Encontros com Fidel. Testemunho de François Houtart.

Por François Houtart, professor do Instituto de Altos Estudos Nacionais (Equador), em artigo publicado por Rebelión

Revista IHU On-line

19 de janeiro de 2017

É difícil responder a um pedido de memórias pessoais a respeito de uma personalidade como Fidel sem cair no defeito de falar mais da pessoa que do personagem. No entanto, é o desafio que aceitei. Meu primeiro contato com Cuba data de antes da revolução, em março de 1953, durante um congresso da JOC. Depois de 1959, foi à ilha mais de cinquenta vezes, encontrando-me com Fidel em dez ocasiões. Segue a ordem cronológica enriquecida com reflexões sobre o contexto geral.

Veja o artigo.

Meu primeiro encontro com Fidel foi o mais inesperado. Em minha segunda viagem a Cuba, depois da revolução, quando da morte do Papa João XXIII, para a qual foi declarado o luto de três dias, tive várias reuniões com membros da Igreja Católica, muito traumatizados pelos acontecimentos. A maior parte dos clérigos era espanhola e para eles, tratava-se de uma nova versão da guerra civil. O encarregado de negócios da Santa Sede, Monsenhor Zacchi, a quem tinha conhecido na Colômbia, mantinha boas relações com Fidel, o que lhe valeu a hostilidade da maioria do episcopado. Como seu secretário, canadense do Quebec, estava de férias, me pediu que o ajudasse com sua correspondência no idioma francês. No domingo, fomos a Varadero, que não era a praia turística de hoje, à casa de um médico de seus amigos, para nadar no mar do Caribe. Pequenas embarcações de segurança passavam e voltavam a passar, deixando um odor desagradável de petróleo, quando da casa ao lado, Fidel saiu preparando-se para ir a pescar, depois de uma viagem à URSS. Reconhecendo o núncio, Fidel fez um sinal amistoso, ao qual o Monsenhor Zacchi respondeu, envergonhado por não levar sua cruz peitoral!

A sociología da religião

Em 1986, no começo do degelo ideológico, após o período de uma importante presença soviética, alguns intelectuais marxistas persuadiram as autoridades políticas da importância para os quadros do partido de uma reflexão sociológica sobre a religião. De fato, em contato com os cristãos ativos nos movimentos revolucionários da América Central e com os teólogos da libertação, não podiam aceitar que a linha oficial fosse considerar a religião apenas como o ópio do povo.

Durante 15 dias, minha colega Genevieve Lemercinier e eu compartilhamos este ensinamento, para chegar à conclusão de que, em muitos casos, a religião era um calmante contra as revoltas populares, porém que também podia constituir uma motivação ética para um compromisso revolucionário.

O curso foi gravado e publicado em um volume que tive a oportunidade de entregar a Fidel. “Efetivamente, me disse, devo me colocar em dia com esse campo”. Pouco antes, tinha concedido uma longa entrevista a Frei Betto, o dominicano brasileiro, que a publicou sob o título de Fidel e a Religião, obra que vendeu em Cuba mais de um milhão de cópias. No ano seguinte ao curso, o Congresso do Partido suprimiu os artigos de seu regulamento que impedia os crentes de qualquer filiação.

Esta sucessão de acontecimentos teve lugar em meados da década de 80, quando já começada o declínio da União Soviética. Depois da crise dos mísseis, em 1962, sua presença em Cuba demonstrou ser muito importante. Com a garantia de que os EUA não invadiriam a ilha e com o apoio econômico do país pertencente ao COMECOM, a União Soviética era um pilar essencial para a sobrevivência do país. Isto explica sua influência política e ideológica: a reorientação da economia e o prolongamento do monocultivo do açúcar para o abastecimento dos países socialistas; a formação de uma burocracia estatal conforme o modelo da nomenclatura soviética; os livros escolares traduzidos do russo; o “período cinza” para os intelectuais cubanos; os investigadores isolados dos centros de estudo do Partido; a eliminação do grupo e da revista Pensamiento Crítico [Pensamento Crítico]; o alinhamento com a União Soviética na intervenção em Praga, etc. Este foi, sem lugar para dúvidas, o preço a pagar para não desaparecer como sociedade socialista em um oceano capitalista, a menos de 200 Km de distância das costas dos Estados Unidos.

No entanto, nunca existiu uma submissão completa, a tal ponto que em algum momento os soviéticos pensaram em desfazer-se de Fidel. O espírito de José Martí, escritor e filósofo cubano de finais do século XIX, morto na guerra de independência contra os espanhóis, continuava vivendo no seio de um povo orgulhoso de sua soberania.

O terrorismo

Nos anos 90, o terrorismo estava na ordem do dia. Fidel convocou uma reunião sobre o tema. Cheguei pela tarde do primeiro dia e me dei conta da confusão existente sobre o conceito. Posto que falaria no dia seguinte pela manhã no pleno, passei quase a noite toda trabalhando sobre o conceito de terrorismo. Quando entrei na sala do Centro de Convenções, me convidaram para tomar um café na parte traseira do palco. Fidel também chegou e me disse: “O terrorismo é inaceitável em qualquer campo que seja, palestinos ou chechenos. Creio que posso afirmar que durante a campanha que fizemos de Serra Maestra a Havana, nunca matamos um civil”. Isto coincidia com o enfoque que ia defender e me tranquilizou. Ao final do seminário, com um grupo reduzido, incluindo Abel Prieto, ministro da Cultura, em um jantar com Fidel que se prolongou até as primeiras horas do dia seguinte, redigimos um texto incluindo, em particular, o conceito de terrorismo de Estado, que destacava por sua ausência na definição das Nações Unidas.

Efetivamente, o adversário fundamental continuava sendo os Estados Unidos, sobretudo a partir da nacionalização das companhias açucareiras e das refinarias de petróleo. A resposta não se fez esperar: um embargo econômico que durante os últimos 50 anos custou ao país mais de 750 bilhões de dólares e cujas consequências se infiltraram em todos os setores da vida social e individual: fim de muitas importações, sanções enormes a empresas ou bancos estrangeiros que não respeitavam as normas norte-americanas, dificuldades de acesso à internet (monopólio de empresas do Norte), serie de medidas chegando inclusive ao confisco de prêmios científicos outorgados a cubanos. Uma intensa atividade ideológica acompanhava estas disposições: financiamento das rádios da oposição de Miami (Rádio Martí) inundando o país com programas contra o governo, dezenas de milhões de dólares outorgados a cada ano pelo Congresso oficialmente ou em segredo pelas agências de inteligência aos opositores ao regime, fora ou dentro do país.

A isto se somaram as ações violentas: disseminação de produtos químicos para destruir os cultivos; atos terroristas em hotéis da ilha; bombardeio dos portos; explosão de um avião de passageiros em pleno voo; tentativa de invasão (Baía dos Porcos). Tudo isto custou a vida de mais de 3.000 cubanos durante os vinte primeiros anos da revolução. E, por último, dezenas de tentativas de assassinato contra Fidel, frustrados pelos serviços secretos do país. Ainda que em Cuba, uma ilha, exista a tendência de desenvolver teorias de conspiração, o fato é que não se luta contra o imperialismo com repelentes de mosquitos. Reforçou-se o papel do exército e mais uma vez foi um “socialismo de guerra” que teve de ser instalado.

A visita do Papa João Paulo II

Durante a visita papal, o governo convidou um grupo de quatro pessoas para acompanhar o evento, Frei Betto, Giulio Girardi, filósofo e teólogo da libertação italiano, Pedro de Assis, sociólogo da religião brasileiro e antigo aluno de Lovaina, e eu. No dia seguinte da partida do Papa, Fidel nos convocou para um jantar com toda sua equipe: o vice-presidente, o primeiro ministro, o secretário pessoal, futuro chanceler, os responsáveis pelos setores das religiões da América Latina, do pensamento político.

Estava visivelmente satisfeito: “Uma visita de vários dias, os discursos do Papa retransmitidos diretamente por todos os meios de comunicação, centenas de milhares de pessoas nas praças, mais de 3.000 jornalistas, um serviço de segurança sem armas (nem uma só pistola) e tudo transcorreu sem incidentes”, contou.

Alguns dias antes, passou quatro horas na televisão explicando o propósito da visita e sua admiração por João Paulo II, um homem esportista, Valente, moderno, com grandes conhecimentos e uma profunda convicção. “Porém, disse, é anticomunista. Temos que tentar compreender por que. O comunismo na Polônia não surgiu do povo, sendo imposto do exterior. Por outro lado, a Igreja Católica foi durante a história o baluarte da identidade nacional contra os suecos, os prussianos, os russos. Apesar de sua atitude, convidamos o Papa e ele poderá expressar-se como quiser. Se não gostarem, não reajam, porque ele é nosso anfitrião. Se alguns líderes revolucionários estiverem presentes nas cerimônias, não aplaudam porque são atos religiosos. De minha parte, estarei presente na missa na Praça da Revolución em Havana”.

Depois de sua introdução ao debate, no jantar, Fidel adotou um tom mais agressivo, sobre o problema provocado pelo arcebispo de Santiago, que quando apresentou o Papa, aproveitou a oportunidade para atacar o regime. Não foi sua opinião o que irritou Fidel, já que era bem conhecida, mas o descumprimento do acordo concluído com a Conferência Episcopal, prévia consulta mútua de 8 horas, para estabelecer todos os detalhes da visita do Papa, a qual precisava que nenhum incidente seria causado, nem por um lado e nem pelo outro. Para ele, tratou-se de uma falta de ética, que atribuiu a um acordo no seio da Conferência Episcopal.

Nesse ponto intervi: “Comandante, não é nada certo que se trate de uma distribuição das tarefas dentro do episcopado. A Igreja Católica não funciona como o Partido Comunista. Cada bispo é autônomo em sua diocese”. O jantar se prolongou até as duas da madrugada. No dia seguinte, me coloquei em contato com o padre Carlos Manuel de Céspedes, um antigo aluno meu e secretário da Conferência Episcopal durante muito tempo. Confirmou-se que a iniciativa do bispo de Santiago tinha sido puramente pessoal e que o cardeal Jaime Ortega estava muito chateado. Enviei esta informação ao secretário de Fidel.

Durante a refeição, Fidel abordou o tema da Doutrina Social da Igreja (quando saía, me mostrou em seu escritório a pilha de documentos que tinha estudado sobre o tema, em particular a encíclicas dos três últimos papas). Ele elogiou tanto que Giulio Girardi e eu intervimos para destacar alguns pontos fracos, sobretudo na análise das sociedades em termos de estratos e não de classes e para indicar a necessidade de uma orientação diferente, a da teologia da libertação.

As reuniões sobre a mundialização da economia

Em várias ocasiões, entre 1990 e 2000, Fidel participou das reuniões convocadas pela Associação de Economistas Cubanos sobre o tema. Os convidados desta reunião eram, nem mais nem menos, funcionários do Banco Mundial e do FMI, os ganhadores do Prêmio Nobel de Economia, inclusive o autor da fórmula: “Consenso de Washington”. Plataforma inesperada para a lógica neoliberal! Sobra dizer que estas teses eram objeto de duras críticas. Fiz várias apresentações para defender a ideia de um novo paradigma pós-capitalista: o Bem Comum da Humanidade frente à crise sistêmica do capitalismo. Fidel fechava os debates com um discurso de varias horas, até altas horas da noite. Nas outras noites, todos dançavam a salsa.

No entanto, Fidel sempre foi implacável com aqueles que, de dentro ou fora, colocavam em perigo o processo revolucionário. Ou seja, o projeto de uma sociedade mais justa, o reconhecimento político do direito de todos à vida, à saúde, à educação, à cultura, ao esporte; à transformação dos valores sociais para uma solidariedade real oposta ao individualismo e à tentação do consumo. Muitos obstáculos caracterizaram este caminho: a pobreza do país; sua burguesia parasitária, que felizmente foi embora do país massivamente; o embargo econômico; a rigidez de uma economia de Estado demasiado exclusiva; em finais dos anos 70, um começo de narcotráfico; depois, a queda da URSS, causando um período de austeridade extrema; a fragilidade da Venezuela que organizou através da ALBA, uma solidariedade econômica; para não falar de uma oposição interna financiada em grande parte pelos Estados Unidos e uma reação autoritária às vezes excessiva.

Os ajustes estruturais: o caso de Sri Lanka

Nas reuniões sobre a mundialização da economia, expus na presença de Fidel, um trabalho sobre como o Banco Mundial impunha o ajuste estrutural ao Sri Lanka, país que conhecia muito bem, porque foi onde redigi minha tese de doutorado sobre uma sociologia do budismo e onde continuei trabalhando com o movimento camponês MONLAR. Em 1996, o Banco solicitou ao governo da olha que pusesse fim à produção de arroz, porque ficava mais barato comprá-lo do Vietnã ou da Tailândia. Para isso, pediu às autoridades que eliminassem qualquer controle dos preços do arroz, obrigassem os agricultores a pagar pela água de irrigação e privatizasse as terras coletivas das comunidades campesinas. De fato, o plano constituía em substituir o arroz por monocultivos de exportação e as empresas nacionais e internacionais interessadas no projeto estavam prontas para comprar dos campesinos as terras recém-distribuídas.

Há mais de 3.000 anos que o Sri Lanka produzia arroz. Era a base da comida, com sabores particulares. Formava parte da história, da cultura, da literatura, da poesia. Os campos de arroz ondulavam nos sopés das colinas, marcando as características da paisagem. Existia soberania alimentar em caso de desastres naturais ou de conflitos. Porém, a lógica do mercado era a lei que devia prevalecer. Como o governo de turno, de sensibilidade socialista, não cumpria com a suficiente rapidez com a ordem do Banco, este cortou todo crédito internacional ao país durante um ano. O governo seguinte, neoliberal, estimou que a ideia não era ruim. Permitiria em particular liberar um milhão de trabalhadores para a indústria, especialmente nas zonas francas onde as empresas estrangeiras desenvolviam a produção têxtil e a eletrônica. Por desgraça, a época foi mal escolhida. Com efeito, os trabalhadores dessas zonas conseguiram por suas lutas sociais, alguns benefícios salariais e sociais. A mão de obra tinha encarecido e os capitais (a lei de mercado impõe) saíam de Sri Lanka para investir no Vietnã ou na China, onde os custos de mãos obra eram mais baixos. Presa nesta contradição, o resultado de sua própria lógica, o Banco teve que abandonar o projeto. Fidel ficou impressionado por este caso e, muitas vezes, o retomou em seus discursos posteriores.

O Fórum Social Mundial

Às vésperas do Fórum Social de Mumbai, na Índia, ocorreu um seminário em Havana sobre a atualidade do marxismo, do qual participou Fidel. Escolhi como tema: uma análise marxista do FSM, que devia apresentar em um painel de 4 pessoas, onde cada um dispunha de 15 minutos. O primeiro orador, um chinês, fez um elogio interminável a Fidel, antes de entrar em seu tema. Seguiu-se um latino-americano, inesgotável. Isabel Rauber, uma colega que me precedia, respeitou seu tempo. Quando chegou minha vez, de acordo com o programa, fiquei sem tempo. “Meus predecessores comeram todos os meus minutos, declarei, no entanto, seguindo o exemplo do comandante, vou tentar ser breve”. Isto provocou o riso de todos, incluindo do comandante, que em repetidas ocasiões a partir de então, quando me via na audiência, começava seus discursos apontando-me com o dedo e dizendo: “Vou ser breve” e falava durante 4 horas.

Quando acabei minha apresentação, Fidel pediu a palavra: “É no momento em que novos governos se estabelecem na América Latina e o imperialismo se torna mais agressivo, que o FSM decide abandonar o continente e ir para a Índia. Por quê?”. Minha resposta foi breve: “Se o FSM quer ser verdadeiramente mundial, tem que organizar suas sessões nos diferentes continentes”. “Não, contestou Fidel, foi o resultado de uma decisão dos europeus, com a cumplicidade de alguns brasileiros”. Respondi: “Comandante, não acredito, neste caso, em uma teoria das conspirações. Isto é muito mais simples. Trata-se de internacionalizar o Fórum. Dizer que deve permanecer na América Latina é latino-americano-centrismo”.

Isto provocou uma explosão de protestos. Não só me atrevi a contradizer o líder supremo, como fui interpretado como um ataque a Cuba. No tumulto, alguns defendiam minha posição, entre eles um sindicalista, cubano, membro do Conselho Internacional do FSM. A maioria apoiava o comandante. Abel Prieto se levantou: “François, você não pode acusar Cuba de americano-centrismo, quando nós apoiamos a luta do Vietnã, lutamos em Angola contra a intromissão da África do Sul, enviamos dezenas de milhares de médicos aos lugares mais pobres do mundo, formamos centenas de especialistas do sul em nossas escolas”.

Eu contestei: “Isto não pode ser colocado em dúvida e todo o mundo reconhece, porém afirmar que o FSM deve permanecer na América Latina é latino-americano-centrismo”. A discussão começou de novo. Fidel pediu a palavra: “Existem movimentos sociais na Índia?”. Respondi: “Comandante, não só existem como possuem dezenas de vezes mais membros que na América Latina”. O debate continuou, alterando o programa da tarde, quando Fidel declarou: “São quatro da tarde e temos que almoçar”. A sessão retornou às 17horas, com as mesmas controvérsias, até acabar o dia. Meses mais tarde voltei a ver Abel Prieto, que me confessou: “Fidel me disse: ele tinha razão”.

A enfermidade de Fidel

Em 2006, Fidel ia celebrar seu 80° aniversario. Eu cheguei à ilha uns dias antes, justo quando anunciavam seu grave estado de saúde. Abel Prieto, ministro de Cultura, mandou seu veículo de função ao aeroporto (um velho Lada com os amortecedores avariados). Pedia-me que colaborasse na elaboração de um texto para ser assinar pelo maior número possível de intelectuais e artistas de todo o mundo, para advertir contra qualquer intervenção exterior.

O trabalho foi intenso. A primeira redação afirmava enfaticamente a justa causa do heroico povo cubano. Opus-me a esta literatura insuportável no exterior.

Refizemos várias versões. Finalmente sugeri excluir qualquer adjetivo ou advérbio. O projeto final terminou sexta-feira pela tarde. Porém, sua apresentação pública estava anunciada para a segunda-feira, pela manhã. Em menos de três dias conseguiram mais de 400 assinaturas, incluindo vários Prêmios Nobel. Os cubanos estavam desesperados pela assinatura de Noam Chomsky, o linguista estadunidense, que sempre foi crítico para com a ilha. Por correio eletrônico, insisti e ele assinou.

Na segunda-feira pela manhã, a sala de imprensa internacional estava cheia. As 4 grandes cadeias estadunidenses estavam presentes. Os cubanos tinham me pedido que presidisse a conferência e que lesse o texto com as assinaturas mais relevantes. No entanto, estava claro que os jornalistas não estavam ali para escutar esta declaração.

Queriam notícias da saúde de Fidel. Desde o princípio, disse que não tínhamos nada para dizer sobre esse tema. Entre as perguntas, um jornalista me interrogou sobre o que recomendaria aos bispos do país. Respondi não ter nenhum conselho a dar e que por certo a Conferência Episcopal tinha se posicionado em uma carta pastoral breve, porém clara. Pedia orações para Fidel e para o novo governo, dizendo que nenhuma intervenção externa seria justificada.

Reuniões com os intelectuais

Em duas ocasiões, no início da década de 2010, com motivo da Feira do Livro, evento cultural que reúne um milhão de pessoas em toda a ilha, vindo de cidade em cidade, Fidel convocou uns sessenta participante para trocar opiniões. Sua condição física não era muito brilhante, porém não o impediu de passar 7 ou 8 horas nesta tarefa. Intelectualmente falando, estava perfeitamente lúcido. Nas duas ocasiões, ele introduziu o debate, pedindo que nos expressássemos e tomou muitas notas. Na primeira sessão, abordou a questão dos danos ambientais, tema que tinha tratado durante mais de 20 anos, antes de todo o mundo. Eu estava impressionado por seu conhecimento na matéria, tema que tive de estudar quando escrevi um livro sobre a agroenergia. De memória, citou muitos dados e formulou um pensamento mostrando as contradições do desenvolvimento capitalista destruindo a natureza. Suas advertências eram dramáticas, ao mesmo tempo em que dava soluções.

Durante os intercâmbios, eu também intervi, expondo a ideia do Bem Comum da Humanidade, como paradigma de vida, frente ao de morte do capitalismo (devastação da natureza e economia que sacrifica milhões de vidas humanas para o crescimento). O texto completo desta intervenção foi reproduzido em anexo do livro que relatou o conteúdo desta reunião. Fidel deu a Ruth Casa Editorial, sendo Carlos Tablada seu diretor e eu o presidente, os direitos de publicação em livros eletrônicos, de todas as suas obras.

Durante a segunda sessão, um ano mais tarde, Fidel expôs longamente sua preocupação com a despolitização da juventude (um fato não só em Cuba). De verdade, possuindo as conquistas da revolução como um fato, não tendo que lutar por elas, recebendo uma formação marxista digna do pequeno catecismo da Igreja de antes do Vaticano II e atraídos pelas imagens de um consumismo sem precedente da minoria mais visível do mundo capitalista, estão encaminhados a reagir contra a austeridade do sistema cubano, sem publicidade comercial, porém também sem uma maior participação política. Inclusive, ainda que os jovens continuem sendo muito sensíveis aos valores da nação cubana e não necessariamente hostis à revolução, são negligentes com os assuntos públicos para desenvolver valores mais individuais, querendo descobrir o mundo por si mesmos. Obviamente, não têm nenhuma experiência existencial das sociedades do Sul a seu redor, tomando como modelo a classe média minoritária, porém em expansão. Fidel era consciente desta situação e pediu opiniões. Infelizmente, era o final da tarde e não obteve muitas respostas.

Voltamos ao papel do Partido para a conscientização popular, sua tarefa principal. É difícil escapar da institucionalização burocrática, que ameaça todos os aparatos ideológicos, incluindo as Igrejas, e no campo político, evitar que órgãos de participação não se convertam em instrumentos de controle (o caso dos Comitês de Defesa da Revolução). De fato, trata-se de mecanismos sociais que sem dúvida podem ser superados por uma referência ética. No interior, a aspiração geral em Cuba é de mais abertura, a raiz de uma tensão devido à dureza de uma luta tão longa, porém também de uma certa concepção de poder. No exterior, o Partido único é problemático para os seguidores da democracia burguesa, acostumados à pluralidade das organizações políticas. Esquecem que, nesse sistema, os benefícios reais do pluralismo e de uma liberdade das religiões, da cultura, das organizações não governamentais, da imprensa e assim sucessivamente, estão condicionados por um só parâmetro: não voltar a colocar em xeque de maneira efetiva as relações capital-trabalho, ou seja, a essência da lógica capitalista. Do contrário, é a repressão, o estabelecimento de ditaduras (na América Latina, nos anos 60 e 70), os bloqueios e embargos, a guerra.

Na base, a democracia cubana é real: os membros do partido estão sujeitos à aprovação popular. Um ministro liberal de Luxemburgo, bom conhecedor de Cuba, me disse um dia: “Há mais democracia no Partido cubano que no meu próprio, em Luxemburgo”. No processo eleitoral, também existem candidatos sem partido. Porém, escalando os níveis para além do local para chegar ao regional e ao nacional, a hegemonia do Partido se reafirma sem surpresas, o que é uma garantia para a comunidade do projeto econômico e social (com discussões serias sobre os meios para alcançá-lo), mas também um risco de paralisia e inclusive de abuso (oficialmente reconhecido).

Contudo, não podemos esquecer o peso da luta. Depois da vitória de 1959, uns 600 defensores de Batista foram fuzilados [1]. Quando o general Ochoa, herói da guerra de Angola esteve envolvido no tráfico de drogas, pagou com sua vida tal desobediência. Quando 75 opositores foram convencidos para receber o apoio financeiro dos Estados Unidos, receberam penas de excessiva gravidade. Três jovens negros, que sequestraram uma embarcação marítima, foram executados. Nesse momento, não tive a oportunidade de falar com Fidel, porém ao estar na Venezuela com Carlos Lage, o primeiro ministro, disse: “Vocês fuzilaram três delinquentes, mas também 10.000 seguidores seus na Europa”. Ele respondeu: “É preciso explicar”, e eu acrescentei: “Existem coisas inexplicáveis”. Várias vezes discuti com Abel Prieto sobre a pena de morte, o que coloca Cuba no mesmo patamar dos Estados Unidos, porém a resposta foi sempre a mesma: “É nosso único meio de pressão contra os Estados Unidos”. Cuba, entretanto, declarou uma moratória. Uns meses mais tarde, Lage e o chanceler foram destituídos por deslealdade e uso excessivo dos privilégios do poder. O primeiro retomou seu trabalho de médico e o segundo de engenheiro.

Reafirmar os principios da revolução, adaptando-os às novas realidades, sem necessidade de criar um processo de acumulação individual; reativar a participação popular mediante a abertura de novos espaços; resistir às pressões externas do mundo capitalista, são os principais caminhos a serem superados para transmitir o legado de Fidel.

A cultura popular

Pouco depois do final do “período especial”, após da queda da URSS, em uma época de restrições econômicas severas, Fidel reviveu a ideia da cultura popular, com uma nova iniciativa: introduzir a arte no ensino secundário, como disciplina obrigatória. Para isso, era preciso formar professores em música, arte visual, tapeçaria… Convidou-me o Ministro da Cultura para participar da cerimônia de entrega de diplomas por Fidel, aos primeiros 800 professores dessas áreas, no ginásio principal de Havana, na presença de milhares de jovens das escolas de serviço social. Ao final da cerimônia, Fidel me disse: “O ser humano não é só uma máquina econômica. Também tem que poder florescer culturalmente e o dever da sociedade é dar a ele a oportunidade”.

Fidel e Chávez

Em várias ocasiões, participei de atos públicos que reuniam estes dois principais atores políticos na América Latina. Um deles foi a celebração do 1° de maio em Havana, pouco antes da enfermidade de Fidel. Na tribuna, eu observava de perto sua atitude durante o discurso de Chávez, expressando tanto a satisfação de ver surgir um líder que retomava a tocha, como a emoção de ter engendrado uma nova filiação. A crueldade do destino quis que fosse ele quem sobrevivera.

Certo é que na América Latina, o que chamamos de caudilhismo, a forma tradicional da cultura política, fez estragos, inclusive entre líderes partidários da mudança. No entanto, a dimensão de Fidel na ordem intelectual, sua preocupação ética, seus julgamentos políticos, sua capacidade de antecipação e seu caráter de líder histórico da revolução em Cuba, compensaram as desvantagens do sistema, porém sem eliminá-los por completo.

Foi-me oferecida outra oportunidade, na cerimônia de apresentação da “operação milagre” no Teatro Karl Marx de Havana. Diante de cerca de 4.000 pessoas, Fidel e Chávez explicaram a filosofia e o funcionamento desta ação conjunta a favor dos deficientes visuais, que somam no subcontinente latino-americano nada mais que umas 10 milhões de pessoas. Graças às técnicas médicas cubanas e com o apoio financeiro da Venezuela, consistia em curar ou aliviar o sofrimento dos pacientes financeiramente incapazes de aceder à assistência medida em seus países. De fato, em poucos anos, vários milhões de enfermos foram tratados. O nome da operação tinha uma fonte bíblica: “Os cegos verão”. Em um dado momento, Chávez tirou do bolso da jaqueta um pequeno crucifixo, que apresenta às vezes como uma referência a Jesus, “um dos primeiros socialistas”. Reafirmando esta convicção, se voltou para Fidel dizendo: “Um presente para você”. Em um momento de desconcerto, Fidel se recuperou e respondeu: “Eu aceito”. Toda a assembleia aplaudiu longamente.

Meus contatos com a sociedade cubana não se limitavam aos líderes políticos. Estavam incluídos inúmeros intelectuais, instituições acadêmicas, centros de investigação, artistas, mas também os estudantes de Havana e de Santiago, o campesinato, o público das paróquias católicas, a minoria protestante, os membros da santeria e dos cultos afro-cubanos. Isto me permitiu ver a importância social e cultural da revolução cubana, que, em certa medida, criou o “homem novo” do qual falava Che, sem escapar, obviamente, das contradições de qualquer processo mudança política. A história dirá que papel teve Fidel nesses 50 anos para apoiar um projeto de transformação interna e de solidariedade internacional, que conseguiu inspirar ao longo de tudo.

Poucos dias depois de sua morte, me convidaram em Quito, para uma homenagem na “capela do homem”, nome do museu de Guayasamín, o pintor equatoriano que realizou quatro retratos de Fidel em diferentes períodos. O lugar foi inaugurado há uns 10 anos por Fidel, Chávez e Lula. Era o Dia Internacional da Medicina Cubana. Cerca de 200 médicos de bata branca, homens e mulheres, cubanos que trabalhavam no Equador e equatorianos formados em Cuba, cantaram, dando um ritmo um pouco mais lento às palavras: Guantanamera… Um grande personagem tinha deixado este mundo.

Nota:

[1] Na Bélgica, depois da Segunda Guerra Mundial, mais de 1.000 colaboradores foram executados.

Fonte original: Artigo produzido na versão original francesa para o Drapeau Rouge (Bruxelas, janeiro-março 2017)

Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/564107-encuentros-con-fidel

Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)