Os 100 anos do PCB: um enorme coração vermelho que continua pulsando

Os 100 anos do PCB: um enorme coração vermelho que continua pulsando

Por Mauro Iasi

BLOG DA BOITEMPO

Nesta longa luta os comunistas aprenderam com a história a renascer sempre. Perseguidos, presos, mortos, viraram ossos e pedras, raízes e rios, memória e reconhecimento, terra e semente, até que germinaram novamente, para desespero dos algozes que tentam impedir o futuro. Nossa vingança é renascer.

Sua infância foi como de todas as crianças naquela época. Trabalhava mais de dez horas em uma fábrica escura, respirando a fuligem que tomava todo o ar do velho galpão. Seus pais eram camponeses e vieram de outras partes do mundo, fugindo da guerra ou da fome, embrulharam seus pertences em grossos panos pretos e embarcaram em navios lotados de medo e esperança.

Não se via muito à frente na grossa neblina que a proa do navio cortava na noite. Por conta da cor da noite, da lembrança dos mortos, do vestido das mulheres de aço e flor, costurou-se uma bandeira negra e sob ela se lutava e cantavam cânticos antigos de outras lutas contra a exploração.

É possível mudar o mundo, fazer um mundo de todos, precisamos de ferramentas, de terra, de trigo e de nossos braços, sem governo e sem patrões, onde o amor habite o coração dos homens e não as alturas inatingíveis de um céu povoado por mortos. Nos ajudávamos, cuidávamos dos doentes e das viúvas, nos reuníamos nos parques para falar de nossos sonhos libertários e dos caminhos para construir futuros feitos de pão, vinho e liberdade. Fomos anarquistas.

Corria o ano de 1917. Clamávamos por salários dignos, jornadas de trabalho de oito horas, proibição do trabalho de crianças. A resposta dos poderosos era o sabre e as balas. Balas que assassinaram o sapateiro pobre e seu sangue nos uniu a todos. A cidade, por um tempo, foi nossa e escrevemos em uma grande faixa: “aquele que não trabalha, não come”. O negro de nossos casacos puídos e dos vestidos antiquados, misturou-se às costas lanhadas por chibatas, eles também transportados em navios de medo, também eles, negra e secular resistência. E gritamos: basta!

Corria o ano de 1917. Do outro lado do mundo também se ouvia os gritos da revolta, foice ceifando o passado para transformá-lo em pão, martelos forjando o aço elevando faíscas brilhantes que se transformavam em estrelas costuradas no corpo negro da noite. Nós os ouvíamos, como um eco distante de nós mesmos, como se ao atravessar oceanos desde a África ou da Europa fossemos deixando pelas águas revoltas uma linha invisível que nos unia, feita de lágrimas e sangue, de luta e esperança. Aqui se ouvia basta, lá se ouviu o grande estrondo de uma velha ordem ruindo, com seus reis e castelos, com seus místicos conselheiros e generais com uniformes cheios de galeões e medalhas. O mundo podia mudar. Não era apenas a substituição de mantos reais por cartolas e fraques, eram operários e camponeses, soldados e marinheiros, mulheres e homens, povos com línguas e feições distintas que se levantavam para construir seu próprio mundo livre dos exploradores.

Aqui e lá o sangue correu mais uma vez. Lá para receber o futuro e fertilizar o solo para o plantio, aqui para coagular sob velhas feridas e deixar em nossa carne novas cicatrizes. Aqui não foi o futuro que veio, mas um passado renitente e ardiloso, mais uma vez as prisões, mais uma vez o desterro. Muitos foram presos em navios. Parece que navios fazem parte de nossa sina, navegamos sempre acorrentados, sempre levados a outro mundo que não será nosso e não será novo.

Mas, o sol nascia no oriente. Podíamos sentir seu calor expulsando as trevas. O sangue fluía pelas linhas invisíveis que traçamos no mapa, como se o mundo fosse um só corpo, como se nossa voz proclamasse um só idioma em várias línguas, como se ao mesmo tempo em que estávamos ainda presos aqui, estávamos livres lá longe depois dos mares que nos trouxeram. Sorvemos o vinho tinto do nosso sangue distante, indagamos por seus caminhos e olhamos para nossos passos. Enquanto o escuro da noite ia se desfazendo diante de uma aurora radiante, tingindo nuvens, mares e montes com seu profundo escarlate, levantamos nossas bandeiras e elas eram vermelhas. Nelas não haviam brasões, dragões ou leões, nem flor de lis, nem cruzes, linhas britânicas, utopias francesas ou listras americanas, era apenas um enorme coração vermelho do tamanho do planeta. Bordamos nela dois instrumentos de trabalho com que ceifávamos e forjávamos, uma foice camponesa e um martelo operário. Nos tornamos comunistas.

Corria o ano de 1922. Sentíamos em nossas entranhas o novo germinando inquieto. Operários erguendo suas cabeças orgulhosos, jovens exercendo o sagrado crime da recusa, soldados marchando não mais em nome de seus generais, poetas reinventando as palavras, pintoras criando as formas e cores de outro mundo que não aquele que morria, músicas, a eterna rebeldia do som se recriando em novas melodias costuradas pelas velhas notas. Queríamos ser modernos, abaixo os arcaísmos oligárquicos, suas vestes e seus casarões, abaixo o burguês funesto.

Corria o ano de 1922. Trabalhadores se reúnem em Niterói e proclamam: somos parte deste sonho e desta luta, nós os acompanharemos pela trilha da emancipação, somos parte da humanidade e nosso compromisso é libertá-la da opressão e da miséria, somos parte do mundo que abrindo os olhos reconheceu seus grilhões e conseguiu ver as ferramentas para rompê-los, o sabemos em nossa carne e nosso sangue, mas aprenderemos em nossas consciências desvendando as determinações do mundo para além das aparências que as escondem; somos marxistas, somos comunistas. E assim se fizeram parte, se fizeram partido e nasceu o PCB, Seção Brasileira da Internacional Comunista.

Corriam os anos. O primeiro candidato operário à presidência da República, Minervino de Oliveira, operário marmorista negro e comunista. O Bloco Operário e Camponês, sindicatos e associações, campanhas e lutas, perseguições e ódio, clandestinidade, prisões e mortes acolhidas pelo imenso coração vermelho de nossa bandeira.

Em um ano como este, um tenente se rebela e percorre o que ainda não era um país. Revela-se a miséria e a fome que as cortinas oligárquicas escondiam. Cavalga sem nunca ser derrotado empunhando nossa esperança até que encontrou nossa bandeira. Luiz Carlos Prestes agora é um comunista, para nunca mais deixar de sê-lo, agora a esperança é comunista e percorrerá aquilo que quer ser e será um país.

Corriam os anos. Corriam as décadas. Lutas, resistência, clandestinidade, heróis e mártires, ditaduras e democracias. Um enorme coração vermelho pulsa como uma esperança que acolhe os que sofrem e lutam e como é um coração acolhe poetas e pintores, artistas e intelectuais. As veias espalhadas pelo corpo do mundo nos fazem uma só classe.

Os comunistas olham o mundo que querem mudar. Os comunistas procuram entender o mundo que precisa ser mudado. Os comunistas lutam para mudar o mundo. “Os comunistas guardam sonhos”. Nesta longa luta os comunistas aprenderam com a história a renascer sempre. Perseguidos, presos, mortos, os comunistas viraram ossos e pedras, raízes e rios, memória e reconhecimento, terra e semente, até que germinaram novamente, para desespero dos algozes que tentam impedir o futuro. Nossa vingança é renascer.

E correu um século, com todos seus minutos e horas, seus dias e meses, seus anos e décadas. Nós comunistas estávamos em cada segundo deste século. Cem anos e nós estamos aqui. Nossos carrascos estão sepultados sob tumbas majestosas, seus nomes ostentam cidades sujas e avenidas frias enquanto suas almas apodrecem na ignomínia. Os comunistas renascem em seu grande coração vermelho e suas ferramentas de trabalho. Nosso corpo conhece o frio da noite, mas também a certeza da aurora, nossos olhos viram as trevas da morte, mas também a alegria da vida, a dor de derrotas e o sabor das vitórias, carregamos em nossa bagagem nossas glórias e desacertos, crimes e desvios que não esquecemos para não repeti-los. Nosso corpo é o planeta e nossa alma a humanidade.

Começou um novo século. Os comunistas se reúnem e olham o mundo. Perguntam-se: ainda há exploração? Aqueles que trabalham são privados da riqueza que produzem por uma classe de parasitas? O mundo e a humanidade estão em perigo diante da exploração do capital e seus senhores? Então inúmeras veias espalhadas pelo corpo do planeta bombeiam sangue em um velho coração e levantamos nossa estandarte vermelho com uma foice e um martelo, nos preparamos para mais 100 anos e repetimos com nosso amado arquiteto comunista: “enquanto houver miséria e opressão, ser comunista é a nossa decisão”.

Viva os 100 anos do PCB!

Fundadores do Partido Comunista Brasileiro (PCB), em março de 1922. De pé, da esquerda para a direita: Manuel Cendon, Joaquim Barbosa, AstroJildo Pereira, João da Costa Pimenta, Luís Peres e José Elias da Silva; sentados, da esquerda para a direita: Hermogênio Silva, Abílio de Nequete e Cristiano Cordeiro.

Quando e por que nascemos, por Mauro Iasi
Não sei quantos anos temos.
Sei que festejamos hoje 100 anos
porque nascemos em 1922.
Mas, talvez tenha sido antes,
talvez tenhamos nascido em 1917
quando os trabalhadores russos
iniciaram a construção do futuro,
ou foi em 1919 quando na Internacional
sonhamos sonhos planetários.
Talvez tenha sido antes ainda.
Em 1871, na Paris Revolucionária da Comuna
ou em 1848, quando os trabalhadores
levantaram-se para falar com sua própria voz.
Não sei, mas talvez tenha sido antes.
Quando dois alemães se encontraram
e viram o mundo através de nossos olhos
nos mostrando o caminho da emancipação.
Mas talvez não.
Talvez tenha sido há muito mais tempo:
quando um trabalhador
olhou para suas mãos
e percebeu que não eram mais suas mãos.
Quando olhou para seus pés e viu
que a terra não era mais a sua terra.
Não sei, mas acredito que foi ali que nascemos.
Talvez por isso é que nascemos.
Talvez por isso vivemos tanto tempo.
Talvez por isso resistimos.
Talvez por isso estejamos aqui hoje
para dizer aos trabalhadores:
— Olha, esta são suas mãos,
são seus os produtos do trabalho.
— Olha, esta é tua terra,
são nossos seus frutos.
— Coragem, levanta a cabeça e veja:
olha este sol que se insinua
por trás das nuvens que o escondia.
Não há noite tão longa que derrote o dia.
Veja como tinge de vermelho o universo.
— Levanta tua mão, camarada, assim…
agora fecha o punho, isso…
Lembra como era aquela canção?
Coragem, vocês nunca estarão sozinhos
Porque aqui estamos camaradas.
Por isso nascemos.
Por isso lutamos tanto.
Por isso sobrevivemos.
É por vocês camaradas
que fomos, que somos, que seremos
sempre
Comunistas!

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Confira o último Café Bolchevique, coluna mensal de Mauro Iasi na TV Boitempo, em que ele comenta os 100 anos do PCB e a atualidade da luta comunista:

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Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas. Na TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.