O PCB e a realidade brasileira: capitalismo e a questão agrária

Ricardo Costa*

Nota do autor

Esse texto é parte da tese de doutoramento defendida por mim junto ao Programa de Pós-Graduação em História no Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense, no ano de 2005.**

As análises desenvolvidas pelos comunistas nas páginas da imprensa partidária, em especial nas revistas Estudos Sociais e Brasiliense, coordenadas por dirigentes e intelectuais ligados ao PCB e dedicadas a um intenso debate teórico e político-estratégico, revelavam substancialmente olhares inscritos na perspectiva nacional-democrática dominante, pois estava na ordem do dia para os comunistas brasileiros, como já salientado, a consolidação do processo de desenvolvimento do capitalismo nacional, em contradição aberta com o imperialismo. Para o núcleo dirigente do PCB, era necessário investir na formação de uma aliança política dos trabalhadores com a burguesia industrial brasileira, grupo social retratado como moderno e progressista, em contraposição aos setores atrasados e retrógrados identificados nos representantes do latifúndio e do imperialismo no Brasil.

No entanto, principalmente em virtude da postura crítica quanto às orientações políticas do PCB, conforme as posições expressas por Caio Prado Júnior e Elias Chaves Neto na revista Brasiliense, foi possível identificar interpretações diferenciadas sobre o processo econômico-social brasileiro, a sua formação histórica e o estágio de desenvolvimento das relações capitalistas no país nos textos pesquisados, ao mesmo tempo em que havia concordância nos temas associados à política econômica (a ser aplicada em bases estritamente nacionais) e ao correspondente movimento nacionalista. A seguir, será analisado de que forma se travou este debate no seio da intelectualidade formada pelos dirigentes comunistas e outros pensadores e ativistas, militantes orgânicos ou próximos ao PCB, a respeito de cada uma das questões vistas como fundamentais para a compreensão da realidade brasileira, a começar pela questão agrária. A quase totalidade dos textos analisados foi publicada nas revistas Estudos Sociais e Brasiliense, entre os anos de 1958 e 1964.

A questão agrária no Brasil: feudalismo x capitalismo

Nas discussões em torno deste ponto, apareceu como bastante característico da concepção dominante no PCB o artigo de Carlos Marighella intitulado “Alguns aspectos da renda da terra no Brasil”, aberto com a declaração segundo a qual o monopólio da terra seria a causa do atraso em que se encontrava o país, e sua eliminação permitiria que as forças produtivas dessem “um salto para a frente”. Toda a sua análise desenvolveu-se no sentido de tentar comprovar que os restos pré-capitalistas (identificados como feudais ou semifeudais) na estrutura agrária brasileira, conservados e eternizados pelo imperialismo, segundo o dirigente comunista, impediam o pleno desenvolvimento das relações capitalistas e, consequentemente, adiavam o projeto nacional autônomo. Sua conclusão, após o estudo da renda da terra e de como funcionavam as formas pré-capitalistas de exploração da mão-de-obra no campo brasileiro, buscava levar à “compreensão da necessidade de abalar ou eliminar o monopólio da terra, o que, ao lado da derrota do imperialismo norte-americano, criará novas condições para o desenvolvimento das forças produtivas”.

O texto de Marighella partia do pressuposto de que dois tipos de renda, a pré- capitalista e a capitalista, conviviam simultaneamente na estrutura agrária brasileira. Ao analisar a renda da terra na cultura do café, apresentava a figura do colono como a de um trabalhador submetido tanto à exploração da renda trabalho, típica das sociedades pré- capitalistas, quanto ao regime do salariado, próprio do capitalismo. Segundo Marighella, a primeira forma de exploração revelava-se através do trabalho realizado exclusivamente na terra do fazendeiro, ficando mais nítida quando, em determinados dias do ano, o colono era obrigado a prestar serviços gratuitos ao seu senhor, tais como consertar estradas e cercas e limpar pastos. Tais serviços receberam do autor do artigo a denominação de “corvéia”, como se de fato existissem relações inerentes ao feudalismo no campo brasileiro. Dentro desta mesma linha, asseverava a total dependência do colono para com o dono da terra, “tal como acontecia no tempo do feudalismo”, expressa também na apropriação, pelo fazendeiro, do produto suplementar do plantio realizado na parcela do terreno concedida ao trabalhador, além de outras formas de coerção extra-econômica, como a proibição de caçar, pescar e tirar lenha das matas da fazenda, características ilustrativas da servidão, forma de trabalho dominante no feudalismo.

Marighella declarava que o colono era, ao mesmo tempo, um trabalhador assalariado, em virtude de a fazenda de café ser também um empreendimento capitalista. Argumentou tratar-se, na verdade, de um semiproletário, pois a condição, segundo ele, para o trabalhador se afirmar como assalariado, isto é, receber em dinheiro, nem sempre acontecia, já que o fazendeiro lhe reservava o vale, como complemento do que consumia no barracão da fazenda, outro instrumento de dominação a retirar o caráter de liberdade da força de trabalho, também visto como “remanescente do feudalismo”. Historicamente, o quadro era explicado como resultado da passagem do fenômeno da parceria, pela qual o braço estrangeiro importado para a lavoura de café entregava a renda produto ao dono da terra, para a condição de trabalhador semiproletário, na qual o colono perdia totalmente a ilusão de tornar-se um produtor independente, mas não se transformara plenamente ainda num assalariado, devido às revivescências da servidão, como referido acima.

O articulista explicava tal situação híbrida pelo fato de a produção de café ser principalmente destinada ao comércio exterior, servindo quase exclusivamente aos interesses do imperialismo e dos latifundiários e pouco contribuindo para o desenvolvimento do mercado interno, menos ainda para a circulação de dinheiro no meio rural. A possibilidade de junção, em uma mesma realidade social, de duas formas de exploração historicamente separadas, era vista como exemplo da singularidade de um “país oprimido e dominado pelo imperialismo, onde o monopólio da terra é lei geral”, impondo a sobrevivência de resquícios feudais no campo, segundo o autor do texto. Suas considerações apontavam para um prejuízo do desenvolvimento geral do país e para o entrave das forças produtivas, tendo em vista que a permanência de formas pré-capitalistas na estrutura agrária brasileira impediria a elevação da fazenda à categoria de um empreendimento plenamente capitalista, fato este responsável por restringir “a circulação de mercadorias e o incremento do valor de uso e de troca, impondo às forças produtivas entraves feudais insuportáveis”.

A existência da figura do empreiteiro individual, trabalhador assalariado contratado para a formação do café, citada como uma nova forma de exploração na órbita do capitalismo, pelo fato de o pagamento pelas tarefas ser feito em dinheiro, era avaliada como a representar uma ameaça ao domínio do latifundiário, em virtude das reivindicações visando estender ao campo a legislação trabalhista. Daí que, segundo Marighella, o grande proprietário recorresse a outro tipo de empreiteiro, aquele encarregado de aliciar, para determinados serviços ligados à preparação do terreno com vistas à produção futura na fazenda, turmas de trabalhadores (peões), aos quais explorava pagando míseros salários. Tal elemento, apresentado no texto como um “intermediário capitalista aliado ao latifundiário e ao capital comercial e usurário”, indicaria que este tipo de assalariamento do trabalho agrícola não levava à verdadeira emancipação do colono, nem à eliminação dos restos feudais no campo brasileiro, pois tais trabalhadores estariam ainda sendo submetidos, concomitantemente, a formas semifeudais de exploração, extorquidos em sua renda trabalho. Além disso, a maior parte das fazendas de café (88%, conforme destacado no texto) continuava a ser tocada por colonos, fato que constituiria uma prova da permanência dos restos feudais.

Outros exemplos discriminados no artigo serviam para reforçar as conclusões já verificadas. Eram registradas diferenças marcantes, em relação à agricultura cafeeira, nos casos das culturas canavieira e algodoeira. Na primeira, a usina de açúcar era descrita como superior, na perspectiva de um empreendimento capitalista, à fazenda de café, ao encarnar nitidamente a união entre agricultura e indústria, fazendo do usineiro um industrial do campo, ao contrário do fazendeiro de café. Mas, ao mesmo tempo, o usineiro era também um latifundiário a explorar, em suas terras, trabalhadores vinculados a outras culturas (café, algodão, arroz), sujeitando-os igualmente às formas de exploração semifeudais, assim como o fazia em relação aos plantadores de cana, apontados como semiproletários, tais quais os colonos de café. O fornecedor de cana independente, o antigo senhor de engenho, identificado agora como capitalista, camponês ou fazendeiro rico a explorar a renda produto do pequeno arrendatário (ou pequeno camponês) e a mais-valia do trabalhador rural, estaria de fato subordinado ao grande poderio do usineiro, imposto, centralmente, através do monopólio da terra.

No outro exemplo, a cultura do algodão era apresentada como desenvolvida à base do arrendamento da terra, tendo criado a figura do arrendatário pobre, submetido a contratos tão extorsivos quanto os do colono de café, ao ser obrigado a entregar produto excedente ou a prestar trabalho ao latifundiário. Este, ao contrário do fazendeiro do café e do usineiro, os quais encarnariam a aliança da terra com o capital, somente seria capaz de extrair renda da terra se explorasse a miséria dos inúmeros arrendatários. Segundo o dirigente comunista, a renda apropriada pelo latifundiário do algodão seria toda ela pré-capitalista, não existindo, assim, a figura do trabalhador assalariado, a não ser no caso da indústria do beneficiamento do produto, conservada em mãos de empresas imperialistas, totalmente separada da exploração agrícola, monopolizada pelos grandes proprietários.

Todas essas observações levavam Marighella à seguinte conclusão:

Isso fortalece a convicção de que os restos feudais predominam em nossa economia agrária e encontram sua principal fonte no monopólio da terra, tão fortemente apoiado pelo imperialismo para facilitar seu domínio sobre toda nossa economia e o nosso povo. Não obstante, já há penetração capitalista no campo, e ela se manifesta na renda absoluta ou diferencial produzida pela exploração da mais valia do proletariado e semi-proletariado rurais.¹

A solução para o enfrentamento político de tal quadro, registrada no final do artigo, estaria em eliminar o monopólio da terra, medida a ser precedida pela extinção das formas feudais de exploração, cuidando para que ficassem resguardados, porém, os empreendimentos industriais do campo, pois, assim, desde que garantida a aplicação da legislação trabalhista na área rural, estariam criadas as novas condições para o pleno desenvolvimento das forças produtivas.

Em artigo publicado em 1962 na mesma revista, reproduzindo declarações prestadas à Comissão de Reforma Agrária da Câmara dos Deputados, Alberto Passos Guimarães reforçava a tese da persistência de uma estrutura colonial e pré-capitalista no sistema agrário brasileiro, responsável por uma série de distorções e deformações existentes na economia nacional: a agricultura de exportação, à base da monocultura e da propriedade latifundiária, era mantida em detrimento da agricultura de subsistência e das necessidades da população, situação que forçava a dependência da produção aos ditames dos mercados estrangeiros, dominados pelos trustes internacionais, levando à descapitalização do setor e à evasão para o exterior de grande parte da renda formada internamente, em decorrência da constante deterioração dos preços dos produtos agrícolas. Tal panorama, agravado pelo sistema de distribuição (rede de transporte, de armazenagem e de crédito), organizado para atender o setor latifundiário-exportador e monopolizado por empresas estrangeiras, desencadeava um quadro de “crise agrária”, cujos maiores efeitos eram a permanente pobreza dos pequenos e médios produtores agrícolas, o baixo nível de remuneração dos trabalhadores rurais, o incentivo à superprodução de gêneros exportáveis e a limitação do mercado interno. A elevada concentração da propriedade, contrastando com a vastidão de terras existentes, provocava escassez de terras disponíveis no mercado, altos preços dos imóveis rurais e arrendamentos, redução da área produtiva e, portanto, carência dos produtos mais necessários ao mercado interno².

Utilizando o Censo Agrícola de 1950 como sua principal fonte de dados, o escritor alagoano registrava ainda a péssima utilização dos enormes recursos de mão-de-obra no campo, tendo em vista que 58% da população economicamente ativa no Brasil estariam vinculados às atividades agropecuárias, perfazendo um total de onze milhões de pessoas trabalhando em cerca de vinte milhões de hectares, o que indicaria um índice muito baixo de produtividade, se comparado com a realidade dos países capitalistas desenvolvidos. Isto revelaria, uma vez mais, as limitações impostas ao desenvolvimento econômico pela manutenção da estrutura colonial no sistema agrário, em que predominariam formas de trabalho pré-capitalistas, desde o trabalho gratuito até as mais  “arcaicas modalidades de parceria”: entre 50% e 60% dos trabalhadores agrícolas estariam submetidos a formas primitivas de prestação de trabalho, não recebendo pagamento em dinheiro, ou porque trabalhavam de graça por serem familiares dos produtores ou porque eram remunerados em produtos.

A crise agrária brasileira era definida por Guimarães como resultado da existência de duas realidades antagônicas no campo brasileiro: de um lado, uma estrutura dedicada a atender os interesses da agricultura exportadora, concentradora de propriedade e promotora de crises de superprodução, em razão da dependência frente ao mercado externo e à necessidade de produção em larga escala; de outro, a agricultura de subsistência, de consumo interno, atingida por crises de escassez de produtos e não beneficiada por favores e subvenções, em virtude de ser uma lavoura predominantemente não latifundiária. Segundo o autor, o crescimento da primeira limitaria e deformaria o crescimento da segunda. Tal conflito antagônico – entre o latifúndio e a pequena e média propriedade – remontaria aos primórdios da história brasileira e não seria superado sem a realização de uma profunda reforma da estrutura agrária brasileira, capaz de, removendo os entraves históricos causadores de sua crise e estagnação, acelerar o desenvolvimento da agricultura e elevar o nível de vida dos trabalhadores.

Boa parte das ideias contidas nos ensaios anteriores já havia sido incluída no texto da Declaração de Março de 1958, que, ao denunciar a penetração do capitalismo no campo e a manutenção da grande concentração fundiária no Brasil (segundo o documento, com base também no Censo Agrícola de 1950, os estabelecimentos agrícolas com mais de 500 hectares constituíam 3,4% do total deles e representavam 62,3% das terras ocupadas), inferia as seguintes conclusões:

Com a penetração do capitalismo na agricultura, combinam-se, em proporção variável, os métodos capitalistas à conservação do monopólio da terra e das velhas relações semifeudais, o que permite um grau mais elevado de exploração dos trabalhadores do campo. As sobrevivências feudais obstaculizam o progresso da agricultura, que se realiza, em geral, lentamente, mantém o baixíssimo nível de vida das massas camponesas e restringem de modo considerável as possibilidades de expansão do mercado interno. As sobrevivências feudais são um dos fatores que acentuam a extrema desigualdade de desenvolvimento das diferentes regiões do país, especialmente entre o sul e parte do leste, que se industrializam, e o resto do país, quase inteiramente agrário.³

A Resolução Política do V Congresso do Partido Comunista Brasileiro, realizado no ano de 1960, manteria basicamente as mesmas caracterizações da estrutura agrária brasileira, analisada como a retratar uma das maiores concentrações latifundiárias do mundo, em face do monopólio da terra exercido pelos grandes proprietários, servindo de base às formas pré- capitalistas de exploração, responsáveis pela sobrevivência de processos primitivos de trabalho, com baixíssima produtividade. Aliada à percepção de a economia brasileira ter sofrido, nas décadas anteriores, modificações resultantes do desenvolvimento capitalista, avaliado como um fenômeno impulsionador das forças produtivas e, portanto, de caráter progressista, mantinha-se a compreensão segundo a qual “o monopólio da terra e as relações de produção pré-capitalistas não somente obstaculizam o desenvolvimento da agricultura como constituem sério entrave ao processo de industrialização, restringindo consideravelmente a expansão do mercado interno”4. Os latifundiários eram identificados como a classe mais reacionária da sociedade, agentes do atraso no campo e obstáculo maior para o avanço das forças produtivas no país, além de estreitarem fortes laços com o imperialismo.

A caracterização das relações no campo brasileiro como pré-capitalistas, feudais ou semifeudais configurou-se como tradicional nos textos partidários desde o VI Congresso da III Internacional, realizado em 1928, conforme visto no capítulo anterior. No imediato pós-guerra, Luiz Carlos Prestes, em documento intitulado “O Problema da terra e a Constituinte de 1946”, afirmava serem tipicamente pré-capitalistas as relações de produção na agricultura, pois os restos do feudalismo estavam vivos, fazendo com que os comunistas definissem como semifeudal o regime social predominante do campo brasileiro. Dizia também que os restos feudais determinavam o atraso e a impossibilidade de progresso no Brasil5. A mesma declaração era repetida no informe político de Prestes, em nome do Comitê Central do PCB, ao IV Congresso do partido, acontecido em 1954, no qual era explicitado que os imperialistas norte-americanos e os restos feudais seriam os principais inimigos do progresso do país, sendo ressaltada a associação existente entre imperialistas e latifúndios, com base na suposição de os primeiros constituírem o principal sustentáculo dos últimos. Deduzia-se que, sem a derrota do poder dos latifundiários e dos grandes capitalistas, não seria possível liquidar o domínio dos monopólios norte-americanos no Brasil6.

Por sua vez, em artigo publicado no princípio de 1960, Caio Prado Júnior contestava com bastante veemência a linha do Partido sobre a estrutura agrária, indicando claramente que não havia resquícios feudais a serem ultrapassados no Brasil, tendo em vista que um tal sistema feudal jamais fez parte da formação histórica brasileira, vinculada, de outro modo, a um tipo de colonização e de ocupação territorial voltada a atender as exigências de um empreendimento mercantil: “a produção de objetos demandados pelos mercados europeus”7. Deduzia que as relações de produção e de trabalho eram determinadas pela grande exploração agromercantil, cuja posição dominante na estrutura agrária impunha a divisão das classes em, de um lado, grandes proprietários e empresários agrícolas a deter em suas mãos a imensa maioria das terras ocupadas e, de outro, a população trabalhadora, à qual não restava alternativa senão fornecer a mão de obra necessária ao grande negócio. Como atividade secundária, havia a possibilidade de os trabalhadores dedicarem-se, nas sobras de terra e de tempo, ao plantio de subsistência.

Segundo Caio Prado, a atividade autônoma de pequenos proprietários trabalhando por conta própria em terras próprias ou arrendadas aparecia como marginal, vivendo à sombra da grande exploração e de suas vicissitudes, podendo ser ampliada ou reduzida conforme a retração ou expansão da atividade principal, voltada a atender o mercado externo. A própria existência da pequena propriedade estaria vinculada às contingências dos negócios a que se associava a grande exploração, cujos insucessos permitiriam a subdivisão da grande propriedade em inúmeras parcelas menores de terra, conforme teria se verificado após a crise cafeeira de 1930 em São Paulo, com a tendência ao retalhamento das velhas fazendas produtoras de café. Procurava ilustrar tal raciocínio com os seguintes exemplos:

Esse fato é particularmente notório, entre outros, na lavoura cafeeira de São Paulo, onde as fases de menor ou maior prosperidade no passado, correspondem respectivamente, em regra, a momentos em que se concedeu ou não aos trabalhadores o direito de manterem culturas próprias e nelas ocuparem parte de seu tempo. Fato semelhante ocorre na lavoura canavieira do Nordeste, onde a expansão havida nos últimos decênios (reflexo de uma conjuntura comercial e financeira favorável para o açúcar) teve como conseqüência a redução progressiva da produção própria dos trabalhadores.8

Tais ilações buscavam comprovar que o essencial das relações de produção e trabalho na zona rural envolvia o binômio grande proprietário / trabalhador – fornecedor de mão de obra e de serviços e não grande proprietário / pequeno proprietário ou camponês. Neste quadro, eram apontadas três formas de remuneração do trabalho no campo, passíveis de serem combinadas a depender do momento e do lugar: o pagamento em dinheiro (salário), em parte do produto e no direito de ocupar, para culturas próprias, parte das terras do proprietário. Geralmente, seriam formas de pagamento em troca dos serviços prestados pelos trabalhadores. De acordo com o renomado historiador, a prestação de serviços constituiria a essência das relações de trabalho na agropecuária brasileira.

Caio Prado argumentava, outrossim, que o pagamento por serviços na base da concessão ao trabalhador de produzir para si próprio nas terras do empregador ou por meio de produtos levava a que se confundissem tais situações com a parceria, elemento invariavelmente apontado pelos formuladores da linha política pecebista como característico da natureza semifeudal da economia brasileira. Na verdade, tratar-se-ia simplesmente, na imensa maioria dos casos, de uma relação de emprego em que parte da remuneração do trabalhador era paga in natura, com parte do produto, não se configurando, por tal motivo, numa forma anacrônica ou obsoleta de exploração sobrevivente de um passado feudal. Isto porque não se observava, nas relações entre proprietários e trabalhadores rurais, nada que se assemelhasse a uma sociedade entre as partes, menos ainda à transferência de posse da terra ao empregado, situações típicas da parceria clássica.

A parceria ou meação estaria perfeitamente inserida no quadro de desenvolvimento das relações capitalistas no país, conforme buscou demonstrar o articulista ao registrar que tal prática teria se difundido no Estado de São Paulo, principal centro produtor brasileiro, posteriormente a 1930, ligada especificamente não à economia cafeeira, mas à cultura do algodão, cujas relações de produção, em virtude do cultivo em larga escala, se baseavam em serviços prestados com participação no produto. O intelectual paulista assegurava, portanto, que a parceria, longe de conformar um tipo exemplar das sobrevivências feudais no campo brasileiro, além de ter sido prática quase desconhecida nas fazendas de café, constituía uma forma de trabalho adotada em particular na cultura algodoeira, num momento em que o sistema capitalista há muito era hegemônico no país. Ao contrário do que Marighella havia sugerido em seus estudos a respeito da cultura do algodão, na visão de Caio Prado não se configuraria aí a predominância da renda pré-capitalista, mas uma forma de exploração do trabalho superior até ao salariado. O regime de meação, dominante na cultura algodoeira, além de ter sucedido cronologicamente o pagamento por salários, representaria um benefício maior para o trabalhador, pois abriria a possibilidade de acesso à propriedade explorada pelo meeiro e as condições de vida seriam, em geral, melhores que as do colono das fazendas de café.

Caio Prado enfatizava ainda não haver como estabelecer comparações entre a figura clássica do camponês europeu (detentor dos meios de produção e proprietário de fato da terra em que produzia) egresso do feudalismo e o trabalhador rural brasileiro, em sua grande maioria obrigado a vender a força de trabalho ao grande proprietário para sobreviver. Buscava comprovar que a grande propriedade rural brasileira, com origem histórica marcada pela necessidade da produção em larga escala voltada ao mercado externo, somente possível de ser realizada com a introdução do braço escravo em altas quantidades, impediu o florescimento da pequena propriedade e do campesinato.

O que poderia ser entendido como a constituir uma economia propriamente camponesa no Brasil, segundo o autor, representava um setor residual da estrutura agrária, como no caso da colonização estrangeira ao sul do país. Atestava que, abolida a escravidão, as relações de trabalho servis foram substituídas por prestações de serviços ou empregos, mesmo que o pagamento nem sempre se fizesse por meio de salários, existindo, dentre suas formas mais comuns, a concessão ao direito de plantar produtos de subsistência no terreno do proprietário. Este “trabalho livre” jamais poderia ser confundido com o de um camponês, tendo em vista a submissão do trabalhador, na sua atividade produtiva, ao poder do verdadeiro dono da terra, via de regra um latifundiário. Tratar-se-ia, portanto, não de um pequeno proprietário, de alguém que detivesse de fato a propriedade da terra por ele ocupada, mas de um trabalhador obrigado a vender sua força de trabalho, em troca de um salário ou da permissão em plantar no terreno do proprietário.

Segundo ele, o regime de salariado constituiria a relação generalizada e mais característica de trabalho na agropecuária brasileira. Acima de tudo porque representaria a norma fundamental a presidir tais relações, já que as outras modalidades (pagamento por produto ou permissão de usar a terra do proprietário) seriam formas substitutas ocasionais, decorrentes das fases de retraimento vividas pela grande exploração. O historiador paulista buscava comprovar esta tese demonstrando que, nos momentos e lugares em que a produção agropecuária experimentava fases de crescimento e prosperidade, verificava-se a tendência à adoção plena do pagamento em dinheiro, tal como nas lavouras de café paulistas, onde praticamente não se adotou a meação, ao contrário de Minas Gerais, cuja economia cafeeira sofreu decadência mais acentuada que São Paulo, e tal prática tornou-se relação usual de trabalho. A mesma tendência poderia ser verificada nas lavouras canavieiras do Nordeste, onde o progresso da economia açucareira era acompanhado pela adoção quase exclusiva do trabalho assalariado, assim como na pecuária do sertão nordestino, em que a conjuntura favorável à produção e ao comércio de carne estaria possibilitando a substituição da tradicional “quarta” (prática através da qual o vaqueiro recebia, como remuneração por seus serviços, um bezerro de cada quatro nascidos) pelo pagamento de salários mensais.

Por fim, cabe destacar que, no artigo de 1960, Caio Prado alertava para o fato de a expressão “feudal” poder estar sendo usada, em muitas ocasiões, como um sinônimo para formas brutais e vis de exploração do trabalho no campo. De qualquer modo, o historiador rejeitava o uso do conceito, considerando ser mais apropriado falar em “restos escravistas” ou “relações semiescravistas”, termos que aludiam ao passado colonial brasileiro, em que a escravidão serviu de base a uma economia mercantil. Ademais, no presente, as relações sociais não seriam presididas por estatutos pessoais, como no feudalismo, mas por relações mercantis, através das quais os proprietários compravam e os trabalhadores vendiam a mercadoria força de trabalho, num regime de liberdade jurídica. Aduzia que, se a transação não se realizava exclusivamente por intermédio do pagamento em dinheiro, assumindo também formas não monetárias, tal fato não se daria por força de alguma restrição de ordem jurídica ou institucional, mas por causa de determinadas circunstâncias ou conveniências práticas. Realçava, uma vez mais, desta feita, sua convicção de que o regime de salariado constituía forma dominante nas relações de trabalho na agricultura brasileira, em que pesem as inegáveis condições aviltantes de exploração impostas, senão pelo conjunto, pela parte substancial dos grandes proprietários de terra no país.

Reforma agrária e desenvolvimento das forças produtivas

Posições sobre o tema continuaram a ser objeto do debate teórico nas publicações comunistas, com destaque para as considerações a respeito do tipo de reforma agrária a ser postulado pelo movimento democrático na conjuntura política da época. Posturas emblemáticas das ideias em confronto no campo da esquerda foram expressas, de um lado, em artigos de Rui Facó e Mário Alves publicados na revista Estudos Sociais, e de outro, em texto de Caio Prado Júnior, impresso no número 43 da revista Brasiliense. Havia pontos de concordância quanto à defesa de uma reforma agrária que atendesse, primordialmente, as necessidades dos trabalhadores rurais e atacasse o monopólio do latifúndio na estrutura agrária brasileira. Mas não se coadunavam as concepções de fundo da reforma agrária a ser implantada no Brasil, e a polêmica em torno da persistência ou não de formas pré-capitalistas de exploração no campo era revigorada com os artigos citados.

Em texto de 1961, Rui Facó declarava ser imperativa a revolução agrária no Brasil de seu tempo, quando forças sociais diversas tendiam a unir-se para “a derrocada final e radical da de há muito ultrapassada estrutura agrária que herdamos do Império e que a República feudal-burguesa timbrou em conservar”9. Segundo ele, contrapunham-se ao “latifúndio semifeudal” grandes e crescentes forças sociais, tais como as massas de sem-terra e os proprietários aparentes; os operários das cidades, necessitados do barateamento do preço dos alimentos; os industriais, interessados na elevação do poder aquisitivo de milhões de brasileiros que moravam no campo, visando o crescimento do mercado interno; os agricultores capitalistas, que reivindicavam terra barata para a produção. Assistir-se-ia, assim, à mais importante etapa da luta travada entre o atraso provocado pelo domínio do latifúndio e o progresso do país, marcado então pelo ritmo crescente de desenvolvimento econômico e pela necessidade de ampliação de seu mercado interno.

A reforma agrária deveria cumprir o objetivo de dar à terra uma função eminentemente social, constituindo um retrocesso, na visão de Facó, dividir as grandes economias agrícolas organizadas à maneira capitalista e nas quais predominasse o trabalho assalariado. Tais empreendimentos poderiam ser a base das grandes fazendas de produção do futuro, onde seria mais fácil e racional o emprego de modernos métodos de cultivo, gerando muito maior capacidade produtiva. Também seria um retrocesso, segundo ele, a distribuição pela reforma agrária das terras públicas, as quais perfaziam a mais extensa área de solos no país e que deveriam ser cuidadosamente preservadas como um valioso fundo de reserva territorial. O cerne da reforma estaria, portanto, em liquidar definitivamente o “latifúndio semifeudal”, dividindo suas terras incultas (em geral, inaproveitadas por estarem à espera de valorizações especulativas) entre os trabalhadores sem-terra (os quais deveriam contar com a ajuda financeira e logística do Estado), mas preservando-se os empreendimentos capitalistas produtivos.

O texto de Mário Alves, “Dois caminhos da reforma agrária”, denunciava a tentativa de setores da classe dominante brasileira, associados aos interesses imperialistas, de apresentar soluções ao problema agrário, principalmente por meio de projetos de lei ao Congresso Nacional, sem alterar profundamente a estrutura fundiária calcada no latifúndio. Advertia que tais “planos de reforma agrária” não passavam de projetos de colonização de terras incultas ou pertencentes ao Estado, deixando intacto o monopólio da propriedade da terra exercido pelos latifundiários, numa ação estimulada em toda a América Latina por programas como a “Aliança para o Progresso” do presidente Kennedy, através do financiamento a experiências de colonização de terras virgens, distantes dos centros povoados. As falsas reformas teriam ainda o papel de promover o desenvolvimento do capitalismo na agropecuária, com a utilização de novas técnicas, visando também criar uma camada de camponeses ricos que servisse de barreira às lutas revolucionárias no campo.

O dirigente comunista deixava claro que o caráter da reforma agrária a ser perseguido naquele momento histórico era o de combate ao domínio do latifúndio, razão pela qual defendia o estabelecimento por lei de um limite máximo à propriedade territorial. Não se tratava de propugnar medidas socializantes, já que não se pretendia abolir a propriedade capitalista, mas sim limitar a sua extensão, com vistas a evitar a monopolização das terras em mãos de um pequeno número de proprietários. A essência da proposta pode ser pinçada do texto de Mário Alves:

Consideramos válida a ideia de que a reforma agrária, na atual etapa da revolução brasileira, tem como objetivo eliminar o latifúndio atrasado, de tipo semifeudal, e não abolir a propriedade agrícola capitalista. Partindo dessa premissa, a orientação básica da reforma consistirá em desapropriar e distribuir as terras inexploradas ou mal exploradas dos latifúndios, geralmente cultivadas sob a forma de arrendamento ou parceria, com o emprego de sistemas primitivos. Cabe evitar o fracionamento e preservar a unidade econômica das grandes fazendas agrícolas ou pecuárias exploradas por processos capitalistas, por vezes com métodos modernos, além do trabalho assalariado.10

O centro do ataque desferido por Alves, portanto, era o que ele chamou de “parasitismo latifundiário”, responsável por perpetuar a exploração da grande massa de lavradores, conservando as relações pré-capitalistas remanescentes, as quais eram identificadas centralmente nas práticas do arrendamento e da parceria (“uma das relações mais retrógradas e parasitárias”). O sistema de arrendamento e de parceria era descrito pelo articulista como a representar um dos aspectos mais negativos da estrutura agrária brasileira, não só pelas condições brutais de exploração da mão de obra, mas também por ser um fator de retardamento do progresso técnico, ou seja, de nivelamento por baixo das forças produtivas no campo. Segundo ele, em virtude de os contratos de arrendamento, geralmente, serem feitos no curto prazo de um a dois anos, não havia, da parte do arrendatário e do parceiro, interesse em realizar benfeitorias na terra cultivada em caráter transitório, pois, pelo contrário, a exploração se dava de forma predatória, exaurindo a terra. Os processos utilizados seriam primitivos, com o emprego de mão de obra familiar e de poucos assalariados, típicos de relações econômicas pré-capitalistas, existentes nas regiões “atrasadas” do Oriente e da América Latina, conforme suas palavras. Primordial seria, por conseguinte, que a reforma agrária visasse, em primeiro lugar, a desapropriação das terras submetidas aos contratos de parceria e arrendamento, para eliminar as formas de renda pré-capitalistas (renda-dinheiro, renda-produto e renda-trabalho), com a entrega das parcelas aos trabalhadores que as cultivavam (“camponeses sem terra”, nos dizeres de Alves).

Por outro lado, se Caio Prado Júnior, no artigo “Nova contribuição para a análise da questão agrária no Brasil”, reconhecia o caráter não socialista da reforma agrária brasileira nas circunstâncias da então conjuntura política, reafirmava, contudo, convicções já expressas no texto de 1960, ao não corroborar a tese pecebista sobre o sistema de parceria. Na sua proposta, a reforma agrária deveria atacar duas frentes: garantir a extensão ao campo da legislação trabalhista que já dava proteção legal ao trabalhador urbano e permitir ao trabalhador rural acesso à propriedade e ao uso da terra. Ao abordar o primeiro ponto, buscou aprofundar sua análise sobre as relações de trabalho no campo, partindo da premissa de que a grande maioria dos trabalhadores rurais no Brasil era constituída de assalariados, mas admitindo que o regime de salariado puro, tal qual existente na indústria e no comércio, fosse uma exceção.

O escritor paulista explicava que, devido às condições específicas do trabalho no campo e às circunstâncias peculiares da formação histórica do país, as relações de trabalho na agropecuária assumiam formas complexas e híbridas, expressas, por exemplo, no fato de a remuneração do trabalhador ser feita com dinheiro e/ou através da concessão do direito à ocupação, para cultivo próprio, de parcelas da terra do empregador. Argumentava que, em decorrência de as atividades agropecuárias serem, geralmente, esporádicas, os proprietários, para fugir da obrigação de pagar salários o ano todo, usavam do artifício de manter os trabalhadores sob seu controle, fixando-os em sua propriedade com a permissão ao uso da terra em proveito próprio e de sua família. A situação de os empregados habitarem, quase sempre, a propriedade do empregador, estando isolados dos centros urbanos e das instituições públicas reguladoras do convívio social, levaria necessariamente a um tipo de relação na qual se estabelecia um forte vínculo pessoal, com a subordinação e sujeição do indivíduo sem posses aos ditames do proprietário, que se assenhoreava de tudo o que estivesse inserido no âmbito da jurisdição de sua propriedade. O historiador via, neste traço de sujeição pessoal do trabalhador ao proprietário da terra, o ponto em que se produzia a confusão teórica pela qual se denominava de feudais ou semifeudais as relações de trabalho dominantes nas fazendas brasileiras.

Caio Prado entendia que, longe de se buscar eliminar aparentes, mas de fato inexistentes, formas semifeudais de exploração na agropecuária, deveria se lutar por uma legislação capaz de limitar as prerrogativas da propriedade privada, impedindo que os direitos do proprietário interferissem na liberdade pessoal do trabalhador e cerceassem seus direitos civis e políticos de cidadão, a fim de que, entre proprietários e trabalhadores, vigorassem unicamente relações típicas de um contrato de trabalho, com a prestação remunerada de serviços e o respeito às normas de proteção ao trabalho, tais como as existentes nos centros urbanos. Por isso pugnava pela extensão da legislação social-trabalhista vigente na indústria e no comércio às relações de trabalho na agropecuária, como forma de eliminar as formas de exploração do trabalhador rural, que, segundo ele, extrapolavam os direitos de propriedade privada num regime de igualdade jurídica que, a princípio, deveria ser o brasileiro. Desta feita, estaria criado o ambiente favorável para a plena configuração do regime de salariado no campo, com a vigência de “uma legítima e pura locação de serviços contratados entre partes efetivamente em pé de igualdade jurídica”11.

No caso da parceria, ratificava seu ponto de vista segundo o que a prática assim denominada e na qual muitos identificavam uma forma de extração de renda-trabalho ou renda-produto, na verdade encobria uma relação entre empregador e empregado, em que o segundo prestava serviços ao primeiro. Aquilo que formalmente caracterizava a parceria agrícola, a divisão do produto com a reversão de parte dele ao trabalhador, constituiria de fato uma forma de remuneração do trabalho realizado, passível de ser equiparado ao pagamento de salário. Entendia que a situação de dependência do trabalhador perante o proprietário era uma característica daquela relação de trabalho que só vinha reforçar seu raciocínio, comprovando que o produtor direto era um empregado e não um parceiro do dono das terras. Daí que, também com respeito a esta situação, segundo Caio Prado, devesse ser aplicada a legislação trabalhista, para que fosse formalmente reconhecida a relação de emprego, e o regime de salariado vigorasse plenamente. Ou então que se procedesse a desapropriação e a entrega a cada produtor direto da parcela de terra efetivamente ocupada por ele, concretizando, assim, o outro objetivo a ser cumprido pela proposta de reforma agrária apresentada pelo intelectual paulista: a desconcentração da propriedade rural, com o seu fracionamento em favor dos trabalhadores, que passariam à condição de proprietários.

A parceria, deste modo, ao contrário de representar uma prática retrógrada ou primitiva, conforme a interpretação de Mário Alves, era apontada como um tipo de organização intermediária entre a grande exploração rural e a exploração individual, podendo servir como ponto de partida da reforma agrária, pois suas características de uma produção individual e parcelária faziam com que, na prática, a grande propriedade já se achasse fracionada em unidades autônomas, facilitando o processo de formação de pequenas propriedades. No pensamento de Caio Prado, havia um aspecto positivo na parceria, conforme já exposto no seu texto anterior: tratar-se-ia de um sistema superior ao salariado, por permitir o acesso à terra ao trabalhador rural, assegurando-lhe, ao menos, uma produção voltada à sua subsistência e à de sua família, que, do contrário, teriam de adquirir os gêneros de primeira necessidade, a preços elevados, no mercado. O historiador afirmava que tais vantagens se verificariam no fato de que, em geral, o simples assalariado teria um padrão de vida inferior ao do trabalhador que produz ele próprio o seu sustento. Daí que o sistema de parceria fosse visto como uma situação de fato propícia às finalidades da reforma agrária, que se destinaria, essencialmente, a promover e elevar os padrões de vida da população rural.

O ponto de convergência das posições apresentadas nas duas revistas estava mesmo na premissa de que a reforma agrária seria realizada nos marcos do regime de propriedade privada, não se tratando de um projeto socialista. Este pressuposto levava a uma inquietação presente nos textos estudados: a de que não fossem desarticulados processos produtivos bem organizados, fundamentais ao desenvolvimento econômico do país e ao atendimento das necessidades básicas da população. Nos artigos de Rui Facó e Mário Alves, a ênfase recaía sobre a importância de manter os índices de produtividade das plantações que constituíssem unidades econômicas e empregassem processos capitalistas (segundo a lógica de que a maioria das propriedades agropecuárias no Brasil não utilizava ainda relações capitalistas de forma plena). A solução, para Mário Alves, estaria em confiar tais empreendimentos a cooperativas de trabalhadores agrícolas, com ajuda técnica e financeira do Estado, evitando o seu fracionamento e cuidando para que uma parcela das terras fosse obrigatoriamente reservada à diversificação dos cultivos e à subsistência dos cooperados, como alternativa à monocultura.

Quanto a Caio Prado, havia igualmente a preocupação de se evitar perturbar atividades produtivas e desorganizar os estabelecimentos onde o trabalho e a produção estavam organizados de forma coletiva, ou seja, no caso das grandes explorações. Sua solução, no entanto, não apontava para a formação de cooperativas:

Nesses casos é preciso considerar cada caso especificamente e em particular, procurando-lhe uma solução própria que não pode ser generalizada. Muitas vezes é possível uma reorganização da atividade produtiva sem maior dificuldade, transferindo-a do sistema de trabalho coletivo, para a exploração parcelária. Na cultura cafeeira, por exemplo, essa transformação não oferece em regra obstáculo excessivo, pois a experiência mostra que o café pode ser cultivado e produzido com igual eficiência tanto na grande quanto na pequena exploração.12

Os dois pontos de vista realçavam a necessidade de se manter os índices de produtividade e a eficiência do processo de produção nos grandes empreendimentos coletivos capitalistas. A diferença residia na perspectiva a ser alcançada com a reforma agrária: a solução de Mário Alves parecia ser coerente com um projeto de revolução democrático- burguesa (no qual a transformação da estrutura agrária era assumida como um dos pontos fundamentais para seu êxito) que não perdia de vista o objetivo final do socialismo, para o que seria mais favorável a formação das cooperativas de trabalhadores rurais, mantendo-se o caráter coletivo da grande exploração, mas transferindo o seu controle aos produtores diretos. Por outro lado, a proposta de Caio Prado Júnior rumava na direção de privilegiar o fracionamento da grande propriedade, com o propósito de elevar o trabalhador rural sem posses à condição de proprietário, o que também não deixava de ser coerente com o objetivo estrito de seu projeto de reforma, qual seja, o de fornecer melhores condições de sobrevivência à massa de despossuídos no campo, tendo em vista não se vislumbrar ainda a ultrapassagem dos marcos estruturais impostos pelo sistema capitalista.

Mas cabe ressaltar que uma certa perspectiva de fundo teórico se faz presente nos textos pesquisados, mormente nas análises dos dirigentes do Partido Comunista, Marighella e Mário Alves, assim como os intelectuais Alberto Passos Guimarães e Rui Facó, acerca da estrutura agrária brasileira. Vislumbra-se a ideia de um determinismo tecnológico, conforme expressão usada por Ellen Wood, a denunciar um tipo de marxismo que tenta explicar as mudanças nas sociedades humanas por meio de uma lei universal: o desenvolvimento das forças produtivas. A ortodoxia doutrinarista e dogmática substituíra o materialismo histórico e, por conseguinte, o estudo crítico dos processos históricos marcados pela luta de classes por uma visão determinista em que a contradição maior no interior das sociedades passava a ser “a dissonância entre o nível de desenvolvimento das forças produtivas e a antiga estrutura econômica”13, momento em que se daria a crise e a transição de uma forma social para outra.

A luta de classes acabava servindo como um facilitador, não o fator primordial do processo, num quadro em que a mudança deveria ocorrer, mais cedo ou mais tarde, em decorrência da própria evolução das forças materiais regidas por leis históricas universais. Partia-se da premissa de que os estágios históricos, numa sucessão mecânica, preordenada e unilinear de modos de produção, movem-se por força de algum fator “científico” universal, um deus ex machina como o progresso das técnicas, porque, dentro desta concepção:

de alguma forma, a história exige o desenvolvimento das forças produtivas, ou que sistemas menos produtivos são seguidos necessariamente por outros mais produtivos, ou que o desenvolvimento das forças produtivas é o único princípio conhecido do movimento histórico de um modo de produção para outro.14

A história, concebida assim como um padrão de crescimento contínuo e sistemático das forças produtivas, favorecia a certeza de que a ascensão inevitável do capitalismo haveria de preparar o terreno para o advento do socialismo, com igual inevitabilidade. Bastava, então, que certos obstáculos fossem removidos para que o modo ascendente de produção substituísse aquele que já havia caducado por força dos imperativos do progresso técnico. No caso da estrutura agrária brasileira, era preciso atacar as forças recalcitrantes do “latifúndio atrasado, de tipo semifeudal”, que utilizava “sistemas primitivos” de cultivo, impondo relações pré- capitalistas “retrógradas e parasitárias” como a parceria e o arrendamento, conforme as palavras de Mário Alves. Pois, somente a eliminação do monopólio da terra criaria “novas condições para o desenvolvimento das forças produtivas”, nos dizeres de Marighella, fazendo com que desaparecessem em definitivo as formas semifeudais e florescessem plenamente as relações capitalistas de produção no campo brasileiro, estágio necessário para a posterior transição ao socialismo. A proposta de reforma agrária dos comunistas, portanto, se inseria, de forma coerente, no projeto de revolução democrático-burguesa, cuja matriz teórica era a concepção de história apresentada acima.

Já Caio Prado Júnior era um crítico arguto da concepção determinista da história, como pode ser constatado na sua clássica obra A Revolução Brasileira, na qual debate especialmente com os formuladores da estratégia revolucionária pecebista, discordando de seus princípios teóricos e resoluções práticas. Quanto à interpretação da formação histórica brasileira, é possível identificar nos escritos do historiador paulista, segundo Carlos Nélson Coutinho, uma aproximação com a perspectiva leniniana da “via prussiana” de desenvolvimento capitalista, ou o que Gramsci chamaria de “revolução passiva”. Mesmo que, em momento algum, Caio Prado tenha utilizado tais conceitos ou feito qualquer referência aos dois teóricos marxistas, seu ponto de vista acerca da modernização da estrutura agrária no Brasil realçava a adaptação da grande exploração rural ao sistema capitalista de produção, através de um processo gradual de substituição do trabalho escravo para o trabalho livre. Tal concepção, ao desvendar uma modalidade de transição “não clássica” para o capitalismo, teria o mérito de apresentar a formação social moderna brasileira como essencialmente capitalista e não “semifeudal”, conforme queriam os dirigentes comunistas15.

* Ricardo Costa é Secretário Geral da FDR.

** COSTA, Ricardo da Gama Rosa – Descaminhos da Revolução Brasileira: o PCB e a construção da estratégia nacional-libertadora (1958-1964), Tese de Doutorado, Niterói, UFF, 2005.

Notas

1 – MARIGHELLA, Carlos – “Alguns aspectos da renda da terra no Brasil” em Revista Estudos Sociais nº 1, Rio de Janeiro, maio/junho de 1958, p. 32.

2 – GUIMARÃES, Alberto Passos – “A Questão Agrária Brasileira” em Revista Estudos Sociais nº 14, Rio de Janeiro, setembro de 1962, p. 167.

3 – PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO – PCB: vinte anos de política, São Paulo, Livraria Editora Ciências Humanas, 1980, p. 5.

4 – Ibidem.

5 – Cf. DÓRIA, Carlos Alberto – “O dual, o feudal e o etapismo na teoria da revolução brasileira” em MORAES, João Quartim de (org.) – História do Marxismo no Brasil. Volume III. pp. 214 e 221.

6 – PRADO JÚNIOR, Caio – A Revolução Brasileira, 1ª reimpressão, São Paulo, Ed. Brasiliense, 1999, p. 67.

7 – Idem, “Contribuição para análise da questão agrária no Brasil” em Revista Brasiliense nº 28, São Paulo, março/abril de 1960, p. 199.

8 – Ibidem.

9 – FACÓ, Rui – “Notas sobre o Problema Agrário” em Revista Estudos Sociais nº 11, Rio de Janeiro, dezembro de 1961, p. 307.

10 – ALVES, Mário – “Dois caminhos da reforma agrária” em Revista Estudos Sociais nº 13, Rio de Janeiro, junho de 1962, p. 22.

11 – PRADO JÚNIOR, Caio – “Nova contribuição para análise da questão agrária no Brasil” em Revista Brasiliense nº 43, São Paulo, setembro/outubro de 1962, p. 26.

12 – Ibidem.

13 – WOOD, Ellen – Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo histórico, São Paulo, Boitempo Editoral, 2003, p. 101.

14 – Ibidem.

15 – Cf. COUTINHO, Carlos Nelson – “Uma via ‘não clássica’ para o capitalismo” em D’INCAO, Maria Ângela (org.) – História e Ideal: ensaios sobre Caio Prado Júnior, São Paulo, Ed. UNESP/Brasiliense, 1989, pp. 115- 131.