em Papua Ocidental, que é basicamente uma colônia da Indonésia e Papua Nova Guiné. O que está acontecendo lá? Se você levantar essas questões, elas reafem como “oh, isso não é importante. Vamos nos concentrar em Urumqi. Vamos nos concentrar em Xinjiang e no povo uigur” e assim por diante. Portanto, essa batalha de informações ou o que chamamos de batalha de ideias, é uma arena muito importante que não deve ser subestimada. É difícil e quero dizer, meu sentimento é que as pessoas de esquerda devem se consolar com o fato de que os fatos geralmente estão conosco e não devemos nos envolver em batalhas ideológicas nos termos estabelecidos pelos liberais hipócritas. Precisamos começar a definir nossos próprios termos para o debate e a discussão e forçá-los a aceitar nossos termos. Não se renda a isso.

Serguei Eisenstein – teoria e prática

Por NAUM KLEIMAN*

Publicado em A TERRA É REDONDA

Não é de um cinema-olho que precisamos, mas de um cinema-punho

Tenho certeza de que todos os admiradores de Eisenstein poderiam contribuir para o assunto que trato aqui. Se esta introdução tem um caráter “pontilhista” é porque meu objetivo é provocar reflexão. Há um novo impulso nos estudos sobre Eisenstein e não é apenas devido ao seu “centésimo aniversário”. Tem havido muitas mudanças no mundo, muitas mudanças no cinema, bem como na relação entre o cinema e outros veículos da mídia.

Paradoxalmente, nossa imagem de Eisenstein também está mudando o tempo todo. O aspecto positivo de todo este processo é o de que ele ainda não foi canonizado. Ainda podemos discuti-lo. Na verdade, ele não se permite canonizar. Chamo atenção para o final de um dos capítulos de seu livro inacabado de ensaios, Lyundi odnogo filma / Pessoas de um filme, escrito entre 1946 e 1947 e até agora traduzido apenas parcialmente em pouquíssimas línguas. Em francês, por exemplo, temos um fragmento desse livro incluído no volume Mémoires com tradução de Michèle Bokanovski.

No livro, ele descreve o grupo que trabalha em Ivan Grosznii / Ivan, o terrível. O trecho traduzido são anotações sobre o maquiador Goriounov, os contra-regras Lomov e sua mulher Lydia Lomova, os cenógrafos Iakov Raizman e Leonida Lomonova, o técnico de som Boris Volski e também um trecho da passagem sobre Esfir Tobak, que o está ajudando na montagem, o capítulo intitulado Strekoza i muravei / A formiga e o gafanhoto. Bem no final do capítulo, Eisenstein faz uma observação curiosa. Lembra-se de suas teorias, das afirmações que ressoam há anos, e por fim diz que nunca ocorreu a ninguém verificar se o autor destas afirmativas realmente as seguiu.

Infelizmente, às vezes tentamos ilustrar suas teorias a partir de exemplos de seus filmes, ou entender seus filmes como suas teorias postas em prática. Contudo, como agora começo a compreender, seu trabalho realizado é, por um lado, muito mais rico que sua teoria, enquanto, por outro lado, sua teoria é muito mais rica do que o corpo de seu trabalho. Eles não têm uma simples e direta correspondência; às vezes chegam a ser conflitantes. Algumas das ideias que expressam como hipóteses são demonstradas em seus trabalhos, outras não.

Não devemos perder de vista o fato de que ele trabalhou durante vinte e cinco anos e várias mudanças ocorreram ao longo desse tempo – não tivemos mudanças políticas e sociais apenas na União Soviética. A primeira coisa que devemos fazer é lançar mão da noção de que Eisenstein seguia essas mudanças políticas e sociais de perto, e de que reagia às pressões sobre seu trabalho. Claro que o tempo em que viveu e as pressões que sofreu foram significativos. Temos, inclusive, que fazer um esforço para entender o contexto no qual seu trabalho se desenvolveu, porque ainda não conhecemos o suficiente sobre esse período.

Entretanto, ao mesmo tempo, há vários processos imanentes, tanto em seu desenvolvimento como artista quanto como teórico, que devem ser compreendidos. Eisenstein frequentemente se referiu à enorme influência que seu professor do Instituto de Engenharia Civil, de Petrogrado, Professor Sukhotsky, exerceu sobre ele. Mas sabemos muito pouco sobre Sukhotsky, embora seja uma das figuras mais interessantes da cultura russa do começo do século XX. Sukhotsky foi um dos primeiros a perceber a importância das teorias de Eisenstein e um dos primeiros a entender o novo estudo do infinitesimal na física, e a explicar seu significado poético.

Eisenstein lembra que foi Sukhotsky que lhe ensinou a teoria dos limites a que os objetos aspiram. Se considerarmos isso, então podemos ver que várias dessas afirmativas teóricas representam limites a que seu trabalho aspira. Mas lembre-se que em suas Memórias ele está sempre se referindo ao King Gillette e à ideia de que você deve fazer uma meia volta para trás com a chave de fenda dos limites a que aspira quando se tratar da prática. É esta meia volta para trás que fornece toda a capacidade estilística e as variantes individuais. Deixe-me dar alguns exemplos.

Uma das coisas mais assustadoras que Eisenstein disse no texto K voprosu o materialisticheskom podkhode k forme / Sobre a questão de uma visão materialista da forma, publicado no Kinozhurnal ARK, de abril/maio de 1925, em suas discussões com Dziga Vertov foi: “Não é de um cinema-olho que precisamos, mas de um cinema-punho”. Essa declaração provocou uma série de especulações. Enquanto celebramos Eisenstein, o filósofo Yuri Davydov fez um discurso profundamente crítico ao cineasta, alegando de que foi um tipo de stalinista que queria pegar seu “cinema-punho” e enfiá-lo na cabeça das pessoas de qualquer jeito, diferentemente de Brecht que, ao contrário, estimulava o pensamento independente.

Esta imagem do “cinema-punho” Eisenstein certamente apanhou das Reminiscências de Lênin, de Gorky, do trecho em que ele relembra uma observação de Lênin sobre Beethoven: com Beethoven sentimos como se estivéssemos fazendo carinho na cabeça das pessoas quando na verdade estamos batendo com nossos punhos nela. Eisenstein conclui Sobre a questão de uma visão materialista da forma defendendo a ideia de um cinema punho para bater firme na cabeça e “plantar sobre a psique dos espectadores”.

Claro que podemos interpretar isso como uma tentativa de invadir o pensamento das pessoas, mas, se o examinarmos dentro do contexto do que ele estava escrevendo na época, compreenderemos melhor o que Eisenstein estava dizendo. Por exemplo, em suas anotações sobre o psicólogo russo Vladimir Bekhterev, infelizmente não publicadas ainda, ele observa que a arte tem que mudar o reflexo condicionado provocado pelo contexto social e, particularmente, o espectador tem que ser desviado do reflexo condicionado de servidão e terror.

A ideia de que as pessoas não têm apenas um instinto, mas um condicionamento psicológico ao medo e à servidão, e de que temos que livrá-los de ambos é muito importante, principalmente no contexto da União Soviética da metade da década de 1920. Se examinarmos o trabalho de Eisenstein, quer dizer, o rumo que toma, vemos as pessoas se livrando da reação automática de medo quando se deparam com a violência e o terror.

De Statchka / A greve até Ivan, o terrível, tanto o assunto quanto a estrutura dos filmes podem ser vistos como uma espécie de vacina contra a reação condicionada ao medo e ao pânico. Claro que isso levanta a questão do tão propalado sadismo de Eisenstein: seria ele realmente um sádico? Muito pelo contrário, talvez estivesse querendo nos dar uma espécie de vacina contra o sadismo. Falarei da personalidade dele mais tarde, contudo, já ficou bem claro que o tipo de brutalidade que aparece em seu trabalho não tem nada a ver com qualquer espécie de sadismo per se. Isso é exemplo de um ponto que temos que reavaliar em nossa visão pré-estabelecida. Deixe-me dar outro: as ideias de Eisenstein quanto à representação no cinema.

Eisenstein fez várias declarações criticando a escola de atores “acadêmica”, e sabe-se o quanto ele realizou usando “tipos” em lugar de “atores” no cinema, tanto em seus filmes quanto em seus ensinamentos teóricos. É sabido que todos os integrantes do Prolektult em A greve. Em Bronienosets Potemkin / O encouraçado Potemkim, uniram-se atores do sindicato de Odessa a alguns atores de Prolektult. Quase todos os personagens da sequência da escadaria de Odessa eram atores. Em Oktiabr / Outubro, muitos atores vieram do sindicato de Leningrado. Até a procissão com a cruz em Staroie i Novoie ou Gueenralnaia Linnia / O velho e o novo ou A linha geral, foi realizada com atores de Outubro, porque os filmes foram feitos ao mesmo tempo. Há muito mais “atores” do que “tipos”. Temos que entender, portanto, que ele trabalhou com atores como “tipos” assim como trabalhou com “tipos” como atores.

Deixe-me dar outro exemplo para ilustrar esta relação entre teoria e prática. O primeiro artigo que Eisenstein escreveu “Vosmoe iskusstvo. Ob ekspressionizme, Amerike i, konechno, o Chapline / A oitava arte. Sobre o expressionismo, América e, é claro, Chaplin, assinado por ele e por Sergei Yutkevich e publicado em novembro de 1922 na revista Ekho, é uma crítica ao expressionismo alemão. Ele voltará a criticar o expressionismo alemão mais tarde, embora o contexto desta nova crítica seja mais complexo. Mas vejamos o impacto do expressionismo em Ivan, o terrível já foi pesquisado, por exemplo, no trabalho de Mira Meilakh Izobrazitel’naya stilistika pozdnikh fil’mov Einzenshteina / Imagem e estilo nos últimos filmes de Eisenstein, publicado em 1971. A palavra vyrazitel’nost’ / expressividade foi uma das favoritas de Eisenstein. Descobrimos uma anotação, mais uma vez infelizmente ainda não publicada, mas que, com certeza, vale a pena resumir aqui. É a única nota que Eisenstein escreveu enquanto montava O encouraçado Potemkin.

O título providencial é Representando com objetos e representando através dos objetos; é um texto incompleto, mas ele faz uma observação muito interessante: enquanto no teatro você tem a representação com um objeto, no cinema você tem a representação através do objeto. Em Potemkin, ele dá o nome de bytovoi ekspressioniszm / expressionismo cotidiano ao método em que o aspecto externo do objeto fica inalterado, mas vários esquemas expressivos são levantados com a finalidade de colocar o objeto em contextos diferentes. Esse “expressionismo cotidiano” é, em parte, um contraste e, em parte, uma continuação do objeto. Não é comum em Eisenstein, mas faz com que compreendamos suas afirmativas com mais clareza.

A outra questão que pretendo levantar é o contexto em torno de Eisenstein, muito mais complexo do que jamais suspeitamos. Tomemos a teoria da influência: quem influenciou quem? Quando procuramos influências, buscamos semelhanças e traços. Entretanto, quero propor um modelo um pouco diferente. Há uma série de fotografias conhecidas de La Sarraz com Eisenstein como Don Quixote, sentado em um cavalo, segurando uma câmera e uma lança na mão. Ele se compara a Don Quixote. Acredito que podemos fazer uma analogia com Pushkin, que sempre se imaginou como um cavaleiro, vestido como uma armadura brilhante, participando de um torneio. Isso é importante: um cavaleiro preparado para aceitar um desafio e lutar em um torneio. Portanto, quando falamos na influência de Byron em Pushkin, devemos imaginar a questão como Pushkin se preparando para aceitar o desafio de Byron; Pushkin se preparando para “enfrentar-se” com Byron, e não simplesmente para aceitar passivamente a influência deste. O mesmo se pode dizer da relação de Pushkin com seu professor Zhukovsky ou com seu amigo Vyazemsky.

Eisenstein sentia como se estivesse eternamente engajado em um torneio; é claro, no ideal medieval em que um torneio não é uma guerra, mas uma disputa amistosa. Isso começou com seu “torneio” com Meyerhold, que o levou a batalhas como a que assolou a produção Gato de botas – espetáculo, que seria dirigido por Eisenstein, em 1922, para o teatro de Meyerhold, mas não chegou a ser encenado.

Uma das expressões favoritas de Eisenstein era me too, assim, em inglês, “eu também”. Um dos capítulos de suas Memórias tem como título Mi tu. Mi tu era o nome do cachorro de Maxim Litvinov, que foi Ministro de Relações Exteriores da União Soviética entre 1930 e 1939. Sua mulher, Ivy Walterovna, dava aulas em inglês aos alunos do curso de cinema de Eisenstein. Neste breve capítulo de suas memórias, Eisenstein diz que o intrigava o estranho nome do cachorro, que desconhecia a origem de tal nome e sua significação exata, e que se fixava na sonoridade de seu nome. E escreve: “Seria um Mitou francês, um Mitu chinês? A mim sempre me pareceu inglês. Me too”.

Eisenstein faz então um jogo de palavras, porque My em russo quer dizer nós, e observa que Me too, então poderia ser compreendido como “eu também” e como “nós também”, Nós too, para concluir: “A fórmula Me too é uma das fórmulas básicas de minha atividade. Mais precisamente, é um dos impulsos dinâmicos de meu trabalho, um dos impulsos mais profundos que me levaram, e me levam ainda, a realizar tantas e tantas coisas. Portanto, Me too Nós também”. Essa não era a única expressão predileta de Eisenstein; that’s wrong, “isso está errado”, era outra de suas expressões favoritas. Isso é dialética no sentido clássico da palavra, a possibilidade de lutar ao mesmo tempo em que vê o outro lado da questão.

Deste modo, quando vemos o contexto a que pertenciam seus professores e seus amigos, podemos perceber como essa questão de quem influenciou quem é mais ampla do que se pensa. É conhecido o fascínio de Eisenstein pelo Construtivismo e pelo Cubismo, é sabido como esses movimentos foram importantes para ele, o que podemos comprovar em seus desenhos. Mas ao mesmo tempo, devemos nos lembrar de que ele é também filho do Simbolismo, do simbolismo russo de Blok, Bely e Ivanov; os ecos desses simbolistas o seguiram por toda a vida. Por exemplo, deveria haver um epílogo para Alexander Nevsky / Cavaleiros de ferro. Infelizmente, a censura de Stalin eliminou a morte de Alexander Nevsky do filme; mas no final, a vitória dos tártaros em Kulikovo Polye, é tirado diretamente de um poema de Blok.

Ao longo da vida de Eisenstein, podemos encontrar os elementos conscientes e inconscientes da época que o formou e da qual surgiu. Isso também se aplica a Nikolai Evreinov, escritor, diretor e teórico de teatro, que em 1920 fez um filme sobre a Revolução de Outubro em Petrogrado. Devemos lembrar da influência de Evreinov quando falamos de Joyce e o “monólogo interior”, e da influência que isso teve em Eisenstein.

Mas ainda há contextos inusitados para Eisenstein: como, por exemplo, o cinema internacional. Até agora subestimamos a influências de sucessos como The Exploits of Elaine, filme norte americano feito em 1915 por Louis Gasnier e Douglas Mackenzie, com Pearl White. E a influência dos cinco filmes da série Fantômas de Louis Feuillade, feitos em 1913, e exibidos como sucesso por toda Europa, inclusive na Rússia; mas eles foram muito importantes. Em 1987 Alan Upchurch estava buscando uma capa para a primeira edição de seu Psychology of Composition, coletânea de ensaios que traduziu e organizou entre eles um texto de Eisenstein sobre o ensino de cinema na GIK, A Detective Work / Um trabalho de detetive quando se deparou com uma foto do segundo filme da série Fantômas, Juve contre Fantômas, na qual o mundo do crime espia por um buraco do barril e, imediatamente, lembrou-se da cena de A greve, em que os grevistas espiam através de um barril! Esses “torneios”, ou túneis que ligam as culturas de países diferentes, são importantíssimos para compreendermos Eisenstein.

Se lembrarmos da cena do Vale da Morte no final de Greed, de Enrich von Stroheim, 1925, vemos que o cenário de Sutter’s Gold / O ouro de Sutter, que Eisenstein escreveu em colaboração com Ivor Montagu e Grigori Alexandrov em 1930, começa a mesma maneira. Isso não é coincidência: é apenas a continuação e a releitura de um mesmo fenômeno partindo de outro país, de outro contexto. Ou, tomemos um caso famoso como o de Tchapayev, filme de Sergei e Georgy Vasiliev feito em 1934. Nos anos 30, toda a gente de cinema na União Soviética dizia que a cena do “ataque psicológico” de Tchapayev era superior à sequência da escadaria de Odessa. Então, Eisenstein escreveu a cena da batalha em Alexander Nevsky para demonstrar como um ataque psicológico poderia mesmo ser feito. Ele foi ainda mais longe para combater os estudantes que estavam se afastando dele. Há uma cena em Tchapayev em que são usadas batatas para mostrar onde um comandante devia estar e uma cena em Ivan o terrível em que, em resposta ao trágico Vladimir Staritsky, Ivan diz: “O czar sempre deve estar na frente!” Isso é uma resposta, não somente a Tchapayev, mas também aos seus próprios alunos sobre onde um líder deve estar. É um momento profundamente autobiográfico.

Tenho que deixar de lado muitas coisas, porém sinto que devo falar sobre o que podemos chamar de seus “antepassados”, ao invés de seus predecessores ou conselheiros diretos. Temos visões estereotipadas sobre as influências de Zola ou Leonardo da Vinci. Mas por que não damos atenção a Ben Jonson, a quem Eisenstein apontava como um de seus professores? As teorias do humor e a composição linear da dramaturgia de Jonson foram muito importantes para Eisenstein. Também ignoramos completamente a influência das peças medievais de mistério.

Em Moscou, conseguimos reconstituir o artigo de Eisenstein sobre Gogol e a linguagem cinematográfica, que é uma espécie de complemento de seus artigos sobre Pushkin. Eisenstein diz que Gogol é tão seu pai quanto Pushkin. O que ele não menciona no artigo, mas que está mais do que claro, é que uma das imagens de Bejin Lovii / O prado de Benjin, parece ser uma referência direta a uma cena de Taras Bulba de Gogol. Quando Stepok, que já está mortalmente ferido cai lá do alto ꟷ são três estágios, três tomadas separadas ꟷ temos uma referência direta a Gogol, porque há uma passagem em que Eisenstein discute o momento em que o pai atira no filho e este cai como um feixe de trigo cortado. Se pensarmos no conjunto de imagens bíblicas em O prado de Bejin, podemos perceber o quanto é importante a imagem do trigo caindo ao chão.

Outro fator relevante é a própria personalidade de Eisenstein, que precisamos discernir melhor. Existiam até a pouco apenas as muitas lendas dos anos 1930 sobre ele, mas agora novas lendas estão surgindo. É normal surgirem lendas sobre grandes artistas. Por exemplo, uma das imagens surgidas recentemente é a de um Eisenstein conformista, estudante aplicado, que somente ultrapassou o limite da ordem imposta a ele porque era um gênio. A evidência citada é a de sua decisão de encenar As Valquírias / Die Walküre em 1939 pouco depois do pacto Nazi-soviético.

No entanto, ele não concordou em produzir Die Walküre porque estava com medo. Para falar a verdade, sabemos agora muito mais sobre a produção devido às novas pesquisas sobre ela. Eu percebi como somos cuidadosos ao abordarmos um assunto que nos parece eticamente ambíguo! Mas quando botamos a mão na massa e abrimos os arquivos de Die Walküre, concluímos que ele dava um tratamento antifascista a um assunto que os fascistas acreditavam ser fascista em si. Foram compaixão e humanidade que brotaram da interpretação do cineasta. Sabemos que o tema da compaixão não era exatamente prioridade máxima no final dos anos 30.

Há muito preconceito que temos que partilhar ao abordarmos seu trabalho e há áreas que nem começamos a estudar. Sabemos muito pouco sobre o trabalho em teatro de Eisenstein e agradeço a contribuição de Robert Leach nesse campo, o ensaio Eisenstein’s Theatre Work no livro Eisenstein Rediscovered organizado por Ian Christie e Richard Taylor. Subitamente, a questão da ética de Eisenstein surgiu. O fato de que ética é uma palavra profundamente ambígua é importante para nosso trabalho. Temos que incluí-la ao lado das pesquisas puramente cinematográficas. Seu trabalho como professor também tem importância nessas pesquisas.

É fácil perceber que muito ainda está por se publicar sobre Eisenstein. E de Eisenstein. E isso é de nossa responsabilidade. É nossa responsabilidade e nosso erro que tão pouco do trabalho de Eisenstein tenha sido publicado até agora, e que isso seja feito tão vagarosamente. Talvez o mais importante a ser selecionado para publicação são seus diários e o texto final de A natureza não-indiferente e Métodos, este último um projeto apenas esboçado por Eisenstein e que está começando a tomar forma a partir da organização de seus escritos.

Eisenstein é sem dúvida, para todos nós que lidamos com cinema, mais do que uma influência, mais do que um estilo ou um modo de pensar cinema que um ou outro jovem realizador procura seguir. Ele é uma fonte de inspiração constante, tão viva que, como observou David Robinson em nosso encontro, chega a parecer absurdo estarmos comemorando seu centenário de nascimento e os cinqüenta anos de sua morte. Ele está mais presente que nunca no melhor que o cinema faz hoje. Chegou a hora de trabalharmos juntos. Talvez também tenha chegado a hora de um sonho se tornar realidade, de não termos apenas a Casa de Eisenstein em Moscou mas de todos juntos organizarmos uma Sociedade Internacional de Eisenstein.

Gostaria de concluir mencionando a pessoa que fez mais do que ninguém para promover uma compreensão de Eisenstein, Jay Leyda. Ele sonhou com esta Sociedade e foi o primeiro a contribuir com ela. Gostaria que se lembrassem dele.

*Naum Kleiman é historiador e crítico de cinema. Curador da Casa de Eisenstein, foi diretor do Museu de Cinema de Moscou.

Comunicação apresentada no seminário Eisenstein Heute / Eisenstein hoje organizado pela Akademie der Künste de Berlin, durante o Festival Internacional de Cinema de Berlim em 1996.

Tradução: Taís Leal para a revista Cinemais 12 (jul-ago 1987).

Os 100 anos do PCB: um enorme coração vermelho que continua pulsando

Os 100 anos do PCB: um enorme coração vermelho que continua pulsando

Por Mauro Iasi

BLOG DA BOITEMPO

Nesta longa luta os comunistas aprenderam com a história a renascer sempre. Perseguidos, presos, mortos, viraram ossos e pedras, raízes e rios, memória e reconhecimento, terra e semente, até que germinaram novamente, para desespero dos algozes que tentam impedir o futuro. Nossa vingança é renascer.

Sua infância foi como de todas as crianças naquela época. Trabalhava mais de dez horas em uma fábrica escura, respirando a fuligem que tomava todo o ar do velho galpão. Seus pais eram camponeses e vieram de outras partes do mundo, fugindo da guerra ou da fome, embrulharam seus pertences em grossos panos pretos e embarcaram em navios lotados de medo e esperança.

Não se via muito à frente na grossa neblina que a proa do navio cortava na noite. Por conta da cor da noite, da lembrança dos mortos, do vestido das mulheres de aço e flor, costurou-se uma bandeira negra e sob ela se lutava e cantavam cânticos antigos de outras lutas contra a exploração.

É possível mudar o mundo, fazer um mundo de todos, precisamos de ferramentas, de terra, de trigo e de nossos braços, sem governo e sem patrões, onde o amor habite o coração dos homens e não as alturas inatingíveis de um céu povoado por mortos. Nos ajudávamos, cuidávamos dos doentes e das viúvas, nos reuníamos nos parques para falar de nossos sonhos libertários e dos caminhos para construir futuros feitos de pão, vinho e liberdade. Fomos anarquistas.

Corria o ano de 1917. Clamávamos por salários dignos, jornadas de trabalho de oito horas, proibição do trabalho de crianças. A resposta dos poderosos era o sabre e as balas. Balas que assassinaram o sapateiro pobre e seu sangue nos uniu a todos. A cidade, por um tempo, foi nossa e escrevemos em uma grande faixa: “aquele que não trabalha, não come”. O negro de nossos casacos puídos e dos vestidos antiquados, misturou-se às costas lanhadas por chibatas, eles também transportados em navios de medo, também eles, negra e secular resistência. E gritamos: basta!

Corria o ano de 1917. Do outro lado do mundo também se ouvia os gritos da revolta, foice ceifando o passado para transformá-lo em pão, martelos forjando o aço elevando faíscas brilhantes que se transformavam em estrelas costuradas no corpo negro da noite. Nós os ouvíamos, como um eco distante de nós mesmos, como se ao atravessar oceanos desde a África ou da Europa fossemos deixando pelas águas revoltas uma linha invisível que nos unia, feita de lágrimas e sangue, de luta e esperança. Aqui se ouvia basta, lá se ouviu o grande estrondo de uma velha ordem ruindo, com seus reis e castelos, com seus místicos conselheiros e generais com uniformes cheios de galeões e medalhas. O mundo podia mudar. Não era apenas a substituição de mantos reais por cartolas e fraques, eram operários e camponeses, soldados e marinheiros, mulheres e homens, povos com línguas e feições distintas que se levantavam para construir seu próprio mundo livre dos exploradores.

Aqui e lá o sangue correu mais uma vez. Lá para receber o futuro e fertilizar o solo para o plantio, aqui para coagular sob velhas feridas e deixar em nossa carne novas cicatrizes. Aqui não foi o futuro que veio, mas um passado renitente e ardiloso, mais uma vez as prisões, mais uma vez o desterro. Muitos foram presos em navios. Parece que navios fazem parte de nossa sina, navegamos sempre acorrentados, sempre levados a outro mundo que não será nosso e não será novo.

Mas, o sol nascia no oriente. Podíamos sentir seu calor expulsando as trevas. O sangue fluía pelas linhas invisíveis que traçamos no mapa, como se o mundo fosse um só corpo, como se nossa voz proclamasse um só idioma em várias línguas, como se ao mesmo tempo em que estávamos ainda presos aqui, estávamos livres lá longe depois dos mares que nos trouxeram. Sorvemos o vinho tinto do nosso sangue distante, indagamos por seus caminhos e olhamos para nossos passos. Enquanto o escuro da noite ia se desfazendo diante de uma aurora radiante, tingindo nuvens, mares e montes com seu profundo escarlate, levantamos nossas bandeiras e elas eram vermelhas. Nelas não haviam brasões, dragões ou leões, nem flor de lis, nem cruzes, linhas britânicas, utopias francesas ou listras americanas, era apenas um enorme coração vermelho do tamanho do planeta. Bordamos nela dois instrumentos de trabalho com que ceifávamos e forjávamos, uma foice camponesa e um martelo operário. Nos tornamos comunistas.

Corria o ano de 1922. Sentíamos em nossas entranhas o novo germinando inquieto. Operários erguendo suas cabeças orgulhosos, jovens exercendo o sagrado crime da recusa, soldados marchando não mais em nome de seus generais, poetas reinventando as palavras, pintoras criando as formas e cores de outro mundo que não aquele que morria, músicas, a eterna rebeldia do som se recriando em novas melodias costuradas pelas velhas notas. Queríamos ser modernos, abaixo os arcaísmos oligárquicos, suas vestes e seus casarões, abaixo o burguês funesto.

Corria o ano de 1922. Trabalhadores se reúnem em Niterói e proclamam: somos parte deste sonho e desta luta, nós os acompanharemos pela trilha da emancipação, somos parte da humanidade e nosso compromisso é libertá-la da opressão e da miséria, somos parte do mundo que abrindo os olhos reconheceu seus grilhões e conseguiu ver as ferramentas para rompê-los, o sabemos em nossa carne e nosso sangue, mas aprenderemos em nossas consciências desvendando as determinações do mundo para além das aparências que as escondem; somos marxistas, somos comunistas. E assim se fizeram parte, se fizeram partido e nasceu o PCB, Seção Brasileira da Internacional Comunista.

Corriam os anos. O primeiro candidato operário à presidência da República, Minervino de Oliveira, operário marmorista negro e comunista. O Bloco Operário e Camponês, sindicatos e associações, campanhas e lutas, perseguições e ódio, clandestinidade, prisões e mortes acolhidas pelo imenso coração vermelho de nossa bandeira.

Em um ano como este, um tenente se rebela e percorre o que ainda não era um país. Revela-se a miséria e a fome que as cortinas oligárquicas escondiam. Cavalga sem nunca ser derrotado empunhando nossa esperança até que encontrou nossa bandeira. Luiz Carlos Prestes agora é um comunista, para nunca mais deixar de sê-lo, agora a esperança é comunista e percorrerá aquilo que quer ser e será um país.

Corriam os anos. Corriam as décadas. Lutas, resistência, clandestinidade, heróis e mártires, ditaduras e democracias. Um enorme coração vermelho pulsa como uma esperança que acolhe os que sofrem e lutam e como é um coração acolhe poetas e pintores, artistas e intelectuais. As veias espalhadas pelo corpo do mundo nos fazem uma só classe.

Os comunistas olham o mundo que querem mudar. Os comunistas procuram entender o mundo que precisa ser mudado. Os comunistas lutam para mudar o mundo. “Os comunistas guardam sonhos”. Nesta longa luta os comunistas aprenderam com a história a renascer sempre. Perseguidos, presos, mortos, os comunistas viraram ossos e pedras, raízes e rios, memória e reconhecimento, terra e semente, até que germinaram novamente, para desespero dos algozes que tentam impedir o futuro. Nossa vingança é renascer.

E correu um século, com todos seus minutos e horas, seus dias e meses, seus anos e décadas. Nós comunistas estávamos em cada segundo deste século. Cem anos e nós estamos aqui. Nossos carrascos estão sepultados sob tumbas majestosas, seus nomes ostentam cidades sujas e avenidas frias enquanto suas almas apodrecem na ignomínia. Os comunistas renascem em seu grande coração vermelho e suas ferramentas de trabalho. Nosso corpo conhece o frio da noite, mas também a certeza da aurora, nossos olhos viram as trevas da morte, mas também a alegria da vida, a dor de derrotas e o sabor das vitórias, carregamos em nossa bagagem nossas glórias e desacertos, crimes e desvios que não esquecemos para não repeti-los. Nosso corpo é o planeta e nossa alma a humanidade.

Começou um novo século. Os comunistas se reúnem e olham o mundo. Perguntam-se: ainda há exploração? Aqueles que trabalham são privados da riqueza que produzem por uma classe de parasitas? O mundo e a humanidade estão em perigo diante da exploração do capital e seus senhores? Então inúmeras veias espalhadas pelo corpo do planeta bombeiam sangue em um velho coração e levantamos nossa estandarte vermelho com uma foice e um martelo, nos preparamos para mais 100 anos e repetimos com nosso amado arquiteto comunista: “enquanto houver miséria e opressão, ser comunista é a nossa decisão”.

Viva os 100 anos do PCB!

Fundadores do Partido Comunista Brasileiro (PCB), em março de 1922. De pé, da esquerda para a direita: Manuel Cendon, Joaquim Barbosa, AstroJildo Pereira, João da Costa Pimenta, Luís Peres e José Elias da Silva; sentados, da esquerda para a direita: Hermogênio Silva, Abílio de Nequete e Cristiano Cordeiro.

Quando e por que nascemos, por Mauro Iasi
Não sei quantos anos temos.
Sei que festejamos hoje 100 anos
porque nascemos em 1922.
Mas, talvez tenha sido antes,
talvez tenhamos nascido em 1917
quando os trabalhadores russos
iniciaram a construção do futuro,
ou foi em 1919 quando na Internacional
sonhamos sonhos planetários.
Talvez tenha sido antes ainda.
Em 1871, na Paris Revolucionária da Comuna
ou em 1848, quando os trabalhadores
levantaram-se para falar com sua própria voz.
Não sei, mas talvez tenha sido antes.
Quando dois alemães se encontraram
e viram o mundo através de nossos olhos
nos mostrando o caminho da emancipação.
Mas talvez não.
Talvez tenha sido há muito mais tempo:
quando um trabalhador
olhou para suas mãos
e percebeu que não eram mais suas mãos.
Quando olhou para seus pés e viu
que a terra não era mais a sua terra.
Não sei, mas acredito que foi ali que nascemos.
Talvez por isso é que nascemos.
Talvez por isso vivemos tanto tempo.
Talvez por isso resistimos.
Talvez por isso estejamos aqui hoje
para dizer aos trabalhadores:
— Olha, esta são suas mãos,
são seus os produtos do trabalho.
— Olha, esta é tua terra,
são nossos seus frutos.
— Coragem, levanta a cabeça e veja:
olha este sol que se insinua
por trás das nuvens que o escondia.
Não há noite tão longa que derrote o dia.
Veja como tinge de vermelho o universo.
— Levanta tua mão, camarada, assim…
agora fecha o punho, isso…
Lembra como era aquela canção?
Coragem, vocês nunca estarão sozinhos
Porque aqui estamos camaradas.
Por isso nascemos.
Por isso lutamos tanto.
Por isso sobrevivemos.
É por vocês camaradas
que fomos, que somos, que seremos
sempre
Comunistas!

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Confira o último Café Bolchevique, coluna mensal de Mauro Iasi na TV Boitempo, em que ele comenta os 100 anos do PCB e a atualidade da luta comunista:

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Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas. Na TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.