Patricia del Cármen Verdugo Aguirre (1947 – 2008), jornalista, escritora e ativista dos direitos humanos chilena, foi autora de obras fundamentais de denúncia do regime ditatorial de Pinochet: Como os EUA derrubaram Allende, A Casa Branca contra Salvador Allende: as origens da guerra preventiva, Caravanas da Morte, dentre outros livros e trabalhos de caráter investigativo.
Nessa entrevista publicada originalmente no site latinoamericano.jor.br, feita por Alexandre Barbosa, Patrícia fala das feridas mais difíceis de cicatrizar deixadas pela ditadura de Pinochet. Confira a matéria:
Chile: do passado de vanguarda à melancolia neoliberal
Quem estudou a história do Chile tinha no país andino, até a eleição de Salvador Allende, o exemplo de luta de uma classe operária atuante e de uma classe artística ligada à população produzindo um trabalho dramático de conscientização.
No Chile nasceu Luis Emílio Recabarrén, líder operário mineiro, fundador do Partido Comunista Chileno e depois também do PC Argentino, os primeiros partidos comunistas da América do Sul. O Chile é a pátria de Gabriela Mistral e Pablo Neruda, dois prêmios Nobel de Literatura.
No Chile nasceram Violeta Parra e Victor Jara, os maiores nomes da Nova Canção Chilena, que juntava a dramaticidade e beleza da poesia com a denúncia social e a conscientização política. O Chile foi o primeiro país a colocar no poder, pela via eleitoral, um presidente socialista, Salvador Allende, apoiado pelos partidos Comunista e Socialista.
No entanto, o Chile foi também o primeiro país, ao lado da Bolívia, a experimentar o modelo neoliberal. O General Pinochet importou os meninos de Chicago para salvar a economia do seu sangrento regime. Essa mistura de ditadura militar com neoliberalismo econômico produziu efeitos tão profundos que conseguiram apagar o brilho da sociedade chilena, que hoje vive um melancólico dia-a-dia neoliberal de pessoas estressadas e distantes do passado, mesmo com o governo de Bachelet.
A jornalista Patrícia Verdugo, autora de Caravanas da Morte, o livro que liga Pinochet ao assassinato de presos políticos, explica melhor esse triste panorama chileno.
Latinoamericano – Hoje o Chile é o novo exemplo de sucesso do neoliberalismo. Isso é verdade? Como está o país hoje?
Patrícia Verdugo – Efetivamente, o Chile é usado como exemplo do êxito do modelo neoliberal de livre comércio. As cifras macroeconômicas estão equilibradas, como dizem os economistas. A inflação é baixa. Exportamos cobre, madeira para celulose, ferro, salmão, vinho e milhares de outros produtos. Mas o desemprego ainda é alto (8,9%) e os que têm trabalho o fazem por muitas horas por dia. O salário mínimo é de cerca de 150 dólares e com isso uma família não consegue comer o suficiente. Temos uma receita de 5 mil dólares per capita, mas o problema grave é a diferença entre ricos e pobre que continua crescendo. O resultado de tudo isto é um país em que a maioria dos cidadãos não goza a vida. As pessoas estão estressadas, cansadas e de mau humor.
E o que fazem os movimentos sociais?
PV – A ditadura aplicou o máximo de terror por quase 20 anos e desarmou todo o tecido social de organizações que o Chile tinha, furto de um longo processo. E o que se refez, na luta contra a ditadura, ficou logo desanimado por causa da transição. De 90 em diante não houve estímulos para que o povo se filie a sindicatos ou organizações estudantis e populares. O incentivo foi para que cada cidadão fique sozinho, que se vire individualmente frente ao sistema. E até agora o modelo tem feito isso com sucesso, salvo exceções.
Qual a porcentagem dos que ainda apóiam o período Pinochet?
PV – Calcula-se que um terço da população é de direita. E também pinochetista. Isso inclui, ainda que pareça inacreditável, muitos jovens. São filhos de militares o de pessoas visceralmente anticomunistas.
E Allende? Como está a figura do presidente na memória chilena?
PV – Em 2000, foi possível colocar uma estátua do presidente Allende em frente ao Palácio de La Moneda. Mas se fala pouco dele na imprensa nada se fala. Neste ano, por fazer 30 anos do golpe militar e da morte de Allende, algumas séries de repotagens sobre a época puderam ser vistas. A imprensa de direita impõe sobre ele uma forte censura, a não ser para criticar-lo. O único fato de destaque foi o que aconteceu quando Lagos assumiu como presidente. Em março de 2000, o rosto de Allende apareceu um bandeiras gigantes – o ato das massas era nas ruas – e as pessoas começaram a gritar “se siente, se siente, Allende está presente”, com grande fervor.
No Brasil, pouco se fala dos desaparecidos políticos do regime militar. E no Chile?
PV – Pinochet dizia que os presos e desaparecidos eram uma invenção de seus inimigos. Com as famílias e os defensores de direitos humanos, pudemos provar para todo o país que Pinochet mentia. Foi um longo processo. O caso da “caravana da morte” abriu uma jurisprudência muito importante. Quer dizer, entende-se que um preso, cujo corpo não aparece é considerado seqüestrado. E como o seqüestro é um delito em execução permanente, seus autores não podem ser beneficiados pela anistia ditada pelo mesmo Pinochet. Por isso, hoje temos muitos “juízes especiais” buscando corpos por todo Chile. Os corpos têm de aparecer para que se possa aplicar a anistia. Há dois anos se criou uma “mesa de diálogo” com as Forças Armadas. E se conheceu uma grande lista de prisioneiros desaparecidos cuja sorte final foi “lançado ao mar”. Com isso, buscou-se pôr um ponto final no assunto. Mas, como os fantasmas são muito teimosos, houve muitos casos de “lançados ao mar” cujos corpos apareceram justamente enterrados em recintos militares. E toda lista caiu por terra.
Como a imprensa chilena cobriu os julgamentos de Pinochet?
PV – Desde que deram a impunidade a Pinochet, pela via de declarar-lhe demente, se impôs uma fraca cobertura. Apenas sabemos dele quando vai ao Hospital Militar por um problema médico ou quando teve que interromper suas férias em Iquique, porque se esqueceu de que estava louco e começou a fazer alarde do seu gozo pela vida. Temos que lembrar que o poderio total da direita pinochetista implica que toda a imprensa chilena está em suas mãos. Ou são proprietários diretos o a manipulam por meio de contratos de publicidade.
O Chile tem grandes nomes na pintura, na música e na Literatura. Mas no Brasil é muito difícil encontrar alguma obra desses artistas. Por que há essa distância?
PV – Na América Latina, não sabemos o que estamos pensando, cantando, criando. Cortaram nossas redes de comunicação e os EUA nos deixaram conectados ao cordão umbilical da CNN, UPI e AP. Parece paradoxal que na era das comunicações estamos mais desconectados do que nunca. Mas esse é o plano de Washington para no voltemos a coordenar ações que não sejam do seu gosto. Se, no século XIX, lhes interessasse a América Latina, a CIA teria assassiando Simón Bolívar. Temos que recompor, passo a passo, as redes de comunicação. É parte da paciente e progressiva tarefa de resistência de toda América Latina. E a faremos, ainda que demore um século!